Nosso movimento, que queríamos chamar de "som universal", terminou ganhando o apelido de "tropicalismo" por causa da instalação de Hélio Oiticica que Luiz Carlos Barreto achou parecida com minha canção. Foi Leon Hirschman quem, tendo visto na casa de um amigo um volume de "Tristes Trópicos", pensou que um livro com esse título deveria interessar a um dos criadores de tal movimento, ainda mais que se tratava de um que gostava de ler livros filosóficos e teóricos. Ele simplesmente roubou o exemplar da casa em que o encontrou e me deu de presente. A palavra "estruturalismo" estava aparecendo em textos de jornais e em conversas. Eu vagamente sabia que o nome de Lévi-Strauss estava ligado a ela.
Abri o livro com uma curiosidade moderada. E fui tomado de um interesse intenso a partir das primeiras frases. "Tristes Trópicos" me arrebatou. Eu era fã de Sartre. Nunca esperei que uma inteligência de ordem tão diferente, mesmo antagônica, se impusesse com tanta rapidez sobre meu espírito. O estilo (eu nunca tinha lido Proust) também me impressionou: a calma dos parágrafos longos e entremeados de observações secundárias que só lhe aumentavam a clareza era educativa, agradável e elegante. Mas foi a visão do Brasil que apareceu ali que esquentou meu coração.
Um pessimismo relativo à civilização brasileira (mitigado pela bela passagem sobre a USP, em que "num claro instante" pode tornar-se possível uma intervenção relevante nos destinos do mundo, por parte de um bando de jovens paulistas inocentes -mas agravado pela incompreensão total do que seria Oswald de Andrade ou a possibilidade de um modernismo brasileiro que contasse além da repulsa que a suposta beleza do Rio causava no autor) contado paralelamente às descobertas sobre as culturas pré-cabralinas, ensinava novos modos de sentir-se o estar no mundo aqui.
Mais do que tudo, aparecia um homem excepcional: sempre modesto, ele mantinha um tom franco e inabalavelmente lúcido. Os esboços das posições originais que o tornariam mais e mais célebre apareciam com vigor, mas sem paixão. Cheguei a escrever, alguns anos depois, para meu governo, que fazia sentido que, em oposição ao ateísmo apaixonado de Sartre, surgisse uma espécie de misticismo frio.
A profecia de que o Islã nunca seria a religião da tolerância que se pretendia (culminando numa impressionante comparação das figuras de Maomé e Buda) repercutiu em mim de modo indelével. Assim como o horror ao "eu" cartesiano, embora a racionalidade que ele sempre manteve nunca pudesse ser abalada, fosse pela "confusão entre sujeito e objeto" dos existencialistas (seguindo Husserl), fosse pela dialética hegeliano-marxista (que os existencialistas franceses terminaram por abraçar).
Marx e Freud eram, para ele, antes exemplos de pensadores que percebiam realidades inteligíveis em planos escondidos.
Enfim, se há alguns livros que ficaram acesos em minha memória desde que foram lidos - e para sempre-, "Tristes Trópicos" é um deles. Por causa disso, li "O Pensamento Selvagem" (em Londres, em inglês, porque os donos da casa que aluguei tinham esquecido justo um exemplar dele na estante vazia), depois "O Cru e o Cozido". A polêmica com "Crítica da Razão Dialética" no primeiro e os argumentos contra a música atonal no segundo são trechos a que voltei inúmeras vezes através dos anos.
O texto sobre a música sempre foi especialmente instigante para mim. Considero aquilo um momento altíssimo na história do entendimento do que seja a música. Ali também estão embutidos argumentos anti-modernismo e anti-arte de vanguarda a que ele se apegou nas últimas décadas. Sinto uma natural desconfiança dessa inclinação, mas acho estimulante que algumas problematizações não fossem evitadas.
Amo a resposta que Augusto de Campos me deu quando lhe reportei a impressão que me causaram tais argumentos: "São muito inteligentes, mas quem levou a música para além do tom foram os músicos, os melhores entre eles - e eu confio mais em quem está com a mão na massa". Mas aconselho qualquer um a passar primeiro pela "ouverture" de "O Cru e o Cozido", relembrar a frase de Augusto e depois tentar pensar por conta própria.
Lévi-Strauss detestava a promiscuidade entre alta cultura e cultura popular que via sendo praticada por seus famosos contemporâneos mais jovens: "pop philosophie", pensadores citando Bob Dylan e escrevendo sobre cinema, linguistas estudando letras de rock - na entrevista com Didier Éribon, ele diz que jamais voltaria seu armamento teórico para nada abaixo de Baudelaire.
Eu o citei nominalmente numa letra de música (numa entrevista em que lhe perguntaram sobre a citação em "O Estrangeiro" -"O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara: pareceu-lhe uma boca banguela"-, ele disse, meio rindo, que tinha escrito essas palavras havia muito tempo); citei-o indiretamente em pelo menos duas outras: o "num claro instante" de "Um Índio" (diretamente do texto sobre a USP) e "amor-mentira" de "Tem que Ser Você" (aprendi com ele que os nhambiquara chamam os atos homossexuais praticados pelos jovens da tribo de "amor-mentira").
Ele possivelmente não gostaria de se ver citado por um músico pop. E brasileiro. Vai saber. Ele cultivava um certo amor pelo Brasil, a terra onde suas descobertas inaugurais surgiram, onde seu trabalho de etnógrafo fez possível suas investidas teóricas e mesmo filosóficas. Mas o título do seu primeiro livro não é tão carregado de ternura quanto de desprezo e desesperança (e aqui me lembro de uma quarta citação que fiz dele em canção: a observação, em "Fora da Ordem", de que "aqui tudo parece que é ainda construção mas já é ruína"): o Brasil é figura grande na geografia de "Tristes Trópicos", mas está incluído numa visão sombria que cobre toda a zona tropical ao redor do globo.
Eu o vi uma vez na BBC falando inglês excelente com perfeito sotaque francês e exibindo um caleidoscópio para ilustrar sua ideia de estrutura e do número finito de possibilidades de arranjo coletivo do homem. Ele tinha uma cara muito bacana de judeu bondoso mas irônico, uma maravilhosa cara de quem tem vocação para a longevidade (coisa de que ele antes se queixava com modesta ironia, mas que a mim me parece uma virtude). Em suma, eu gostava dele. Gostava de pensar que ele, tão distante e tão próximo, estaria ainda sempre por aí, como minha mãe e Niemeyer, o que me dá uma espécie muito tranquila de saudade.
Peço desculpa aos estudiosos sérios por tratar com tamanha familiaridade uma figura tão respeitável. Mas peço essas desculpas por causa do carinho que sinto e sempre senti por ele. Mesmo no seu grande esnobismo contra o esnobismo de massas.
CAETANO VELOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA DE SÃO PAULO
Retirado de http://www.gabeira.com.br/noticias/mundo/1390-caetano-diz-que-qtristes-tropicosq-esquentou-seu-coracao
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