segunda-feira, 2 de novembro de 2009

"A idéia de cultura" (Terry Eagleton), fichamento...

1. Complexidade da palavra “cultura”: conceito derivado do de natureza, a mais nobre as atividades humanas é derivada de trabalho e agricultura, colheita e cultivo: passou-se muito tempo para que “cultura” como atividade viesse a denotar uma entidade. De início, denotava um processo completamente material, depois metaforicamente transferido para questões do espírito, mapeando em seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da existência rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, do lavrar o solo à divisão do átomo. Esta mudança semântica é paradoxal, pois os habitantes urbanos são “cultos” e aqueles que cultivam a terra são menos capazes de cultivar a si mesmos, pois a agricultura não deixa lazer algum para a cultura. A raiz latina da palavra “cultura” é colere, que significa qualquer coisa, desde cultivar e habitar (colonus => colonialismo) a adorar e proteger. Cultus, no termo religioso “culto”, da mesmo forma que a idéia de cultura se coloca no lugar de um sentido devanecente de divindade e transcendência na Idade Moderna, herdando o manto da autoridade religiosa, mas tem afinidades com ocupação e invasão. É entre pólos positivo e negativo que o conceito está localizado nos dias de hoje, tornando sua história social excepcionalmente confusa e ambivalente.

2. Além de guardar em si os resquícios de uma transição histórica de grande importância, a palavra “cultura” codifica várias questões filosóficas fundamentais, como liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer, mudança e identidade, o dado e o criado. O termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos no mundo e o que o mundo nos faz. Trata-se de uma noção realista que tem uma dimensão “construtivista” e, desta forma, de reconhecer que o termo “cultura” já é a desconstrução da oposição entre cultura e natureza.

3. Uma virada dialética mostra que os meios culturais que usamos para transformar a natureza são eles próprios derivados dela: a natureza produz cultura que transforma a natureza. Desta forma, a cultura pode ser vista como meio da auto-renovação constante da natureza, ou seja, a natureza mesma produz os meios de sua própria transcendência: se a natureza é sempre de alguma forma cultural, então as culturas são construídas com base no incessante tráfego com a natureza que chamamos de trabalho. Se cultura originalmente significa lavoura, cultivo agrícola, sugere regulação e crescimento espontâneo.O cultural é o que podemos mudar, sendo que o material a ser alterado tem sua própria existência autônoma, tomando emprestado algo da recalcitrância da natureza.

4. Cultura também é uma questão de seguir regras, envolvendo uma interação entre o regulado e o não-regulado. Isso não significa que qualquer que seja a ação possa contar como seguimento de uma regra, pois as regras, como culturas, não são nem puramente aleatórias nem rigidamente determinadas, pois ambas envolvem a idéia de liberdade. Neste sentido, a idéia de cultura significa uma dupla recusa: do determinismo orgânico e da autonomia do espírito, rejeitando o naturalismo (pois há algo na natureza que a excede e a anula) e o idealismo (pois mesmo o mais nobre agir humano tem raízes humildes na biologia e no ambiente natural). Desta forma, é um termo descritivo e analítico, que compreende uma tensão entre fazer e ser feito, racionalidade e espontaneidade. Cultura alude ao contraste político entre evolução (“orgânica” e “espontânea”) e revolução (artificial e forçada), sugerindo como se poderia ir além desta antítese batida, ao combinar crescimento e cálculo, liberdade e necessidade, a idéia de um projeto consciente e um excedente não planejável.

