Fracasso de estratégias exclusivamente proibicionistas coloca a necessidade de um amplo debate que nos leve a soluções inovodoras, menos danosas ao indivíduo e à sociedade
Rio de Janeiro, 28 de outubro de 2009
Em um extremo, o drama individual dos que são tomados pelo vício e colocam em risco a própria vida e a de pessoas em seu redor. No outro, a associação estreita entre drogas e domínio armado de territórios, elevando a violência a níveis inaceitáveis. No meio, uma quantidade crescente de pequenos consumidores e vendedores, que, tratados como criminosos, sobrecarregam o sistema prisional e, sem alternativa, acabam por engrossar as fileiras do crime organizado.
Frente a uma situação que se deteriora a cada dia, com custos humanos e sociais cada vez mais altos, repensar a estratégia de combate às drogas baseada exclusivamente na repressão à produção e distribuição bem como na criminalização do consumo passa a ser um imperativo. Mas se o tema já é polêmico em toda parte, no Rio de Janeiro ele é explosivo. Literalmente.
O 22º. OsteRio decidiu romper o tabu e trazer a questão ao debate amplo e franco. Para isso, convidou para a mesa três estudiosos do assunto: o antropólogo Rubem César Fernandes, do Viva Rio; o cientista político e professor da Uerj Jorge da Silva, ex-chefe do Estado Maior da PM do Rio; e o economista Edmar Bacha, um dos "pais" do Plano Real. Todos membros da recém-formada Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia.
O que eles mostraram foi que as políticas proibicionistas adotadas até agora em relação às drogas não foram capazes de conter nem o tráfico, nem o consumo e muito menos a violência. E propuseram um novo paradigma baseado em três diretrizes: tratar a dependência como questão de saúde pública; descriminalizar o consumo de drogas leves em conjunto com campanhas de prevenção; e focalizar a repressão no crime organizado.
"Este modelo baseado exclusivamente em repressão está falido. Os traficantes precisam ser duramente combatidos, mas de forma inteligente. A polícia está matando demais e morrendo demais. Famílias estão sendo destroçadas. É preciso haver mais compaixão, principalmente com as comunidades", disse o Cel. Jorge da Silva, ele mesmo oriundo do Complexo do Alemão, onde até hoje vivem parentes seus.
A declaração, feita no dia seguinte do assassinato de uma jovem de 18 anos por um viciado em crack, na Zona Sul, e numa semana que já computa cerca de 50 mortos na guerra do tráfico, na Zona Norte, deu pano para muita discussão no segundo andar da Osteria Dell'Angolo, na noite de segunda-feira 26 de outubro.
Foco no crime organizado
Das várias questões levantadas pela plateia, ficou uma dúvida central: Descriminalizar a maconha contribuiria para reduzir os índices de violência no Rio? Como?
Rubem César Fernandes argumentou que existem no Brasil 80 mil pessoas presas por tráfico de drogas, a maioria réus primários, presos em flagrante, sozinhos e sem portar arma no momento do flagrante. Ou seja: não se trata de traficantes contumazes.
"Estamos enchendo nossas prisões com pequenos consumidores e vendedores e jogando-os no colo do crime organizado", disse.
Distribuída no debate, a Declaração da Comissão Latino Americana sobre Drogas e Democracia, que tem à frente três ex-presidentes - Fernando Henrique Cardoso, do Brasil; Ernesto Zedillo, do México; e César Gaviria, da Colômbia, além de 17 personalidades de todo o continente, diz o seguinte:
"A maconha é, de longe, a droga mais difundida na América Latina. Seu consumo tem um impacto negativo sobre a saúde, inclusive a saúde mental. Entretanto, a evidência empírica disponível indica que os danos causados por esta droga são similares aos causados pelo álcool e o tabaco. Mais importante ainda, grande parte dos danos associados à maconha - da prisão e encarceramento indiscriminado de consumidores à violência e corrupção que afetam toda a sociedade - são o resultado das políticas proibicionistas vigentes".
