domingo, 8 de novembro de 2009

"Análise dos impactos regionais da reforma agrária no Brasil" (Heredia, Medeiros, Palmeira, Cintrão & Leite), fichamento...

1. Significado da implantação dos assentamentos rurais para as regiões onde estão localizados => apontar os processos de mudança por eles provocados no ambiente ao qual se inserem: caráter molecular, se potencializam ao longo do tempo, intensidade e natureza dependem de diferentes contextos (locais, regionais e nacionais) => efeitos na vida dos assentados e dos projetos quanto fora deles. A análise se volta para a mensuração e qualificação das mudanças, buscando construir indicadores e apontar relações que refletissem o significado dessas experiências a partir da comparação (I) entre as situações atual e anterior dos assentados e (II) entre as condições socioeconômicas existentes no assentamento e aquelas verificadas no seu entorno. Foi feita também uma análise dos efeitos resultantes da criação dos projetos nos níveis local e regional. A discussão sobre os impactos dos assentamentos significa atentar para uma multiplicidade de relações em que trajetórias diferenciadas implicam resultados diversos => trata-se de uma análise dos efeitos econômicos, políticos e sociais dos processos de transformação, processos com ritmos e intensidades variáveis, que incidem sobre as famílias dos assentados e no entorno dos projetos.

2. Aspectos metodológicos e caracterização da amostra.

3. O surgimento das manchas e a territorialização da reforma agrária: Estatuto da Terra (sistemática de intervenção e desapropriação) => PNRA (estabelecimento de zonas prioritárias de reforma agrária) => desapropriações não-planejadas. As medidas que resultaram na criação dos assentamentos do período democrático não estavam orientadas para realizar uma reforma agrária “massiva” exigida pelos movimentos de trabalhadores, mas foram adotadas sob pressão destes, ou seja, potencializadas por uma simultaneidade e por sua concentração nas regiões de atuação dos movimentos sociais. Os movimentos sociais e demais atores das lutas sociais têm sido prisioneiros e atuado sobre configurações históricas específicas que levaram a uma concentração de projetos de assentamentos: (I) grande valorização das terras e os fortes fluxos migratórios no entorno do DF; (II) as crises das lavouras cacaueira no sul da Bahia, canavieira na Zona da Mata nordestina e algodoeira no sertão cearense (intensificadas pela ocorrência de grandes secas); (III) a dificuldade de reprodução da pequena agricultura no sul do país; (IV) a falência de grandes empreendimentos patrocinados pelo Estado no sudeste do PA. Desta forma, a concentração regional de assentamentos resulta objetivamente das lutas empreendidas, que se tornam objeto de reapropriações e racionalizações pelos diferentes atores: os movimentos têm conseguido definir “áreas prioritárias” para intervenções do Estado e têm sido hegemônicos no desenho de modelos de “assentamento”, de padrões de relacionamento social (distantes da idealização proposta pelos movimentos, mas mais próximos do que é valorizado pela “cultura camponesa” do que dos planejadores estatais).

4. A presença dos assentamentos na dinâmica social e política regional:

(I) os assentados e suas famílias: grande parte já vivia na zona rural da própria região e tinha alguma experiência de trabalho na agricultura, ocupados em atividades agrícolas como assalariados rurais permanentes ou temporários, posseiros, arrendatários, membros não remunerados da família; baixa ou nenhuma escolaridade => assentamentos vêm possibilitando acesso à propriedade da terra a uma população historicamente excluída, além de atuar como mecanismos de recomposição das famílias, seguindo um padrão comum à agricultura familiar, ou seja, habitados por uma família nuclear que passa a ter no local uma importante fonte de trabalho e condições de reprodução social e econômica, proporcionando novas oportunidades de encontro e convivência e impondo novas formas organizativas.