5. De outra forma, a palavra “cultura” se volta para duas direções opostas, sugerindo uma divisão dentro de nós mesmos, entre aquela parte de nós que se cultiva e refina, e aquilo que constitui a matéria-prima para este refinamento. Se a cultura for entendida como autocultura, postula uma dualidade entre faculdades superiores e inferiores, vontade e desejo, razão e paixão, dualidade que ela se propõe a superar. Como cultura, a palavra “natureza” significa tanto o que estão a nossa volta como o que está dentro de nós, constituindo uma questão de auto-superação e de auto-realização. Neste sentido, se somos seres culturais, também somos parte da natureza que trabalhamos. Neste processo de automoldagem, unem-se ação e passividade, o ardorosamente desejado e o puramente dado: ao mesmo tempo que nos assemelhamos da natureza nos diferimos dela, pois podemos fazer isso à nos mesmos, introduzindo no mundo um grau de auto-reflexividade a que o resto da natureza não pode aspirar. A cultura já deve representar um potencial dentro da natureza humana, se for para que vingue, mas a própria necessidade de cultura sugere que há algo faltando na natureza. Desta forma, se existe uma história e uma política ocultas na palavra “cultura”, há também uma teologia.

6. Entretanto, cultura também pode ser algo feito a nós, em especial pelo Estado. Eagleton (2005) entende que numa sociedade civil, os indivíduos vivem em um estado de antagonismo crônico, impelidos por interesses opostos, mas o Estado é um âmbito transcendente no qual as divisões podem ser harmoniosamente reconciliadas, desde que o Estado tenha estado em atividade na sociedade civil, aplacando rancores e refinando afinidades, sendo cultura este processo. A cultura seria uma espécie de pedagogia ética que nos torna aptos para a cidadania política: temos que ser homens para ser cidadãos. Assim, o Estado encarna a cultura, que corporifica nossa humanidade comum. Para que a cultura se eleve acima da política, esta deve se mover para dentro de uma dimensão ética mais profunda, que transforme os indivíduos em cidadãos apropriadamente responsáveis e de boa índole. Neste sentido, a cultura, ou o Estado, são uma espécie de utopia prematura que abole a luta em um nível imaginário para não precisar resolvê-la em um nível político. Por isso, os que proclamam a necessidade de um período de incubação ética para preparar homens e mulheres para a cidadania política são aqueles que negam a povos colonizados o direito de autogovernar-se até que estejam “civilizados” o suficiente para exercê-lo responsavelmente, desprezando o fato de que a melhor preparação para a independência política é a independência política. A cultura destila nossa humanidade comum a partir de nossos eus políticos sectários, resgatando o espírito dos sentidos, o imutável do temporal e a unidade da diversidade. Desta forma, designa uma espécie de autodivisão e autocura pela qual nossos eus rebeldes e terrestres não são abolidos, mas refinados valendo-se de dentro por uma espécie mais ideal de humanidade. A cultura é uma forma de sujeito universal agindo dentro de cada um de nós, exatamente como o Estado é a presença do universal dentro do âmbito particularista da sociedade civil.

7. Nesta tradição de pensamento, em um nível a cultura constitui-se uma crítica da vida social, enquanto em outro é cúmplice dela. Aqui a cultura ainda não se opôs inteiramente ao real, como na tradição inglesa de “cultura e sociedade” que se desenvolveu. Para Schiller, a cultura é o mecanismo da hegemonia, que molda os sujeitos humanos às necessidades de um novo tipo de sociedade politicamente organizada, remodelando-os com base nos agentes dóceis, moderados, de elevados princípios, pacíficos, conciliadores e desinteressados desta ordem política. Para tal, age como uma espécie de crítica ou desconstrução imanente, ocupando uma sociedade irregenerada a partir de dentro para derrubar sua resistência às ações do espírito. Na Idade Moderna, mais tarde, a cultura se tornará sabedoria olímpica ou arma ideológica, forma isolada de crítica social ou processo profundamente comprometido com o status quo. Mas neste momento histórico, a cultura pode ser vista como uma crítica ideal e uma força social real.

8. Raymond Williams investigou parte da complexa história da palavra “cultura”, distinguindo três sentidos modernos principais. Com base em suas raízes etimológicas no trabalho rural, significa algo como civilidade; depois no século XVIII, sinônima de civilização (processo geral de progresso intelectual, material e espiritual).