Segundo o Cel. Jorge da Silva, o grande empenho no combate ao tráfico não tem se traduzido em mais tranqüilidade para a população carioca. E apresentou os seguintes dados: em 2007, foram apreendidos no Rio 10.329 quilos de maconha e 296 de cocaína. Em 2008, foram 17 mil quilos de maconha e 538 de cocaína. Paralelamente, os roubos a transeuntes cresceram de 59 mil, em 2007, para 68 mil, no ano seguinte.
"Isso sem contar os tiroteios, as balas perdidas. Não temos tranqüilidade porque a polícia está com o foco errado. O que precisa ser reprimido é o crime organizado, o domínio armado de territórios, mas isso requer mais cérebro do que músculos", defendeu o coronel.
Problema de saúde pública
A ideia do novo paradigma, proposto pela Comissão Latino Americana , é concentrar os esforços da polícia e do sistema penal sobre o crime organizado e transformar os usuários de compradores de drogas no mercado ilegal em pacientes do sistema de saúde.
"A enorme capacidade de violência e corrupção do narcotráfico só poderá ser combatida efetivamente se suas fontes de renda forem substancialmente debilitadas. Com este objetivo, o Estado deve criar as leis, instituições e regulações que permitam que as pessoas dependentes de drogas deixem de ser compradores no mercado ilegal para se transformar em pacientes do sistema de saúde. Isto, em conjunto com campanhas educativas e de informação, levaria a uma redução da demanda de drogas ilegais e à derrocada dos preços das mesmas, minando-se desta maneira as bases econômicas deste negócio criminoso", diz a Declaração da Comissão Latino-Americana.
"Tratado como criminoso, o dependente nem chega ao sistema de saúde", alegou Rubem César, que defendeu que o tema seja trazido à pauta com urgência. "O consumo de drogas é ascendente, principalmente o de crack. A resposta do mundo tem sido considerar o problema como de saúde pública, visando a redução de danos. Uma saída para o Brasil seria incluir o atendimento a dependentes no Programa de Saúde da Família, que tem muito maior capilaridade e recursos do que a área de saúde mental, onde as drogas se incluem hoje".
Campanhas de conscientização contra o consumo
Já a diminuição do consumo seria tarefa para uma campanha sistemática de conscientização sobre os danos causados pelas drogas. "É preciso se investir em campanhas sérias de desglamourização. A drástica redução no consumo de tabaco, mesmo sendo uma droga legal, se deveu a isso", disse Miguel Darcy de Oliveira, também integrante da comissão brasileira.
Edmar Bacha chamou atenção que no Rio a luta contra a violência é a prioridade número 1, e que esta não é intrinsicamente vinculada à droga. "Há diversos países onde é altíssimo o consumo de drogas e nem por isso há violência. O combate à violência pode ser conseguido com mais eficácia da ação policial, como ocorreu em Bogotá, Medellín e mesmo em São Paulo", defendeu.
Para o economista Sérgio Guimarães, subsecretário estadual de Fazenda, a violência no Rio é mais um problema imposto pelo domínio armado de territórios do que pelo tráfico de drogas. Ele fez um estudo para quantificar os ganhos do tráfico no Rio e constatou que o setor vem perdendo força como negócio. "Há fontes mais rentáveis a serem exploradas se você domina um território. As milícias já se deram conta disso", argumentou.
No final do debate, houve um consenso de que os dependentes devem ser tratados pelo sistema de saúde e a repressão implacável se concentrar no crime organizado. Qual a melhor posição a se adotar quanto aos pequenos consumidores individuais é o que continua dividindo opiniões. As soluções encontradas por diferentes países têm sido as mais variadas, mostrou o encontro. Pensar políticas inovadoras que causem menos danos aos indivíduos e à sociedade é nosso maior desafio no momento.
Ao final, Edmar Bacha informou que o deputado Paulo Teixeira, do PT paulista, vai apresentar projeto complementar à lei de drogas descriminalizando o pequeno usuário e o pequeno comerciante. "Teremos que nos posicionar em relação a isso. Precisamos nos abrir para o debate já".
Retirado de http://www.iets.org.br/article.php3?id_article=1467
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