1. O autor revisita o agrarismo brasileiro a partir do pensamento social: volta à tradição intelectual como aproximação de uma formulação política da reforma do mundo rural => aferir os tipos de inspirações que movimentam os contingentes sociais em viver um cotidiano de relações sociais e intersubjetivas complexas => retomada de Ignácio Rangel: idéia de reforma agrária de curso consensual em torno de aspectos não propriamente agrários => Gilberto Freyre: rurbanização, outras dimensões do rural => Caio Prado Jr: reforma agrária não-camponesa para revitalizar nosso capitalismo debilmente incorporador, colocando-o a serviço da “maioria da população”, inspirado no modo americano de desenvolvimento centrado num vasto Oeste.
2. O texto concentra-se em dois clássicos de tempos diferentes (Caio Prado Jr / José de Souza Martins) e faz referência a Ivan Ribeiro (PCB) para compreender o agrarismo nos dias de hoje, trazendo traços característicos de um estilo de pensar que se pretende benéfico para os principais atores da reforma do mundo rural (governo e movimentos sociais) que buscam continuar o agro-reformismo por procedimentos democráticos => Governo: ênfase ao tema da população que vive no território do mundo rural, reordenando foco dos seus programas => Movimentos sociais (Contag e MST, auto-identificação): aproximação com a política e pedagogia da esquerda histórica como instrumentos promotores da inclusão social dos desvalidos rurais.
A interpretação camponesa pela política (Caio Prado Jr.):
3. O tema das relações do campesinato com a política numa ordem liberal-democrática => Brasil visto como país sem feudalidade, formado pelo plantation system, estruturação na qual a força de trabalho é trazida de fora => questão central: singularizar uma população trabalhadora expropriada da sua nacionalidade, que se agrupa em torno de um empreendimento mercantil que não constitui o seu mercado => Essa população se reproduzirá sob um capitalismo de industrialização “ocasional” (substituição de importações e dependente) que não universaliza o progresso => a problemática brasileira passa pela busca para a vida econômica de um produtivismo que constitua seres autônomos na “generalidade do país” (p.44-5).
4. Nesta visão, a luta pela terra não sustenta um processo de reestruturação da economia agrária no país, pois a dialética econômica que estruturava o mundo rural se daria a partir de uma contradição entre os monopolizadores das condições de emprego e a grande massa dos sem-trabalho espalhada pelo território nacional.
5. O que é estratégico para a reforma do mundo rural: “profundidade / extensão da luta reivindicatória da massa trabalhadora ocupada nos grandes setores produtivos por melhores condições de trabalho e emprego” (p.45).
6. “A revolução brasileira” (1966) nega a existência de relações semifeudais ou “pré-capitalistas” no mundo rural => a “questão das terras” aparece como presença de um resíduo propriamente camponês, efetivo ou potencial, afogado pela grande exploração que dominava a agropecuária brasileira, um subproduto da nossa formação persistente na evolução da economia agrária => uma espécie de economia camponesa “dispersa pelos poros da grande exploração ou nela incluída” => argumento geral do autor: sem dispor de “generalidade suficiente” (incapacidade para se espacializar), a luta pela terra não constituía “ponto de partida de amplos e contínuos movimentos de massa”.
7. Entretanto, para Caio Prado Jr, existia uma “questão de terras” que se relacionava com a forma como se distribui a propriedade fundiária rural, em especial pelo seu elevado grau de concentração que “limita consideravelmente as perspectivas da população trabalhadora rural, forçando-a a se empregar, sem alternativa, nos grandes domínios, e fazendo pender assim, em benefício dos empregadores, o equilíbrio do mercado e do trabalho” (Caio Prado... p. 46).
8. Pouco antes do golpe de 1964, faz referência a um modelo de “renovação da economia agrária” => greves canavieiras (Pernambuco, 1963) pelo cumprimento da legislação trabalhista, movimento social com impactos de três efeitos: (a) transmutação nas condições de vida dos trabalhadores rurais; (b) ganhos salariais dinamizaram a região; (c) efeito econômico das lutas reivindicativas, encarecendo a força de trabalho e forçando a abertura da propriedade fundiária: estímulo do acesso à terra repercutia no mercado de trabalho, valorizando o próprio trabalho.
9. Em “A revolução brasileira”, Caio Prado Jr associa o tema da questão agrária a um antigo axioma do pensamento social de que o grande óbice à “construção da nação moderna” era a carência endêmica da população, que só seria removida com a revolucionarização da economia nacional em “bases sustentadas” => busca de endogenia como ponto nevrálgico da problemática brasileira do mundo rural: explicava o lugar rural como decorrência de ordem “mais econômica” por conta da complexão exaustão que atingia o modelo industrialista de “mercado urbano restrito” => duas dimensões: formação (desvalidos rurais a serem incorporados) e contemporaneidade (capitalismo débil e “mercado interno” de base social “seletiva”) => qualificação econômico-construtiva à reforma do mundo rural: take off do desenvolvimento de uma economia que viesse a homogeneizar social e geograficamente o país.
