sábado, 31 de outubro de 2009

"As minas do Rei Salomão" (Raul Seixas, genial), letra de música...

Entre, vem correndo para mim
Meu princípio já chegou ao fim
E o que me resta agora
É o seu amor
Traga a sua bola de cristal
E aquele incenso do Nepal
Que você comprou num camelô...

E me empresta o seu colar
Que um dia eu fui buscar
Na tumba de um sábio Faraó...

Veja quanto livro na estante!
"Don Quixote"
"O Cavaleiro Andante"
Luta a vida inteira contra o rei
Joga as cartas
Lê a minha sorte!
Tanto faz a vida como a morte
O pior de tudo eu já passei...

Do passado me esqueci
No presente me perdi
Se chamarem
Diga que eu saí
Do passado eu me esqueci
No presente eu me perdi
Se chamaram!
Diga que eu saí...

Emendas participativas: um pleno exercício de democracia!

O exercício participativo no modelo de democracia contemporânea é possível e funciona. Entretanto, é preciso querer, pois dá muito trabalho. Descobri isso ontem, 30/10/2009, na prática, ao comparecer e acompanhar o processo "Emendas Participativas", conduzido pelo mandato do deputado federal Gláuber Braga (PSB-RJ).

Meu objetivo é descrever em tópicos os pontos que me chamaram atenção no evento acontecido na quadra da G.R.E.S. Unidos da Saudade. Em suma, como conclusão, destaco que, apesar dos pesares, ainda resta esperança. Espero, a seguir, conseguir contar os motivos que me levam a esta crença:

1. O evento reuniu cerca de 300 pessoas. Contou com a presença do vice-prefeito de Nova Friburgo/RJ e de dois vereadores entre autoridades representativas locais que pude identificar. Minha função, auto-estabelecida, foi observar o processo a fim de descrevê-lo o mais detalhadamente possível a seguir. Me impressionou a maturidade, desenvoltura e energia do deputado na condução de todo processo. Muitos podem falar que se trata de mera estratégia de visibilidade em período pré-eleitoral, mas isso não é legítimo? Quem dera que todos os políticos adotassem esta estratégia ao invés de criticar uma iniciativa louvável e nada fazer neste sentido, preferindo apenas as reuniões técnicas de gabinete ou os holofotes televisivos.

2. O processo se iniciou com uma breve apresentação, entre 5 e 10 minutos, da trajetória do mandato, assumido em janeiro deste ano. Assume a "loucura" que é prestar contas e tentar estabelecer uma forma participativa de deliberar e destinar a verba de R$ 10 milhões que qualquer deputado federal tem para alocar em projetos de sua escolha, anualmente, na forma de emendas. Esta é a primeira, mas não é a única, inovação promovida pelo mandado do deputado Gláuber Braga (PSB-RJ). Me refiro ao mandato porque acredito que um mandato não é só a pessoa que o representa, no caso o próprio Gláuber, mas sim toda uma estrutura e equipe que atuou incansavelmente no evento de ontem.

3. Esta primeira inovação, por si só, garantiria a minha ida ao evento. Ora, é muito mais conveniente, e menos trabalhoso (e, por essas duas razões, talvez seja a prática corrente), que o legislador destine esta verba para onde bem entenda atender suas promessas e acordos estabelecidos ou identifique como "tecnicamente melhor". Entretanto, observo que a preocupação do deputado foi estabelecer uma nova forma de se fazer política porque tenta estabelecer um mandato transparente. É neste contexto que analiso o processo das emendas participativas. Desta forma, a inovação política a que me refiro se traduziu, inicialmente, em um projeto pedagógico de cidadania, compreendendo esta palavra como algo a ser conquistado, que nunca poderá ser "dada de presente".

4. O processo em si. Ando lendo muito sobre Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português que defende um retorno à simplicidade das coisas e a elaboração de um conhecimento prudente para uma vida decente. Pude confirmar o quanto um processo simples e transparente tem força. A explicação sobre o processo em si deve ter consumido uns 10 minutos do tempo do evento. As etapas, e aí entra outra inovação (na etapa indicada pelo número I), bem mais empolgante que o fato de consultar a população (potencial de inovação inicial que me atraiu):

(I) qualquer pessoa presente poderia indicar quantos pontos de possível alocação de recursos que julgasse necessário, independente de pertencer ou não a uma instituição, configurando uma lista de questões (esta etapa durou mais de uma hora, lembrando que o deputado mediou pessoalmente todo o processo e quem já mediou reuniões comunitárias sabe o que isso significa em termos de desgaste físico, mental e emocional). Cabe destacar que não destaquei qualquer ponto.