9. Na qualidade de idéia, civilização procede em uma equiparação significativa entre costumes e moral. A própria palavra implica uma correlação dúbia entre conduta polida e comportamento ético. Como sinônimo de “civilização”, “cultura” pertencia ao espírito geral do iluminismo, constituindo uma noção francesa que incluía tipicamente a vida política, econômica e técnica, enquanto a noção germânica de “cultura” tinha um referencial religiosa, artístico e intelectual. Enquanto a “civilização” minimizava as diferenças nacionais, a “cultura” as realçava, sendo que a tensão entre “cultura” e “civilização” teve relação muito forte com a rivalidade entre Alemanha e França.

10. Por volta do século XIX, três coisas sucedem a essa noção de “cultura”: (I) começa a deixar de ser um sinônimo de civilização para vir a ser seu antônimo, na medida em que os aspectos descritivo e normativo da palavra “civilização” começam a se separar. A cultura é uma questão do desenvolvimento total e harmonioso da personalidade, mas ninguém pode realizar isso isoladamente, pois a cultura exige certas condições sociais, podendo ter uma dimensão política; (II) “civilização” tinha adquirido uma concepção inevitavelmente imperialista, suficiente para desacreditá-la aos olhos de alguns liberais, sendo necessária outra palavra para denotar como a vida social deveria ser em vez de como era. Assim, “cultura” se tornou o nome da crítica romântica pré-marxista ao capitalismo industrial primitivo (civilização: caráter sociável, questão de espírito cordial e maneiras agradáveis X cultura: mais solene, espiritual, crítico e de altos princípios); (III) o conceito de “cultura” nascido no coração do iluminismo lutava agora contra seus progenitores na querela entre tradição e modernidade. Civilização (abstrata, alienada, fragmentada, mecanicista, utilitária, escrava de uma crença obtusa no progresso material) X cultura (holística, orgânica, sensível, autotélica, recordável). Apesar dos fios políticos entre os dois conceitos serem emaranhados, a civilização era no seu todo burguesa, enquanto a cultura era ao mesmo tempo aristocrática e populista.

11. O segundo elemento de desenvolvimento que Williams descobre: a partir do idealismo alemão, a cultura assume algo do significado moderno de um modo de vida característico. Desta forma, a cultura significa uma diversidade de formas de vida específicas, cada um com suas leis evolutivas próprias e peculiares, e não uma narrativa grandiosa e unilinear da humanidade em seu todo. Para Herder, a luta entre os dois sentidos se associa a um conflito entre a Europa (o eurocentrismo de uma cultura como civilização univeral) e os seus Outros coloniais (clamando que não viveram e pereceram em prol da honra duvidosa de ter sua posteridade tornada feliz por uma cultura européia ilusoriamente superior). Neste sentido, a idéia de cultura como um modo de vida característico está estritamente ligada a um pendor romântico anti-colonialista por sociedades “exóticas” subjugadas. O exotismo ressurgirá no século XX nos aspectos primitivistas do modernismo na moderna antropologia cultural e, bem mais tarde, em uma roupagem pós-moderna, com a romantização da cultura popular.

12. Herder, em um gesto prefigurativo do pós-modernismo, propõe pluralizar o termo “cultura” em um sentido que tentativamente criará raízes em meados do século XIX, mas não se estabelecerá decididamente até o início do século XX. Desta forma, embora “civilização” e “cultura” continuem sendo usadas de modo intercambiável, especialmente pelos antropólogos, cultura passa a ser quase o oposto de civilidade, sendo mais um modo de descrever as formas de vida de “selvagens” do que um termo para os civilizados. Os selvagens passam a ser cultos: para românticos radicais, a cultura “orgânica” podia fornecer uma crítica da sociedade real. Como exercício livre de pensamento desinteressado, pode minar interesses sociais egoístas, mas solapando-os em nome do todo social, reforça a própria ordem social que censura.

