terça-feira, 10 de novembro de 2009

"Modernização e reforma agrária", Moacir Palmeira, fichamento

1. Grandes transformações no campo brasileiro: base técnica de produção e interação de setores ponderáveis da produção agropecuária ao “complexo industrial” => muitos cientistas sociais pensaram essas mudanças como um processo de “modernização” que teria transformado a reforma agrária em uma bandeira obsoleta. Palmeira (2008) enfatiza, entretanto, que as mudanças sofridas pelo campo brasileiro foram muito mais amplas que a simples modernização tecnológica e que a questão da propriedade fundiária continua dividindo a sociedade.

2. Migrações e expropriações: as migrações internas alteraram o perfil da distribuição espacial da população brasileira, invertendo os percentuais das populações rural e urbana, configurando uma “expropriação” do campesinato. A simples saída de imigrantes das áreas rurais contribuiu para criar desequilíbrios nas estruturas sociais que serviam de suporte às atividades econômicas, a expulsão sistemática de trabalhadores dos grandes domínios rurais e a invibilização da pequena propriedade em algumas áreas confluíram para impedir a reprodução social de “agregados”, “moradores” ou “colonos”, transformando as próprias estruturas sociais.

3. A afirmação política do campesinato e a reforma agrária: a organização dos camponeses seria uma das respostas à expropriação. A implantação das ligas camponesas e dos sindicatos rurais ajudaram a conter o ritmo da expropriação, contribuindo para enfraquecer os padrões tradicionais de dominação. Além de mediador, o sindicato se colocava como veículo para implementação de regras impessoais que negam a dominação personalizada do latifúndio: os trabalhadores passavam a ter acesso à justiça e a implementação das leis se tornou uma possibilidade real. A repressão ao movimento camponês e as tentativas de “domesticação” por parte do regime militar não impediram que o esforço de organização dos trabalhadores prosseguisse. O cimento ideológico desta empresa política, comandada pela Contag, seria a bandeira da reforma agrária. Desta forma, os trabalhadores foram amadurecendo um projeto próprio de reforma agrária e, em 1979, o III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais propôs uma reforma agrária ampla, massiva, imediata e com a participação dos trabalhadores, e, associando reforma agrária e democracia, criou um espaço novo para a discussão do tema. Este espaço se ampliou entre 1979 e 1984, com a nova orientação adotada pelo movimento sindical, priorizando as lutas coletivas. Mobilizações, greves de assalariados, protestos de massa, manifestações públicas e a simples exigência da reforma afirmou a presença do movimento sindical e delimitou um campo de lutas bem mais amplo que a simples oposição entre camponeses e latifundiários.

4. As lutas sociais e a legislação: lutas sociais no campo + alterações na composição de poder dentro do Estado antes do golpe => legislação específica para o campo: Estatuto do Trabalhador Rural (1963), Estatuto da Terra (1964) e uma extensa legislação complementar, como a previdenciária. A nova legislação impôs um novo recorte da realidade: ao estabelecer conceitos como latifúndio, minifúndio, empresa rural, arrendamento, parceria, colonização, o Estado criou uma camisa-de-força para os tribunais e para seus próprios programas de governo, e tornou possível a sua intervenção sem o concurso de mediadores, abrindo espaço para a atuação de grupos sociais que reconheceu ou cuja existência induziu. Estes conceitos se tornaram referências que reordenaram as relações entre grupos, propiciando a formação de novas identidades.

5. A ação do Estado e o mercado de terras: a legislação não determina uma política. Nos governos militares, a via priorizada foi a da modernização do latifúndio, em prejuízo da formação de propriedades particulares priorizada pelo Estatuto da Terra. Neste sentido, pesaram o lugar estratégico atribuído à especulação financeira e a importância dada à exportação de produtos agropecuários e agroindustriais como fonte de divisas para o país, no modelo de desenvolvimento adotado pelo regime militar. O crédito subsidiado foi o grande instrumento, acompanhado de incentivos fiscais e uma política de terras públicas. Estes governos formularam e reformularam planos e programas e desenvolveram ações mais genéricas ou mais localizadas para contemplar excluídos. Isso foi conseqüência de vontade política e da incapacidade dos mediadores tradicionais absorverem o impacto de um processo de exclusão social de que forma co-responsáveis. A política previdenciária foi a principal. As vantagens das políticas de “modernização” beneficiaram latifúndios tradicionais, mas atraíram capitais de outros setores da economia, de grandes grupos econômicos que entraram na produção agrícola ou agroindustrial. Este estilo de intervenção estatal também atraiu os interesses ligados a esses capitais para dentro da máquina do Estado, onde passavam a se dar as decisões e ajustes econômicos.

6. A presença do Estado e o enfraquecimento da dominação tradicional: esta presença, que não é nova, não passa mais pela mediação dos chefes locais, sendo que o controle passa a depender do controle que terão que exercer sobre determinados postos na máquina do Estado, tornando mais complexo seu “trabalho de dominação”. O Estatuto do Trabalhador Rural (reconheceu a existência como categoria profissional) e o Estatuto da Terra (reconheceu a existência de uma “questão agrária”) alargaram o âmbito da “questão agrária”, criando condições para que no jogo entre a referência legal e atuação do Estado, de um lado, e os interesses conflitantes de grande proprietários e trabalhadores, de outro questões como a das terras públicas e sua destinação, a da colonização, a do crédito e da relação entre camponeses devedores e bancos credores, a do cooperativismo, a das obras públicas em área rural, problemas como secas e enchentes se incorporassem à concepção de “questão agrária” dos camponeses e também dos grandes proprietários, tornando-se objeto de conflitos específicos e pretexto para o questionamento da política global do governo para o campo.

7. A reforma agrária em questão: esses processos se combinam em dois movimentos relativamente autônomos e contraditórios => de um lado, a progressiva ilegitimação das formas tradicionais de dominação, associada à incapacidade do Estado de gerar novas formas de legitimidade, levando à multiplicação dos conflitos e ampliação de seu âmbito; de outro lado, as vantagens asseguradas pelo Estado atraíram capitais das mais diversas origens, criando uma coalizão de interesses em torno do negócio com a terra incrustada na própria máquina do Estado. A modernização provocou um aumento do peso político dos proprietários de terra, “modernos” e “tradicionais”. A reforma agrária é posta na ordem do dia pelo primeiro movimento, é uma demanda social. O governo da “Nova República” elaborou planos de reforma agrária, arquivou e continuou falando de reforma agrária; a Constituinte descreveu-a apenas no texto da nova Carta e, da mesma forma, sua inviabilidade ao introduzir a noção de “propriedade produtiva” isenta de desapropriação. O governo Lula combina absoluta falta de ação com a velha retórica da “maior reforma agrária do mundo”. O autor destaca que não se trata de um problema de governo ou que envolva determinados grupos, mas o que está em jogo na questão da reforma agrária é a oposição entre dois movimentos que envolvem confrontos de interesses diversificados e que atravessam toda a sociedade. Neste confronto está em jogo a própria maneira de operar do Estado. O impasse do Estado reflete o da sociedade em escolher o Estado que deseja para gerir os seus próprios impasses.

REFERÊNCIA:
COSTA, L.F.C; FLEXOR, G; SANTOS, R. (orgs.) Mundo Rural Brasileiro. Ensaios
interdisciplinares Mauad X-EDUR, Rio de Janeiro - Seropédica, 2008.

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