terça-feira, 10 de novembro de 2009

"Em que consiste o familiar da agricultura familiar?", Maria José Carneiro, fichamento...

1. Carneiro (2008) aponta dois problemas no debate sobre a agricultura familiar no Brasil: (I) dificuldade de se articularem o modelo construído como definidor da agricultura familiar e a realidade da qual se está tratando (Weber e a questão dos modelos classificatórios); (II) unidade de análise quando nos referimos à agricultura familiar.

2. A família como universo de observação: escolha que permite reconhecer as relações de força entre os agentes sociais situados diferentemente na esfera do parentesco e da produção. Desta forma, é possível identificar a influência dos valores familiares sobre o comportamento dos indivíduos em suas práticas econômicas dentro e fora da família. Neste sentido, a análise microssociológica da família nos permitirá esclarecer a multiplicidade de papéis exercidos por seus membros e as tensões resultantes de seus objetivos opostos.

3. O caráter familiar da agricultura familiar: por ser sustentada pela relação entre trabalho e parentesco, a unidade familiar de produção apresenta maior margem de negociação interna na elaboração de caminhos alternativos de reprodução social. A unidade familiar plástica e mutante torna-se capaz de elaborar estratégias para se adaptar às condições econômicas e sociais: rearranjos que dialogam com a tradição, sendo que a trajetória econômica dessas unidades produtivas sofre interferência de fatores de ordem cultural e subjetiva.

4. a análise das unidades familiares de produção agrícola devem contemplar dois aspectos: (I) as relações entre os indivíduos e (II) os valores que dão sentido a essas relações => para compreender a dinâmica de reprodução das unidades familiares deve-se levar em conta a diversidade de interesses em jogo decorrente das diferentes posições ocupadas por seus membros na hierarquia familiar.

5. Para entender as estratégias que garantem a reprodução social das famílias: compreender as regras de transmissão do patrimônio familiar (terra, principalmente), as estratégias matrimoniais e as posições diferenciadas dos seus membros na estrutura familiar e na sociedade. Neste sentido, o acesso da mulher à terra (por herança ou processo de reforma agrária) depende da posição específica da mulher no processo produtivo e dos valores que sustentam essa posição.

6. Agricultura familiar e atividades não-agrícolas: unidade familiar como unidade de observação como procedimento fundamental para compreender as mudanças recentes no campo brasileiro, em particular a mudança dos padrões de comportamento no interior da família agrícola e sua relação com o aumento das atividades não-agrícolas => masculinização e envelhecimento da população rural: relação entre a intensidade do êxodo juvenil feminino e a alocação do poder no interior da família => efeitos do processo de individualização no interior da família camponesa: salário como remuneração do trabalho de fora da agricultura como elemento de ruptura da identidade entre família e unidade de produção; os filhos/filhas não se sentem mais estimulados a permanecer trabalhando com e para a família, pois a renda obtida ali é indivisa e insuficiente para pagar um salário individual equivalente ao mercado de trabalho => a liberdade de escolha passa a orientar a atitude dos jovens e a elaboração de suas estratégias profissionais estabelecendo as condições para a construção de um projeto modernizador, individualizante, centrado nas escolhas individuais => origem de um dos grandes problemas da exploração familiar: a falta de sucessor para o chefe da unidade.

7. Complexidade nas características do movimento de esvaziamento do campo no Brasil:

(I) intensificação da comunicação entre cidade e campo, com acesso facilitado a bens e valores urbanos, somada ao desemprego e o aumento da violência nos grandes centros urbanos => jovens rurais reconhecem as vantagens de morarem no campo, desde que seja garantido o acesso a um conjunto de bens, simbólicos e materiais, semelhantes aos disponíveis nos centros urbanos (lazer, estudo e trabalho);

(II) desejo de romper com estilo de vida rural é neutralizado pela valorização urbana da vida no campo, que não pressupõe assumir a atividade agrícola => se forem dadas condições para que os jovens desenvolvam atividades alternativas à agricultura, além de ampliar e melhorar as condições de acesso aos bens (materiais e simbólicos) por eles valorizados, a vida no campo passe a oferecer alternativas bem mais atraentes. As perspectivas de vida da população rural nas sociedades contemporâneas estão associadas à intensificação da comunicação entre universos culturais distintos em um contexto de diluição das fronteiras entre o “urbano” e o “rural”. Entretanto, as possibilidades de explorar outras fontes de rendimentos não independem dos saberes acumulados socialmente e da extensão das redes de relações sociais que, cada vez mais, se ampliam para além dos limites físicos das localidades.

8. Como expressão desse movimento, a “residência modernizada” passa a símbolo da nova condição social: casa assumindo características “urbanas” ao mesmo tempo em que pequenos proprietários são levados a vender suas propriedades, transformadas em sítios de lazer, e se assalariarem nas funções de jardineiro ou caseiro, muitas vezes na sua ex-propriedade, porque a agricultura se revela incapaz de manter os membros da família.

9. Conclusões:

(I) significado das atividades não-agrícolas deverá ser buscado na posição que elas ocupam no conjunto das estratégias familiares de reprodução social e, sobretudo, no contexto socioeconômico em que se inserem;

(II) a pluriatividade é uma noção que designa um processo social plural que reconhece processos pluriativos incorporadores de atividades não-agrícolas como constitutivos da própria dinâmica social da agricultura familiar => percepção que capacita perceber processos sociais distintos e até contraditórios definidos pelo campo de possibilidade de realização dos projetos familiares, entendido como espaço para formulação e implementação de projetos definidos pela combinação das condições socioeconômicas e fatores peculiares às unidades familiares (capital cultural, capital material, fase do desenvolvimento do grupo doméstico, composição etária e sexual dos membros da unidade familiar e posição dos indivíduos que desenvolvem a atividade não agrícola na hierarquia familiar);

(III) falar em agricultura familiar requer incorporar a complexidade das relações sociais que definem e redefinem a família: torna-se necessário redefinir também o universo de observação, privilegiando a família como unidade social.

REFERÊNCIA:
COSTA, L.F.C; FLEXOR, G; SANTOS, R. (orgs.) Mundo Rural Brasileiro. Ensaios interdisciplinares Mauad X-EDUR, Rio de Janeiro - Seropédica, 2008.

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