13. Eagleton (2005) destaca que a cultura como orgânica e como civilidade paira indecisamente entre fato e valor. A fusão do descritivo e do normativo, conservada tanto de “civilização” quanto do sentido universalista de “cultura” despontará na nossa própria época sob a roupagem de relativismo cultural, que apesar de “pós-moderno”, deriva de ambigüidades da época moderna. Neste sentido, essa “totalidade” é um mito, pois os “hábitos, pensamentos e ações mais heterogêneos podem coexistir lado a lado” (Boas), como ensinado pelos antropólogos. Ao passo que a cultura como civilização é rigorosamente discriminativa, a cultura como forma de vida não o é. Para os pós-modernistas, modos de vida totais devem ser louvados quando se trata de dissidentes ou grupos minoritários, mas censurados quando se trata das maiorias. Neste sentido, como teoria, o pós-modernismo aparece depois dos grandes movimentos de libertação nacional dos meados do século XX, sendo literal ou metaforicamente jovem demais para recordar-se de tais cataclismos políticos.

14. Eagleton (2005) identifica a dificuldade de compatibilizar a pluralização do conceito de cultura com a manutenção de seu caráter positivo, pois historicamente existiu uma variedade de culturas de tortura, por exemplo, que mesmo os pluralistas mais sinceros relutariam em sancionar como mais uma instância da colorida tapeçaria da espécie humana. Neste sentido, o autor classifica como formalistas puros aqueles que consideram a pluralidade como um valor em si mesmo. Como acontece em muito do pensamento pós-moderno, o pluralismo encontra-se aqui estranhamente cruzado com a auto-identidade. Ao invés de dissolver identidades distintas, ele as multiplica: pluralismo pressupõe identidade, como hibridização pressupõe pureza, tendo em vista que só se pode hibridizar uma cultura que é pura. O autor destaca que nenhum cultura humana é mais heterogênea que o capitalismo.

15. Eagleton (2005) vê a crítica anticapitalista como a primeira variante importante da palavra “cultura”; a segunda é um estreitamento e, concomitantemente, uma pluralização da noção a um modo de vida total; a terceira é a sua gradual especialização às artes, podendo incluir atividade intelectual em geral (Ciência, Filosofia, Educação) ou ser mais limitada a atividades supostamente mais “imaginativas” (Música, Pintura, Literatura). As história das conseqüências disso para as próprias artes é parte da narrativa do modernismo, sendo que é o pós-modernismo que procura aliviar as artes dessa carga opressiva de ansiedade, deixando-as livres para uma espécie razoavelmente frívola de independência. Antes disso, o romantismo havia tentado realizar o impossível, buscando na cultura estética uma alternativa à política e o paradigma de uma ordem política transformada. Esta elevação da arte a serviço da humanidade era inevitavelmente autodestrutiva, conferindo ao artista romântico um status transcendente em desacordo com a significação política dele, além da imagem de boa vida representar a sua real inacessibilidade como armadilha perigosa de toda utopia.

16. O autor destaca que a cultura era autodestrutiva no sentido de sua afirmação de totalidade, de simetria, do desenvolvimento das capacidades humanas: se a cultura é um livre e autodeleitante jogo do espírito, também é uma idéia que se posiciona firmemente contra o partidarismo. A cultura seria um antídoto à política que modera a fanática estreiteza de mentalidade no seu apelo pelo equilíbrio. Neste sentido, a cultura pode ser uma crítica ao capitalismo, mas é também uma crítica das posições que se opõe a ele: a cultura exigem dos que clamam por justiça que olhem para além de seus próprios interesses parciais, que olhem para o todo, para os interesses de seus governantes da mesma forma que para seus próprios. Desta forma, a associação da cultura com a justiça para grupos minoritários é um desenvolvimento novo.