(II) o deputado comentou cada ponto pessoalmente (salvo engano, lembro de serem 44 pontos destacados), destacando a inviabilidade de determinadas questões, o limite de outras e também a convergência entre pontos colocados por pessoas diferentes, sugerindo então uma junção sempre que possível (esta etapa durou quase uma hora e restaram 39 pontos, salvo engano).

(III) defesa feita por aquelas pessoas que foram disciplinadas na etapa I e apenas citaram sua demanda (porque na etapa I muitos citaram e defenderam...). Duração de 15 a 20 minutos.

(IV) primeira consulta com utilização de uma cédula para que todos os presentes definissem o número de emendas (ou de projetos) a serem indicadas. Mais 15 minutos e a definição de que seis emendas seriam indicadas.

(V) segunda consulta com utilização de cédula para que todos os presentes definissem quais emendas seriam indicadas. Durou cerca de 15 minutos.

(VI) apuração, "ao vivo e a cores".

5. Saí assim que entreguei minha indicação. Não fiquei para a apuração, mas confio que foram escolhidos os seis projetos que as pessoas presentes consideraram o melhor para Nova Friburgo/RJ naquele momento, naquela hora (eram quase 22hs). Também não me importava mais saber quais foram os projetos contemplados (meu objetivo era conhecer o processo de inovação que potencialmente vislumbrava), tendo em vista que tinha outro compromisso naquele instante (e já estava atrasado).

6. Depois, liguei para um colega (que chegou depois e ficou até depois de mim) e soube que a apuração se estendia para além das 22:30. Resolvi o compromisso, voltei para casa. Estava muito satisfeito como o tinha vistovividosentido. Sentia, e continuo sentindo, que é possível fazer (colocar em prática) o que venho defendendo: que as esferas participativas não sejam restritas às instituições da sociedade civil (cada vez com menos pessoas participando, infelizmente...), incorporando e incentivando participações individuais, com direito a voz e voto nos processos de tomada de decisão coletiva. Portanto, a etapa I que descrevi é, de longe, a essência da inovação, o que alavanca todo processo "Emendas Participativas".

7. Hoje vim a saber, enquanto escrevia este artigo, pelo próprio deputado (que postou no Twitter) quais foram os projetos que serem contemplados por uma emenda parlamentar a partir do ano que vem. São eles: (I) projeto de inclusão social de jovens, envolvendo CUFA e Instituto Girasol, (II) transporte para o Lar Abrigo Amor a Jesus, (III) equipamentos para tratamento de cancêr, (IV) reforma da escola Vale de Luz, (V) espaço para tratamento de dependentes químicos, (VI) reforma da escola de Vargem Alta.

8. Neste sentido, cabe destacar que o fato de serem "indicações individuais" não deixou de contemplar certas associações, ONGs e até mesmo estruturas ligadas à prefeitura municipal de Nova Friburgo/RJ. Também não deixou de beneficiar a coletividade novafriburguense. Creio que está na hora de começar a desvelar a perniciosa distinção moderna entre o individual e o coletivo, mas isso é tópico para outra longa prosa.

Este é um relato particular do que viouvisenti ao estar na quadra da G.R.E.S Unidos da Saudade, entre 17:50 e 21:30 do dia 30/10/2009. Evidente que, por ser particular, é limitado, apresenta lacunas. Entretanto, acredito que consegui destacar a emoção de perceber que nem tudo está perdido, que existem as possibilidades democráticas, com base em diálogo, sensatez, serenidade. Também é bom demais ver um jovem deputado, com seus 27 anos de vida, deflagrar, de fato, a renovação dos processos de democratização da política.

Alguns podem alegar que o universo de R$ 10 milhões envolvido nas emendas é pequeno demais. De fato é! Mas, para a população da região centro-norte fluminense, de cerca de 350 mil habitantes, não é tão somente uma questão de recursos financeiras, mas sim uma semente de ampliação da cidadania, do entendimento mútuo e do diálogo público democrático entre um representante eleito com votos desta região e a população. Isso caracteriza o que estou aqui qualificando como inovação.