(II) os assentamentos e sua organização interna, como três blocos:(a) associa grandes extensões de área e grande quantidade de famílias; (b) associa pequenas extensões de área e poucas famílias; (c) associa pequenas extensões de terra a muitas famílias (maior densidade demográfica rural e urbana). A organização espacial interna segue um padrão, com as casas localizadas nos próprios lotes Nos projetos maiores, cada comunidade tem uma associação. Os núcleos propostos pelo MST constituem uma nova forma de organização para discussão de problemas e encaminhamento de demandas ao poder público.

(III) impactos fundiários e demográficos: a política de assentamento não pode ser classificada como um profundo processo de reforma da estrutura fundiária, mas indica um processo de territorialização da reforma agrária (no plano dos estados, impacto modesto; nas manchas, expressivo; em alguns municípios, muito grande). Embora não altere o quadro mais global de concentração fundiária, a implantação dos assentamentos tem proporcionado uma reestruturação fundiária nos espaços locais. Se a intensificação dos assentamentos não contribui para ampliar a população rural nos municípios analisados, pelo menos estancou seu decréscimo, sendo que em municípios de menor porte populacional, a população dos assentamentos é relativamente importante, mesmo em comparação com a população urbana.

(IV) Acesso a políticas públicas e condições de infra-estrutura bastante deficiente, gerando uma série de demandas e reivindicações cuja potencialização se relaciona com a capacidade organizativa dos assentamentos e a conjuntura política local em que se inserem. Fase inicial é difícil, tudo por fazer, grande importância de acesso aos créditos de instalação ou implantação administrados pelo Incra (fomento, habitação e alimentação), com grau razoável de cobertura, mas com atraso na liberação. Problemas de falta de água ou com baixa qualidade. Rede elétrica existe, mas nem sempre na totalidade. Telefonia pública é pouco difundida. A distância média em relação às cidades em torno de uma hora, predominando as estradas de terra até a entrada do projeto ou parte de terra e parte de asfalto, não são boas, com isso os assentados estão sujeitos a dificuldades de circulação, especialmente nas épocas de chuva, quando se agravam as condições de acesso a serviços de saúde e educação, bem como dificuldades para comercialização da produção. Transporte coletivo precário, mas com ampliação de frota e mudanças em itinerários. Educação, a preocupação é a existências de escolas para os filhos, produto da demanda, mas o nível de ensino é restrito, não há estabelecimentos de ensino médio ou escolas técnicas, mas chama atenção a presença de programas de educação de jovens e adultos. Serviços de saúde, presença de agentes de saúde é significativa, mas os postos de saúde são raros e quase não existem médicos. A criação de assentamentos implica forte pressão sobre os já deficientes serviços de saúde locais no que se refere a atendimento e tende a desenfrear novas reivindicações ou engrossar as já existentes. Pela distância dos assentamentos em relação aos centros urbanos, a dificuldade das estradas ou carência de transporte coletivo, a precariedade do atendimento à saúde tem efeitos graves sobre a vida dos assentados.

(V) associativismo e participação política: precariedade de infra-estrutura + dificuldades de estabelecimento na terra e de reprodução da agricultura familiar = criação do assentamento como ponto de partida para novas demandas para sua viabilização econômica e social. Os assentados passam a se organizar, procurar os poderes públicos, demandar, pressionar, negociar => amplo espectro de atividades que os colocam frente ao exercício da participação política. Associações como forma predominante de organização representativa, existência obrigatória como personalidades jurídicas dos assentamentos que formalizam os contatos com organismos do Estado e outras agências. A experiência política da luta pela terra produziu lideranças, formas de representação, um aprendizado sobre a importância das formas organizativas e sobre sua capacidade de produzir demandas => a experiência dos assentamentos modifica a cena política local.

5. A presença dos assentamentos na dinâmica econômica regional:

(I) possibilidade de trabalho e geração de renda: os assentamentos representam uma importante alternativa, mas estão sujeitos à saída de pessoas, ocasionadas pela busca de trabalho e/ou outra terra.