17. Com a recusa do partidarismo, a cultura aparenta ser uma noção politicamente neutra, mas é nesse compromisso formal com a multiformidade que é mais clamorosamente partidária. Existe, de fato, uma política implícita precisamente nessa não-utilidade: além da cultura, está em questão uma seleção particular de valores culturais referente às prescrições associadas a “ser civilizado ou culto” que não são politicamente inocentes (abençoado com sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras agradáveis e uma mentalidade aberta; portar-se razoável e moderadamente, com uma sensibilidade inata para os interesses dos outros; exercitar a autodisciplina; estar preparado para sacrificar os próprios interesses egoístas pelo bem do todo). O autor destaca que o indivíduo culto parece-se suspeitosamente com um liberal de tendências conservadoras. Neste sentido, esta versão da cultura é mais contemplativa do que engajada: a cultura não diz o que quer que seja, sendo eloqüente a ponto extremo de ser muda. Para Schiller, a cultura parece ser ao mesmo tempo fonte da ação e negação dela, com a existência de uma tensão entre aquilo que faz a nossa prática criativa e o próprio fato mundano da prática ela mesma. Para Matthew Arnold, a cultura é ao mesmo tempo um ideal de perfeição absoluta e o processo histórico imperfeito que trabalha para esse fim. Desta forma, parece haver uma brecha constitutiva entre a cultura e a sua encarnação física, pois a multiformidade do estético inspira ações que, por sua própria determinação, a contradizem.

18. Além de um texto histórico e filosófico, a palavra “cultura” é lugar de um conflito político (Raymond Williams). Essa corrente de pensamento remete a um esforço para ligar vários significados de cultura que estão se distanciando de forma gradual: cultura (no sentido das artes) define uma qualidade de vida refinada (cultura como civilidade) cuja realização na cultura (no sentido de vida social) como um todo é a tarefa da mudança política. Desta forma, se reúnem o estético e o antropológico.

19. Entretanto, Eagleton (2005) coloca a seguinte questão: o que liga cultura como crítica utópica, cultura como modo de vida e cultura como criação artística? A resposta é negativa, pois as três são diferentes reações ao fracasso da cultura como civilização real, como a grande narrativa do autodesenvolvimento humano. Desta forma, a idéia de cultura se defronta com algumas alternativas desagradáveis: (I) manter seu alcance global e sua relevância social, mas recuar do presente melancólico para tornar-se uma imagem comoventemente em perigo de um futuro desejável; (II) pode se tornar uma crítica utópica, ao mesmo tempo prodigiosamente criativa e politicamente debilitada por um passado antigo, que se parece com um futuro emancipado no simples fato não ignorável de sua não-existência; (III) se faz concreta, correndo o risco de, ao emprestar uma especificidade de que muito necessita, perder sua normatividade; (IV) valorizar o fato formal da pluralidade dessas culturas em relação ao seu conteúdo intrínseco, ganhando em especificidade o que perde em capacidade crítica (pensamento pós-moderno).

20. A terceira resposta à crise da cultura como civilização é reduzir a categoria inteira a um punhado de obras artísticas. Cultura significa um corpo de trabalhos artísticos e intelectuais de valor reconhecido, juntamente com as instituições que o produzem, difundem e regulam: é ao mesmo tempo sintoma e solução. Eagleton (2005) coloca as seguintes questões como problema: em que condições sociais fica a criatividade confinada à Música e à Poesia, enquanto a Ciência, a tecnologia, a política, o trabalho e a domesticidade tornam-se monotonamente prosaicos? Pode-se fazer a essa noção de cultura a famosa pergunta de Marx à religião: para que alienação deplorável é essa transcendência uma pobre compensação? Essa idéia minoritária de cultura, embora sintoma de crise histórica, é uma espécie de solução que confere cor e textura à abstração iluminista da cultura como civilização com a imediação sensível da cultura como forma de vida, além de herdar o viés normativo da cultura como civilização. As artes unem o real e o desejável à maneira de uma política radical.