Por fim, o fato de uma emenda estar indicada pode, na medida em que gradualmente a população veja as indicações feitas se transformando em realidade nas ruas e na sua vida cotidana, implicar em um aumento da confiança, tão necessário nos dias atuais, na eficácia da participação, individual e coletiva. Trata-se de um sinal de que vale a pena participar porque isso pode mudar as coisas ao nosso redor.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

"Novo tempo" (Ivan Lins), letra de música

No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer

No novo tempo, apesar dos perigos
Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta
Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver

Pra que nossa esperança seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho que se deixa de herança

No novo tempo, apesar dos castigos
De toda fadiga, de toda injustiça, estamos na briga
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer

No novo tempo, apesar dos perigos
De todos os pecados, de todos enganos, estamos marcados
Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver

No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer

No novo tempo, apesar dos perigos
A gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça

Carceragem da Vila Amélia: perspectivas dos custodiados e atores jurídicos em Nova Friburgo/RJ --> conclusões

Mediante a impossibilidade de estar presente em dois lugares ao mesmo tempo, disponibilizo as conclusões do estudo realizado entre 2006 e 2007 sobre a carceragem da Vila Amélia. Tirando pequenos detalhes referentes aos números aferidos, ainda é um diagnóstico infelizmente atual.

1. Sistema de informações pouco confiável no Setor de Custódia da 151ª Delegacia de Polícia Civil

A base de informações geradas pelo Sistema Geral de Detentos / Controle de Carceragem da 151ª Delegacia de Polícia para os “Relatórios de Acautelados – Individual” é incompleta e de baixa confiabilidade.

É possível que o contingente de custodiados seja maior do que o número de relatórios gerados pelo sistema, considerando que pelo menos dois indivíduos estavam desde data anterior a 25/05/2006 na carceragem da Vila Amélia e seus relatórios não constavam entre os emitidos nesta mesma data para a realização do estudo de caso.

As principais lacunas de informações encontradas nos relatórios referem-se aos tópicos: (a) situação jurídica - se custodiado ou já condenado - dos indivíduos (31% dos relatórios); (b) local de residência à época da custódia (26,55% dos relatórios); (c) Vara Criminal que responde ao processo (12,25% dos relatórios).

A ausência dessas informações diminui a precisão de análise para questões importantes inerentes aos objetivos do estudo de caso, o que foi, em parte, compensado com a realização de entrevistas individuais envolvendo 63 custodiados (52%) em um universo de 121.

2. Ausência de condições mínimas para custódia de indivíduos na carceragem da Vila Amélia: violação dos direitos humanos básicos

A insalubridade da carceragem não propicia as condições mínimas necessárias para a custódia de indivíduos e provoca, de forma mais freqüente, doenças respiratórias, surtos de sarna e condições de existência que ferem o estabelecido por tratados internacionais de garantia dos direitos humanos assinados pelo Brasil.

A superlotação caracteriza a ilegalidade da carceragem da Vila Amélia, tendo em vista que não há o cumprimento do espaço mínimo de seis metros quadrados estabelecido pela Lei de Execuções Penais.

Além disso, há o convívio de indivíduos que ainda respondem processos sob a custódia do Estado com outros que já estão sentenciados, condenados, e deveriam estar cumprindo pena no sistema penitenciário e não em uma carceragem ilegal de delegacia, como no caso da 151ª Delegacia de Polícia Civil.

Há consumo de drogas ilícitas (maconha e cocaína) e entrada de telefones celulares, através dos “faxinas” - o canal de comunicação entre os custodiados e o policial lotado como chefe do setor de custódia da 151ª Delegacia de Polícia Civil - ou sendo arremessados por cima do baixo muro, caindo no pátio interno da carceragem.

O fato de apenas um policial civil estar responsável pela custódia de um grande número de indivíduos - que varia de 100 a 150 - pode explicar a facilidade para a entrada de drogas na carceragem da Vila Amélia, além de gerar um problema de segurança pública local, pois os indivíduos custodiados não fogem, em sua maioria, por que não querem ou não estão organizados para tal ação.

O atendimento jurídico aos custodiados é prejudicado pela inexistência de um local adequado que possa ser utilizado para esse fim tanto por defensores públicos quanto por advogados particulares.