(II) produção agropecuária: grande diversidade de produtos originários dos assentamentos. Milho, mandioca, feijão são os de cultivo mais generalizado => escolha tem um valor estratégico: produtos facilmente comercializáveis e cruciais na alimentação da família. Destaque para gado bovino, aves e suínos (para consumo). Extrativismo com importância pontual em algumas manchas.

(III) impactos na pauta produtiva local

(IV) produtividade, assistência técnica e padrão tecnológico: a produtividade não pode ser desvinculada do acesso à assistência técnica e do padrão tecnológico adotado.

(V) acesso a créditos: Procera, dificuldade no acesso (atraso na liberação dos recursos).O crédito repercute diretamente na dinâmica do comércio local dos municípios próximos.

(VI) impactos na comercialização: atravessadores com peso significativo, provocando crescimento da oferta, diversificação e rebaixamento dos preços dos produtos alimentícios.A importância das vendas dentro dos próprios assentamentos. Experiências com formas associativas de comercialização, com criação de pontos de venda próprios, formas cooperativas de comercialização, implantação de pequenas agroindústrias, constituição de marcas próprias para comercializar a produção. Além do peso na comercialização dos produtos, as iniciativas associativas têm a função de transformar a comercialização num momento de afirmação social e política de identidade de assentados e do sucesso da experiência dos assentamentos.

(VII) impactos nas condições de vida da população assentada: a reprodução das unidades familiares rurais ultrapassa a dimensão exclusivamente agropecuária, mesclando um conjunto de iniciativas que viabilizam financeiramente o grupo doméstico. O acesso a terra permite maior estabilidade e rearranjos nas estratégias de reprodução familiar, que resultam em uma melhoria dos rendimentos e das condições de vida.

6. Considerações finais: a magnitude dos conflitos sociais que brotam em torno da luta pela terra, a adoção pelos movimentos sociais de formas de luta que se revelaram eficazes e sua concentração em determinadas regiões forçaram uma ação desapropriatória do Estado, culminando na criação de vários assentamentos num mesmo município ou em municípios próximos. As mudanças são variadas em função dos contextos específicos, da densidade de projetos existentes, das trajetórias dos assentados e da diversidade regional das políticas públicas. A criação dos assentamentos gerou redistribuição fundiária e viabilizou o acesso à terra, mas não alterou de forma radical o quadro de concentração de terra no âmbito das manchas, tão somente no plano local. A experiência de luta pela terra, a existência do assentamento como espaço de referência para políticas públicas, a precariedade de infra-estrutura tornam o assentamento um ponto de partida de novas demandas, propiciando a afirmação de novas identidades e interesses, o surgimento de formas organizativas interiores ao projeto e a busca de lugares onde se façam ouvir. Com isso, trazem mudanças na cena política local. Por outro lado, ocorreu uma centralização de suas estratégias de reprodução familiar no próprio lote, embora recorrendo a outras fontes complementares de renda e trabalho fora dele. Os assentamentos geram postos de trabalho não-agrícolas, criando empregos e servindo como amparo social a parentes. A atividade produtiva oferta no mercado local uma maior diversidade de bens, especialmente em áreas antes monocultoras ou de pecuária extensiva. A criação dos assentamentos permite uma maior estabilidade e rearranjos nas estratégias de reprodução familiar, resultando em melhoria das condições de vida dos assentados, aumentando sua capacidade de consumo e dinamizando o comércio local. Desta forma, ser assentado é não pagar renda da terra, sentir-se liberto, senhor de seus passos e capacitado para controlar sua vida, deixar de ser escravo. Apesar das importantes mudanças, ficou evidente a precariedade de serviços de saúde, escola, infra-estrutura, acesso à assistência técnica, indicando (I) insuficiente intervenção do Estado no processo de transformação fundiária e (II) forte continuidade em relação à situação de precariedade material que marca o meio rural brasileiro.

REFERÊNCIA:
COSTA, L.F.C; FLEXOR, G; SANTOS, R. (orgs.) Mundo Rural Brasileiro. Ensaios
interdisciplinares Mauad X-EDUR, Rio de Janeiro - Seropédica, 2008.

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