21. Eagleton (2005) entende que os três sentidos de cultura não são facilmente separáveis. A cultura como crítica precisa ser indicativa daquelas práticas presentes que prefiguram algo da amizade e satisfação pelas quais anseia, encontrada em parte na produção artística e nas culturas marginais ainda não totalmente absorvidas pela lógica da utilidade, tentando evitar o modo puramente subjuntivo de “má” utopia. Neste sentido, uma boa utopia descobre uma ponte entre o presente e o futuro naquelas forças no presente que são potencialmente capazes de transformá-lo: um futuro desejável também deve ser exeqüível. Desta forma, ligado aos outros tipos de cultura existentes, o tipo mais utópico pode tornar-se uma forma de crítica imanente, julgando deficiente o presente ao medi-lo com relação a normas que ele próprio gerou: se o real contém aquilo que o contradiz, o termo “cultura” está destinado a olhar em duas direções opostas. Neste sentido, a cultura desponta quando a civilização começa a parecer autocontraditória: a sociedade civilizada se expande, chegando a um ponto em que ela se impõe a alguns de seus teóricos uma forma de reflexão admiravelmente nova, conhecida como pensamento dialético, que surge porque fica cada vez menos possível ignorar o fato de que a civilização, no próprio ato de realizar alguns potenciais humanos, também suprime danosamente outros. A cultura pode agir como crítica do presente ao mesmo tempo que está solidamente baseada dentro dele: não é nem o mero outro da sociedade nem idêntica a ela, mas se move, simultaneamente, a favor e contra a corrente natural do progresso histórico. Trata-se, então, de um conjunto de potenciais produzidos pela história e que trabalham subversivamente dentro dela.

22. Eagleton (2005) evidencia que o truque é como revelar essas capacidades. A resposta de Marx será o socialismo: nada no futuro socialista poderá ser autêntico a menos que tome como exemplo algo no presente capitalista. Se o fato dos aspectos positivos e negativos da história estarem estreitamente ligados é um pensamento incômodo, também é animador: a repressão e a exploração não funcionariam a menos que houvesse seres humanos razoavelmente autônomos, refletivos e talentosos para explorar ou serem explorados. Neste sentido, as práticas culturais mais benignas que conhecemos como criação estão implícitas na própria existência da injustiça. Todas as culturas devem incluir práticas como criação de crianças, educação, assistência social, comunicação e apoio mútuo, pois, em caso contrário, seriam incapazes de se reproduzir e, assim, incapazes de engajar-se em práticas exploradoras. Isso quer dizer que nenhuma cultura pode ser inteiramente negativa, mas todas são autocontraditórias: isso é motivo de cinismo e esperança, pois elas próprias engendram as forças que devem transformá-las.

23. Outras maneiras de interação dos três sentidos de cultura. A idéia de cultura como modo de vida orgânico faz parte da “alta” cultura, produto de intelectuais cultos que pode representar o outro primordial que poderia revitalizar as suas próprias sociedades degeneradas. Assim, a cultura é ao mesmo tempo, uma realidade concreta e uma visão enevoada da perfeição e apreende alguma coisa dessa dualidade: o excessivamente cultivado e o subdesenvolvido forjam estranhas alianças.

24. Essas duas noções de cultura se relacionam de outras formas. A cultura pode ser o arauto de uma nova existência social, mas a questão é circular: o cultivo individual agora depende mais e mais da cultura em seu sentido social. É fácil ver esses dois sentidos de cultura em desacordo, daí surgem mais questões: não é o excesso de cultivo o inimigo da ação? Não poderia a sensitividade enclausurada, matizada e com miríades de interesses que as artes trazem consigo incapacitar-nos para comprometimentos mais amplos e menos ambivalentes? Será que a intensidade focalizada que as belas-artes exigem não nos incapacita para esses assuntos rotineiros, mesmo que concentremos nossa atenção em obras de arte socialmente conscientes? O autor destaca que isso envolve uma transferência, para a sociedade, dos valores ligados à cultura como arte: cultura como modo de vida é uma versão estetizada da sociedade, encontrando nela a unidade, imediação sensível e independência de conflito que associamos ao artefato estético. Neste sentido, a palavra “cultura” que se supõe designar um tipo de sociedade é uma forma normativa de imaginar essa sociedade.