A esse fato soma-se a falta de infra-estrutura e de pessoal da Defensoria Pública na região: o Fórum da Comarca de Nova Friburgo, por exemplo, só dispõe de um defensor público criminal sem qualquer assessoria que não seja de estagiários, voluntários; e nas demais Comarcas, o defensor público está distante e sem condições de viajar para prestar a devida assistência ao custodiado que responde ao processo em outras Varas Criminais fora do município de Nova Friburgo.

Os obstáculos que os custodiados enfrentam para receber a assistência jurídica adequada são enormes, sendo que aqueles que não passaram por processos de ruptura familiar podem ser considerados privilegiados por estarem sendo informados constantemente por seus familiares sobre o andamento do processo, bem como contando com a assistência familiar para fornecimento de itens de higiene pessoal e limpeza das celas – como sabão em pó e vassouras -, o que configura uma completa ausência do Estado na garantia de condições mínimas para requerer a custódia desses
indivíduos nas instalações da carceragem da Vila Amélia.

Por se tratar de uma carceragem concentradora o ideal seria que um defensor público estivesse especificamente designado para atender a essa estrutura, o que reflete a falta de integração entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo no estado do Rio de Janeiro, mais especificamente a Secretaria de Segurança Pública.

Não há atendimento médico-odontológico na carceragem da Vila Amélia, sendo difíceis até os encaminhamentos ao Hospital Municipal Raul Sertã para casos de emergência, sendo que os custodiados estão distantes do momento em que possam contar com psicólogos ou assistentes sociais, gerando um quadro de completo abandono, um “depósito de gente”.

Os custodiados também não desenvolvem qualquer atividade laborativa ou educacional, permanecendo, em média, 23 horas por dia trancados nas celas com direito a apenas uma hora de banho de sol.

3. Jovens de baixa escolaridade e baixa renda estão custodiados na carceragem da Vila Amélia

O perfil dos custodiados é de jovens entre 18 e 35 anos (67%), de baixa escolaridade (25,6% são analfabetos e 60,3% não terminaram o ensino fundamental), pobres, que estavam, em média, a oito meses e meio na carceragem da Vila Amélia.

Os custodiados estão enquadrados criminalmente, de forma predominante, em delitos relacionados ao tráfico de drogas (35,6%) e a crimes contra o patrimônio (22,3%) e contra a vida (19,9%), que totalizam 77,8% dos casos que estavam na carceragem da Vila Amélia em 25/05/2006.

O sentimento de marginalidade social e econômica é intensificado nesses indivíduos durante o tempo de custódia, devido às condições de abandono e desatenção propiciadas pelo Estado o que provoca situações de revolta ou resignação perante a situação em que se encontravam.

Os custodiados na carceragem da Vila Amélia têm em mente a repulsa e falta de interesse que a sociedade tem para com eles e identificam que o futuro que lhes espera fora da carceragem, caso sejam absolvidos, passa pelo preconceito, derivado do estereótipo de “ex-encarcerados”, com ampliação das dificuldades de inclusão no tecido social já presentes antes de sua custódia.

4. Uma carceragem concentradora regional

A carceragem da Vila Amélia concentra indivíduos custodiados de diferentes municípios, independentemente de estarem ou não dentro dos limites da 11ª AISP e principalmente da região Centro-Norte Fluminense, configurando um quadro de gestão caótica da administração penitenciária no estado do Rio de Janeiro.

A concentração pode ser melhor observada pelo tópico “Delegacia de Origem do custodiado” (3.1.2 do presente estudo de caso) que apresenta apenas dois relatórios (1,7%) sem as informações referentes.

Por este tópico, verifica-se que 42,1% (51 indivíduos) dos custodiados na
carceragem da Vila Amélia em 25/05/2006 tinham seu registro de ocorrência criminal na 151ª Delegacia de Polícia Civil, enquanto 36,4% (44 indivíduos) estavam com registro de ocorrência em Delegacias de Polícia Civil de municípios que compõem a 11ª AISP. Eram 24 custodiados (19,8%) com registros de ocorrência em Delegacias de Polícia que estão fora da 11ª AISP.

Entretanto, outros tópicos desse estudo de caso também mostram a tendência de carceragem concentradora da Vila Amélia. Um deles é a “Vara Criminal em que o custodiado responde o processo” (3.1.2), que apresentava de 12,25% de relatórios sem a informação correspondente.