A mediação católica por meio dos valores (José de Souza Martins):
10. Igreja como nova mediação camponesa (1980), CPT (1975): refundação da práxis agrária católica pela identificação com agruras que os camponeses sofriam => testemunhava sua opção pelos “pobres do campo”, no sofrimento do povo rural expropriado e oprimido pela modernização da agropecuária de “cima para baixo”, promovida depois de 1964 => apoio a resistência camponesa à modernização dos governos militares, estimulando, por meio de seus mediadores (CPT, depois também o MST), a luta entre o homem e sua terra de trabalho e a “terra de exploração”, território do grande capital protegido pelo Estado.
11. José de Souza Martins faz a formulação da polarização entre terra de trabalho e terra de negócio anunciada pela CNBB: estímulo que faltava para fundamentar o engajamento dos católicos ativando os pobres no vasto território das CPTs => chamava atenção para persistência e “drástico crescimento” do trabalho familiar como expressão de uma “processo combinado” de expropriação e exploração do camponês brasileiro => valorizar o papel inovador do camponês, focando num cenário de conflitos agrários que se deslocava no território, se afirmando em outras regiões nas quais os camponeses assumiam figurações diferentes (indo das Ligas Camponesas, no Nordeste, para o Sul do país) => Novos atores políticos (mediadores, ao invés dos partidos de esquerda) assumem função revolucionária ao estimular a resistência dos grupos agrários de natureza anti-capitalista.
12. Martins X PCB (restos feudais) / Caio Prado Jr: discursos marcados pelo “entendimento estrangeiro do destino do camponês”, ocidentalização do caso brasileiro => proposta de desconstruir paradigma que sustentava a visão do pequeno produtor rural como ser estranho à política e condenado a desaparecer (idéia de que os camponeses eram grupos que necessitavam da condução de outra classe: estratégia pecebista que negava aos grupos agrários o direito de se “expressar politicamente, de manifestar os termos de sua aliança com a classe operária sem a mediação de uma perspectiva política distorcida pelo compromisso da aliança preferencial com a burguesia, com as classes dominantes, com o governo e com o desenvolvimento da democracia burguesa” (Martins, 1981 apud Santos, 2008, p. 49).
13. Martins acreditava que um marxismo de rigor metodológico podia desvendar a nova situação do Brasil modernizado pelos militares “pelo alto” se contrapondo ao “marxismo evolucionário brasileiro”: propunha um marxismo alternativo ao “marxismo de credenciais” que não via o “fato novo” pós-1964 => no campo, entre lavradores autônomos de base familiar, se vive o confronto mais radical com a ordem vigente por se abrir o destino do desaparecimento, da proletarização, da perda de autonomia: busca de liberdade.
14. A questão agrária era a questão do capital: militarização da questão agrária sob a ditadura de 1964 => territorialização soldou o grande capital com interesses agrários => outra dimensão do problema da posse da terra / lutas camponesas ganhavam forte sentido anti-capitalista X via clássica de penetração do capitalismo na agricultura, no qual o campesinato tinha interesse => conclusão: reforma agrária distributivista seria uma proposta inexeqüível historicamente, em 1980, pois “não há como separar o que o próprio capitalismo unificou: a terra e o capital; já não há como fazer para que a luta pela terra não seja uma luta contra o capital, contra a expropriação e a exploração que estão na sua essência” (Martins, 1981 apud Santos, 2008, p.50).
15. Anos 1980, liberdades democráticas, ocupações de terra => posseiro como ente que questiona o pacto político de sustentação do Estado brasileiro: luta camponesa para provocar seu descumprimento e modificação => distinto do cálculo estratégico (Caio Prado Jr), posição que influenciara o agrarismo sindical-camponês (PCB).
16. Martins via as medidas de reforma agrária (Estatuto do Trabalhador Rural em destaque) de João Goulart propósitos para esvaziar as Ligas Camponesas => imaginário “dualista-democrático-burguês” do imediato pós-1964: diferentes grupos que procuraram resgatar a voz do camponês empenharam-se em “evitar uma revolução camponesa no Brasil” => preocupação com ampliação do mercado interno como estratégia de um desenvolvimento capitalista autônomo, antiimperialista => muito distante da luta pela terra, dos camponeses contra a renda fundiária.