25. Eagleton (2005) destaca que embora a cultura seja uma palavra popular no pós-modernismo, suas fontes mais importantes permanecem pré-modernas. Como idéia, a cultura começa a ser importante em quatro pontos de crise histórica: (I) quando se torna a única alternativa aparente a uma sociedade degradada; (II) quando parece que, sem mudança social profunda, a cultura no sentido das artes e do bem viver não será mais nem menos possível; (III) quando fornece os termos nos quais um grupo ou povo busca sua emancipação política; e (IV) quando uma potência imperialista é forçada a chegar a um acordo com o modo de vida daqueles que subjuga. O autor destaca os dois últimos pontos que colocaram mais decisivamente a idéia na agenda do século XX: a noção moderna de cultura se deve em grande parte ao nacionalismo e colonialismo, juntamente com o desenvolvimento de uma antropologia a serviço do poder imperialista. Neste sentido, à medida que a nação pré-moderna dá lugar ao Estado-nação moderno, a estrutura de papéis tradicionais já não pode manter a sociedade unida: é a cultura (no sentido de ter em comum uma linguagem, herança, sistema educacional, valores compartilhados) que intervém como o princípio da unidade social. A cultura chega intelectualmente a uma posição de destaque quando passa a ser uma força política relevante.

26. Com o desenvolvimento do colonialismo do século XIX, o significado antropológico de cultura como um modo de vida singular (dos “incivilizados”) começa a ganhar terreno. Herder, cultura no sentido de “cultura de identidade”, cultura, em resumo, são os outros. Jameson, cultura é sempre “uma idéia do Outro (mesmo quando a reassumo para mim mesmo). Eagleton (2005) entende que definir o próprio mundo da vida como uma cultura é correr o risco de relativizá-lo. A ciência da Antropologia marca o ponto em que o Ocidente começa a converter outras sociedades em legítimos objetos de estudo, sendo que o verdadeiro sinal de crise política é quando ele sente a necessidade de fazer isso consigo mesmo. A versão romântica da cultura evoluiu para uma versão “científica”. Neste sentido, tanto os folclóricos como os primitivos são resíduos do passado dentro do presente, seres curiosamente arcaicos que emergem como anomalias temporais dentro do contemporâneo: o organicismo romântico poderia ser remodelado como funcionalismo antropológico. A palavra “total” na expressão “modo de vida total” paira de forma ambígua entre fato e valor, significando uma forma de vida que podemos apreender por inteiro porque estamos fora dela, mas também uma forma de vida com uma integridade de ser que falta à nossa própria.

27. A idéia de cultura sempre havia sido uma forma de descentrar a consciência: (I) uso mais limitado: produtos mais refinados, mais requintadamente conscientes da história humana; (II) processo orgânico e evolução sub-reptícia: cultura como conceito quase-determinista, significando aquelas características da vida social (costume, parentesco, linguagem, ritual, mitologia), que nos escolhem muito mais do que escolhemos a elas e, assim, colocava-se tanto acima como abaixo da vida social ordinária, mais consciente e menos calculável. Neste último sentido, “civilização” sai mais a atividade e consciência, possuindo uma aura de projeção racional e planejamento urbano. Desta forma, parte do escândalo do marxismo foi tratar a civilização como se ela fosse cultura.

28. A cultura seria algo como o verso inconsciente cujo anverso é a vida civilizada, as crenças e predileções tomadas como certas que têm de estar vagamente presentes para que sejamos, de alguma forma, capazes de agir, é aquilo que surge instintivamente, algo profundamente arraigado na carne em vez de concebido na mente. As culturas primitivas constituiriam uma crítica da racionalidade e uma confirmação dela. Desta forma, a antropologia estrutural de Lévi-Strauss pode apresentar tais “primitivos” tanto como confortavelmente similares como exoticamente diferentes de nós mesmos. Neste sentido, tendo chegado a um ponto de decadência complexa, a civilização podia refrescar-se somente na fonte da cultura, olhando para trás a fim de caminhar para frente. O modernismo engatou a marcha a ré no tempo, descobrindo no passado uma imagem do futuro.