O outro tópico é o “Local de residência” (3.1.2), que apresentava 26,55% dos relatórios sem a informação. Os dois gráficos a seguir indicam a mesma tendência concentradora da carceragem da Vila Amélia, apesar de serem menos confiáveis por conta dos relatórios sem as informações.

5. Projeto “Delegacia Legal” no Centro-Norte Fluminense: incompleto e sem a necessária discussão com a população local

A apresentação do projeto “Delegacia Legal” pelo governo do estado do Rio de Janeiro, através da Secretaria de Segurança Pública, no município de Nova Friburgo, foi caracterizada pela pontualidade (foram cinco tentativas) e pela falta de diálogo com a sociedade local no período de 2001 e 2006.

Em nenhum momento o governo do estado do Rio de Janeiro procurou promover um debate regional entre os municípios que compõem a 11ª AISP a fim de buscar a melhor solução para implementação do projeto “Delegacia Legal” em sua plenitude (construção de Delegacia Legal em cada município e de uma casa de custódia que comportasse os indivíduos que estivessem custodiados derivados de registros de ocorrência das delegacias).

O governo do estado do Rio de Janeiro atribuiu, de forma unilateral, desde 2001, que o município de Nova Friburgo abrigaria a estrutura de casa de custódia regional na região Centro-Norte Fluminense, com o argumento principal de ser o município que mais gerava custodiados entre todos os que fazem parte da 11ª AISP, além de apontar o município como cidade pólo regional.

Ao perceber resistências na sociedade civil de Nova Friburgo inerentes ao ônus político de implantação de uma casa de custódia, desde 2001, o governo do estado do Rio de Janeiro recuava em relação às suas pretensões, postergando-a para um momento seguinte. Nesse mesmo período, o governo construía as estruturas de “Delegacia Legal nos municípios do entorno de Nova Friburgo”.

No início do ano 2006, quando a carceragem da Vila Amélia já apresentava um quadro caótico, promoveu um processo de “chantagem política” com a população de Nova Friburgo determinando, também de forma unilateral, que se não fosse construída a casa de custódia no município, não haveria a finalização das obras já iniciadas (e paradas desde então) para construção das estruturas de “Delegacia Legal”, de
Delegacia Especial de Atendimento a Mulher (DEAM) e do Centro de Polícia Técnica.

O poder público municipal se ausentou do debate, muito por conta do ônus político envolvido na questão e pela resistência da sociedade local. No mesmo período desse processo, desenvolvia-se pela Prefeitura Municipal de Nova Friburgo (PMNF) a construção do Plano Diretor Participativo.

O governo do estado do Rio de Janeiro não buscou o diálogo com o poder público municipal sequer para discutir a possibilidade de delimitação de uma área para construção da casa de custódia que pretendia implantar.

Esse processo de “chantagem política” culminou em um aumento da resistência da sociedade civil de Nova Friburgo em relação a proposta apresentada pelo governo do estado do Rio de Janeiro, pela quinta vez em cinco anos, em debate ocorrido na Câmara Municipal de Vereadores de Nova Friburgo em 28/04/2006.

6. Uma postura reativa da sociedade civil de Nova Friburgo frente a estrutura invisível da carceragem da Vila Amélia

A invisibilidade da carceragem da Vila Amélia pode ser caracterizada mediante o desconhecimento de grande parcela da população da existência dessa estrutura a apenas cinco minutos do centro da cidade.

A sociedade civil de Nova Friburgo não reconhece a carceragem da Vila Amélia como um problema de segurança pública local, muito menos assume sua permissividade em relação à violação de direitos humanos dos indivíduos que se encontram custodiados nela.

Ao mesmo tempo, a sociedade civil de Nova Friburgo adota uma postura reativa frente ao problema na medida que somente se mobiliza no momento em que o governo do estado do Rio de Janeiro aparece com a proposta de implantação de casa de custódia.

A resistência da sociedade civil de Nova Friburgo, por outro lado, se materializou em um movimento denominado “Presídio Não!”, formado por lideranças do segmento turístico e sindical, baseado em informações da grande mídia e fortalecimento do medo coletivo em relação à população carcerária, com discursos relacionando a casa de custódia a uma suposta migração de “bandidos” para a cidade, por exemplo, com prejuízo para o turismo local.