17. Falência das esquerdas na condução dos camponeses: cultura “leninista” paralisou a luta dos camponeses pela sua libertação da dependência => para Martins, a Igreja mostrava-se muito competente no trato dos fatores de “inovação cultural” em contexto de tradição => recursos mobilizatórios que vão formar o MST em meados dos anos 1980.
18. Santos (2008): associação entre Caio Prado Jr e José de Souza Martins é útil para observar a passagem do estilo de condução dos camponeses por meio da política à interpelação mais recente através dos valores, no caso, religiosos => Caio Prado: idéia de revolução agrária não-camponesa realizada na Contag (rede nacional de federações e sindicatos), referência de transformação do rural => Martins: descontruir a cultura leninista, fazer com que as esquerdas compreendam a importância da convivência entre as classes básicas da “revolução brasileira”, os que sofrem a exploração e os que se ressentem do processo exploratório.
19. No PCB, ampliação do marxismo político comunista, acréscimos à releitura de Lênin, recurso à Gramsci e bibliografia não-comunista sobre a transição do atraso ao moderno => retematização do processo de constituição do “modo de produção especificamente capitalista” na nossa formação social => hipótese de modernização ao modo prussiano: valor estratégico à questão da democracia política, afastando o PCB da matriz marxista-leninista => Caio Prado, ponto de vista “circulacionista”: ampliação da economia política marxista para chegar a uma construção intelectual que aportaria um reformismo radicalmente restaurador da vida nacional.
Reforma agrária sob procedimentos democráticos (Ivan Ribeiro):
20. PCB, argumento: por via próxima ao caminho prussiano, o país se modernizara sob os auspícios da política, burguesia crescera e expandira seu domínio sem postular hegemonia social e política, sempre amparada no Estado, seu “partido político real” => 1930: manutenção de aliança com oligarquias agrárias atrasadas, realização como classe sem dirigir um processo revolucionário => burguesia incapaz de comandar a democratização da sociedade => pós-64: caráter não recessivo do regime militar, que desenvolveu a economia e modernizara o campo de modo conservador => final da década de 1970: dado estratégico era a relação entre o intenso crescimento das forças produtivas nacionais e a natureza da transição democrática em curso sob a lógica da modernização ao “modo prussiano” que diversificava a vida nacional => êxito da redemocratização dependia da oportunidade de intervenção e do desempenho eficaz dos atores políticos => década de 1980: complementaridade entre “transição política” e “revolução”.
21. Plano da “formulação política”: redimensionar proposição “desenvolvimentista” da tradição pecebista que associava crescimento econômico a um processo de complexificação social e democratização política do país, se reativasse cada vez mais a vida nacional => revolução brasileira como processo concretizável mediante “guerra de posições” gramsciana, duradoura e sob a forma de um progressivo “reformismo forte”, caminho considerado o mais adequado para que se lograsse adensar as transformações em curso no país naquele momento.
22. Alteração no “marxismo político” brasileiro como outro modo de colocar o problema camponês => ao invés da centralidade da aliança operário-camponesa, dá importância à relação entre a democratização social em marcha contínua no país e fortalecimento da democracia política, sugerindo que se considerassem os camponeses sob a dimensão geral da política como grupos agrários marcados por profundas condições de subordinação => em lugar de instrumentalizados para operações de poder, seres em uma “perspectiva neocapitalista e comunitário-desenvolvimentista” => grande aliança de classes viabilizaria X sem-terra se negam a aliança política e de classes => aliança de classes em torno da questão agrária não é possível devido à aliança do grande capital com a propriedade da terra (Amazônia): capitalismo rentista.
23. Hoje, principais protagonistas do processo de reforma do mundo rural permanecem repartidos => guerra de virulência desnecessária => tradição intelectual, pensamento social e cultura política de centro-esquerda, que pode ajudar a desbloquear o diálogo “impossível” => Inácio Rangel: preocupação com a reforma agrária no sentido de não ser desestabilizador da democracia => Caio Prado: ausência de alicerces sólidos para encaminhar “reformas de base” => outros autores (Ribeiro): mudanças como resultado de um reformismo permanente, sem messianismos.
24. Desdramatizada do resíduo campesinista, economia agrária familiar chamada a exercer papel protagonista socialmente decisivo no renovamento do mundo rural => ciências sociais interdisciplinares na trilha dos clássicos do pensamento social.
REFERÊNCIA:
COSTA, L.F.C; FLEXOR, G; SANTOS, R. (orgs.) Mundo Rural Brasileiro. Ensaios
interdisciplinares Mauad X-EDUR, Rio de Janeiro - Seropédica, 2008.
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