29. Estruturalismo: traçou parte de suas origens de volta ao imperialismo; Hermenêutica: dúvida se o outro é inteligível; Psicanálise e Crítica mitológica: subtexto atávico que está nas raízes da consciência humana; Pós-estruturalismo: coloca em questão o que considera ser uma metafísica profundamente eurocêntrica; Teoria pós-moderna: contra a idéia de uma cultura estável, pré-moderna, firmemente unificada, por isso busca sua hibridez e seu caráter ilimitado e aberto.

30. Eagleton (2005) destaca que o pós-moderno e o pré-moderno têm mais afinidades do que parece, pois ambos compartilham o respeito elevado e por vezes extravagante que conferem à cultura como tal. Neste sentido, afirma que a cultura é uma idéia pré-moderna e pós-moderna em vez de uma idéia moderna; se floresce na era da modernidade, é em grande medida como vestígio do passado ou como antecipação do futuro. O que liga as ordens pré-moderna e pós-moderna é que para ambas a cultura é um nível dominante da vida social: se sobressai nas sociedades tradicionais é por ser um meio universal no qual se dão outros tipos de atividades, sendo que a política, a sexualidade e a produção econômica estão presas a uma ordem simbólica de significado; já no mundo pós-moderno, a cultura e a vida social estão mais uma vez estreitamente aliadas na forma da estética da mercadoria, da espetacularização da política, do consumismo do estilo de vida, da centralidade da imagem e da integração final da cultura dentro da produção de mercadorias em geral. A estética (experiência perceptiva cotidiana: especialização para arte) tinha agora completado um círculo e retornado à sua origem mundana, assim como os dois sentidos de cultura (as artes e a vida comum) tinham sido agora combinados no estilo, moda, propaganda, mídia e assim por diante.

31. Neste intervalo ocorre a modernidade, que não tinha em “cultura” um dos seus conceitos vitais, mas era vista como obstáculo para uma política de emancipação. Para o iluminismo, “cultura” significava aqueles apegos regressivos que nos impediam de ingressar em nossa cidadania do mundo, nossa ligação sentimental a um lugar, nostalgia pela tradição, preferência pela tribo, reverência pela hierarquia. “Diferença” era uma doutrina reacionária enquanto um ataque à Razão em nome da intuição ou da sabedoria do corpo era uma licença para preconceitos insensatos. A imaginação era uma doença da mente e negar a Natureza em nome da Cultura era estar no lado errado.

32. À medida que a Idade Moderna se desenvolvia, o lugar da cultura era de oposição ou de complementação, uma forma de crítica política ou uma área protegida venerada ou ignorada, centralizada e marginalizada. A cultura não mais era uma descrição do que se era, mas do que poderia ser ou costumava ser. Andrew Milner destaca que nas sociedades industriais modernas, “cultura” e “sociedade” ficam excluídas tanto da política como da economia. Assim, a própria noção de cultura hoje é baseada em uma alienação peculiarmente moderna do social em relação ao econômico, ou seja, em relação à vida material.

33. Raymond Williams: a noção de cultura surge quando se aceita o divórcio entre certas atividades morais e intelectuais e a força impulsionadora de um novo tipo de sociedade. A noção se converte em uma esfera de apelação humana, que recaí sobre os processos de juízo social prático como uma alternativa atenuante e regenerante. A cultura, em conseqüência, é sintoma de uma fratura que ela mesmo se presta a superar da mesma forma que a psicanálise é a enfermidade que ela mesma se propõe a curar.

REFERÊNCIA:
EAGLETON, T. A idéia de cultura. São Paulo: Editora UNESP, 2005 (Cap.1: pp. 9-50).

4 comentários:

Anônimo disse...

esse é um baita texto, adorei

Anônimo disse...

Eu adorei esse texto, super completo e facil de comprrender o conceito de cultura.Parabéns aos autor.
M.L.Marra

Jádila disse...

Eu gosteii muito do texto, ficou bem feito e está de boa compreensão . Parabéns .

Naiana P. de Freitas disse...

bastante útil este fichamento,
me ajudará bastante, li o de Eagleton semana passada, lerei as suas anotações agora e as minhas também. Não tem como esse texto não "entrar" na minha cabeça.
obrigada.