O movimento “Presídio Não!’ foi a última reação da sociedade civil de Nova Friburgo à proposta de instalação de uma casa de custódia por parte do governo do estado do Rio de Janeiro - de forma unilateral e sem diálogo com a população -, caracterizado pela ausência de propostas alternativas para a solução do problema da carceragem da Vila Amélia que funciona como uma custódia regional sem ter as mínimas condições para tal.

Em nenhum momento, a sociedade civil de Nova Friburgo teve uma postura pró-ativa perante o problema social da carceragem da Vila Amélia, em grande parte por não reconhecer essa estrutura de cárcere no centro da cidade como um problema ou mesmo sequer enxergá-la.

#intelectuais --> Luís Fernando Veríssimo em 9 minutos

Estes fragmentos foram publicados no Twitter... A pergunta que fica: os Veríssimos são assim tão geniais? Vamos ao que mais interessa aqui:

Nunca entendi muito bem o que é um intelectual. É alguém que pensa? Todo mundo pensa, mesmo que precise fazer um esforço.

É alguém que tem idéias novas, que vive do que pensa? A perfeita descrição de um vigarista profissional, também.

Alguém que lê muito? Ler muito, dependendo do tipo de livro, pode substituir o pensamento.

Certos livros fazem para a mente o que o respirador artificial faz para o pulmão, enchem de ar para ele pensar que está funcionando.

Um erudito não é necessariamente um intelectual.

Cultura não é inteligência, inteligência não é cultura e agilidade mental pode ser apenas um dom performático, como mexer as orelhas.

Se você se declarar um intelectual e alguém disser "Prove", o que é que você vai fazer?

Usar óculos não é argumento, também existe a miopia burra e o astigmatismo sem qualquer redenção cultural.

Você tem teses publicadas? Teses são como cheques, meu caro, como é que eu sei que elas têm fundamento?

Também não adianta você me dizer uma coisa inteligente, pode ser decorado.

Você tem reputação como intelectual? Entre quem, outros intelectuais? Quero ver as credenciais deles. Podem ser falsas. Precisamos de provas.

Gramsci escreveu que todo mundo é intelectual mas poucos têm a função de um intelectual numa sociedade.

Assim o que define o Intelectual como categoria é a sua função social.

Nós somos o nosso comportamento, não os nossos títulos.

"A noite", Ivan Lins, letra de musica...

A noite tem bordado
Nas toalhas dos bares
Corações arpoados
Corações torturados
Corações de ressaca
Corações desabrigados demais

A noite tem falado
Nas cadeiras dos bares
De paixões afogadas
De paixões recusadas
De paixões descabidas
De paixões envelhecidas demais

A noite traz no rosto sinais
De quem tem chorado demais

A noite tem deixado
Seus rancores gravados
À faca e canivete
À lápis e gilette
Por dentro das pessoas
Por dentro dos toilettes e mais
Por dentro de mim

"Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura" (Clifford Geertz), fichamento...

1. Geertz (1978) chama atenção para um padrão de certas idéias que surgem com tremendo ímpeto no panorama intelectual: (I) solucionam imediatamente tantos problemas fundamentais que parecem prometer resolver todos os problemas fundamentais; (II) todos se agarram a elas como uma nova ciência positiva, ou seja, o ponto central em termos conceituais em torno do qual pode ser construído um sistema de análise abrangente; (III) a moda repentina desta grande idéia, que exclui praticamente tudo o mais por um momento, deve-se ao fato das mentes sensíveis e ativas se voltarem para sua exploração intensiva; (IV) com a familiarização, a nova idéia se torna parte do suprimento geral de conceitos teóricos, as expectativas são levadas a um maior equilíbrio quanto às suas reais utilizações, terminando sua popularidade excessiva; (V) pensadores menos bitolados fixam-se nos problemas gerados efetivamente, tentando aplicá-la e ampliá-la onde realmente se aplica e onde é possível expandi-la, desistindo quando não é possível: se foi uma idéia seminal, torna-se parte permanente e duradoura do arsenal intelectual.

