terça-feira, 10 de novembro de 2009

“'Com a boca torta pelo uso do cachimbo'. Estado e empresários agroindustriais no Brasil, Regina Bruno, fichamento

1. As lideranças empresariais rurais e agroindustriais defendem que apenas a livre iniciativa garantirá competitividade para fazer frente a um novo modelo de desenvolvimento. Entretanto, em meio à crítica ao protecionismo estatal, em inúmeras situações, estas lideranças exigem a tutela e os favores do Estado, cujo “dever primeiro” deveria ser protege-las nas situações consideradas “difíceis”.

2. Reflexão sobre empresários agroindustriais como atores políticos: registro do modo com que representantes das associações patronais agroindustriais explicitam a sua relação com o poder público, como definem o papel do Estado na sociedade e como se concebem e se auto-representam => apesar da defesa do mercado e de uma maior institucionalidade prevalece a visão de um Estado tutelar, protetor e provedor, bem como uma cultura do favor, as relações oficiosas e a revalorização de velhos recursos de patronagem, realimentados pelo Estado => defesa da primazia do mercado ou do Estado dependerá do que melhor convier aos seus propósitos e do que melhor se ajustar aos seus objetivos.

3. Com as transformações da sociedade e do Estado (redemocratização nos anos 1980 e globalização a partir dos anos 1990), as associações por produto e multiproduto se transformaram em fonte e expressão de poder, que orientam o conjunto dos empresários agroindustriais a determinados modelos de comportamento e difusão de uma linguagem comum. Mesmo com divergências e concorrência entre si, procuram novas formas de negociação com o poder público e buscam uma nova racionalidade => nova postura: mais ofensivo, aprender a tomar iniciativa, ter uma visão estratégica dos “mercados”, dos impostos e dos negócios X ainda não se conformaram novos canais suficientemente institucionalizados de representação e de mediação capazes de representá-los => se consideram despreparados e o Estado brasileiro mais despreparado para enfrentar a globalização: crítica ao “elitismo” e ao “autoritarismo” dos tecnocratas como expressão de disputas de poder.

4. Plano político: afirmam que o Estado (como mediador de interesses sociais conflitantes) mostra-se historicamente incapaz de neutralizar os conflitos fundiários e acabar com a violência: a intervenção “paternalista” e “assistencialista” do Estado teria criado uma série de problemas para a agricultura. Neste sentido, a tutela do Estado sobre a sociedade é considerada “inaceitável”, “nociva” e “perniciosa”, sendo o intervencionismo estatal responsável pela gradativa perda de representação e pela redução do poder de decisão do empresariado rural. Mas não faltam aqueles que reivindicam uma maior interferência do Estado porque a agroindústria é “frágil para enfrentar as pressões do mercado externo” ou a agricultura uma “atividade de alto risco”, e até mesmo aqueles favoráveis à interferência direta do Estado nas disputas internas e na própria organização patronal, considerando que a transferência de responsabilidade para a iniciativa privada estaria sendo feita de forma “abrupta e violenta”, sem tempo para constituir um novo centro de decisão sob a responsabilidade da classe empresarial. Desta forma, defendem a tutela do Estado como garantia de acesso a maiores “privilégios”, “poderes”, “favores” e “proteção”.

5. Representação que os presidentes das associações agroindustriais fazem do Estado e de si próprios revela inúmeros componentes ideológicos e a cristalização de determinados habitus de classe: Estado como único responsável pelas mazelas da sociedade e pelos impasses da agricultura e da agroindústria, se eximindo de qualquer responsabilidade social e política => defendem que um maior investimento do Estado na agricultura contribuiria para a fixação do homem ao campo e uma melhor distribuição de renda X a produção de bens sofisticados não resolveria a questão social => percebem uma estrutura social no campo “irremediavelmente seccionada e dividida”: de um lado, a agricultura economicamente competente, estruturada e profissionalizada, de outro, a “agricultura marginal e de subsistência”, que sempre necessitará de subsídios do Estado e “de nossos impostos para os agricultores permanecerem na roça”.

6. Estado como único culpado pelo recrusdecimento da violência no campo e pelo aparecimento do MST: ausência de políticas públicas “preventivas”, bem como de uma política de extensão rural para o pequeno agricultor. Todos defendem que o Estatuto da Terra e as medidas desapropriatórias são “paternalistas” e a solução seria uma reforma agrária de mercado => culpabilização do Estado pela ausência de uma política agrícola “neutralizadora dos riscos”, bem como pelo intenso e acelerado processo de concentração agroindustrial, pela descapitalização do setor (política de tributação implementada, entrada indiscriminada de grupos internacionais, juros altos, irracionalidade do sistema viário, ausência de infra-estrutura moderna, instituição de uma política ambiental e florestal autoritária). As estratégias mais gerais de política econômica seriam responsáveis pela implementação de um modelo de desenvolvimento “seletivo e concentrador”.

7. Na prática cotidiana, três aspectos chamam atenção: (I) avaliação de uma imensa reciprocidade de interesses entre o Estado e os empresários; (II) o peso dos canais de intermediação oficiosos, convivendo lado a lado com a representação legal; (III) a predominância de ações individuais orientadas para o benefício próprio.

8. Reflexão sobre a prática política do patronato agroindustrial no Brasil permanece um problema crucial no âmbito das ciências sociais porque tanto as interpretações fundadas na atribuição de um papel histórico transformador do empresariado quanto aqueles que remetem à racionalidade da ação empresarial tendem a considerá-lo um grupo homogêneo e moderno, com dificuldade de perceber determinados perfis de conduta política que não correspondem aos padrões esperados.

9. Observações finais:

(I) Delgado destacou a ausência do Estado como formulador de políticas, o que acirra ainda mais a disputa existente entre os setores e reforça a tendência das cadeias produtivas em investir em benefício próprio: os ganhos e perdas dependem de fatores como (a) poder econômico e político da classe empresarial; (b) da história de cada setor; (c) da força do lobby, do peso de “seu deputado”; (d) das relações de parentesco => ausência do Estado faz com que o “capital político” do setor agroindustrial assuma um espaço determinante e privilegiado na dinâmica do processo econômico e no objetivo de uma maior competitividade, rentabilidade e lucro do setor => realidade que produziu, produz, reproduz e aprofunda um determinado estilo de competição entre os grupos e cadeias produtivas: as divergências existentes se aprofundam e os lucros e o capital já não bastam para soldar os interesses e auto-organizar os empresários rurais e agroindustriais;

(II) tensões entre a defesa de um Estado tutelar e a necessidade de uma maior autonomia empresarial, entre a busca de novos arranjos institucionais e a conciliação com a não-institucionalidade;

(III) tais normas de comportamento e os padrões de interação entre o Estado e os grupos empresariais são legitimados pelo Estado;

(IV) existe toda uma rede de relações de poder que intermédia as relações com o mercado: não existe mercado separado da política, sendo que a maior ou menor competitividade depende do maior ou menor peso político das cadeias agroindustriais;

(V) os empresários agroindustriais redescobriram a virtú, entendida como a capacidade de perceber o jogo de forças e identificar a ocasião propícia para agir na conquista e manutenção do poder.

REFERÊNCIA:
COSTA, L.F.C; FLEXOR, G; SANTOS, R. (orgs.) Mundo Rural Brasileiro. Ensaios interdisciplinares Mauad X-EDUR, Rio de Janeiro - Seropédica, 2008.

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