2. Esse padrão pode ser observado no caso do conceito de cultura, em torno do qual surgiu o estudo da antropologia, que tenta limitar, especificar, enfocar e conter este conceito. O autor procura reduzir o conceito de cultura a uma dimensão justa que assegure sua importância continuada, propondo um conceito de cultura mais limitado, mais especializado e teoricamente mais poderoso, que substitua o “todo mais poderoso” de Tylor. Geertz (1978) destaca que, diante de uma certa difusão teórica, um conceito de cultura comprimido e não tão padronizado, mas que seja internamente coerente e com um argumento definido a propor, representa um progresso. Neste sentido, o conceito de cultura defendido pelo autor é essencialmente semiótico já que assume a cultura como as teias de significado que amarram o homem (concepção weberiana), bem como sua análise, constitutivo de uma ciência interpretativa em busca do significado. Geertz (1978) procura uma explicação através da construção de expressões enigmáticas na superfície.

3. O operacionismo teve papel importante e ainda tem certa força: para compreender o que é a ciência, deve-se ver o que os praticantes da ciência fazem e, em antropologia, os praticantes fazem etnografia. Geertz (1978) procura compreender o que é a prática da etnografia para começar a entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento. Praticar etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, entre outras práticas, mas o que define este empreendimento é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma descrição densa (as piscadelas comunicam de forma precisa e especial uma partícula de comportamento, um sinal de cultura e um gesto).

4. O objeto da etnografia encontra-se em uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos das quais os tiques nervosos, as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato não existiriam, não importa o que alguém fizesse ou não com sua própria pálpebra.

5. Geertz (1978) destaca que, nos escritos etnográficos, o que chamamos de “nossos dados” são realmente nossa própria construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propõem. Este fato está obscurecido na medida em que a maior parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma idéia ou o que quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada diretamente. Isso pode levar a uma visão de que a pesquisa antropológica é uma atividade mais observadora e menos interpretativa do que ela realmente é. Desta forma, a análise antropológica é escolher entre as estruturas de significação e determinar sua base social e sua importância. A ênfase do autor é na etnografia como uma descrição densa.

6. O etnógrafo enfrenta, de fato, “uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar” (p.20). Isso acontece em todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico, escrever seu diário. Neste sentido, fazer uma etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas como exemplos transitórios de comportamento modelado.

7. A cultura é pública e Geertz (1978) questiona a forma em que se concebe o debate interminável dentro da antropologia sobre se a cultura é “subjetiva” ou “objetiva”. Para além do status ontológico, devemos indagar qual é a sua importância, ou seja, o que está sendo transmitido com a sua ocorrência e através de sua agência.

8. Aparentemente uma verdade óbvia, existem inúmeras formas de obscurecê-la: (I) imaginar que a cultura é uma realidade “superorgânica” autocontida, ou seja, reificá-la; (II) alegar que cultura é o padrão bruto de acontecimentos comportamentais que de fato observamos ocorrer em uma ou outra comunidade identificável, ou seja, reduzi-la; (III) afirmar que a cultura é composta de estruturas psicológicas por meio das quais os indivíduos ou grupos de indivíduos guiam seu comportamento, característica da etnociência, da análise componencial ou antropologia cognitiva, que o autor destaca como fonte principal de desordem teórica, na medida em que a cultura é tida como o que quer que seja que alguém tem que saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita por seus membros. A partir desta última visão sobre cultura, sua descrição envolve a elaboração de regras sistemáticas em uma espécie de algoritmo etnográfico que tornaria possível operá-lo, passando por um nativo. Com isso um subjetivismo extremo se casa a um formalismo extremo.

9. Como trata-se de uma abordagem próxima, Geertz (1978) tenta explicitar as diferenças. Neste sentido, entende que a cultura é pública porque o significado o é na medida em que concluir que saber como piscar é piscar e saber como roubar um carneiro é fazer uma incursão aos carneiros consiste em assumir descrições superficiais por densas, revelando uma confusão tão grande como identificar as piscadelas com contrações de pálpebras ou incursões de caça aos carneiros com a caça aos animais lanígeros fora dos pastos. Desta forma, dizer que a cultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidos é a mesma coisa que dizer que esse é um fenômeno psicológico, uma característica da mente, da personalidade, da estrutura cognitiva de alguém. Geertz (1978) destaca que o que impede a nós de entender corretamente o que pretendem as pessoas não é a ignorância sobre como atua a cognição, mas a falta de familiaridade com o universo imaginativo dentro do qual os seus atos são marcos determinados.

10. Como experiência pessoal, a pesquisa etnográfica remete a situar-se, negócio enervante que só é bem-sucedido parcialmente. Neste sentido, o texto antropológico como empreendimento científico consiste em tentar formular a base na qual se imagina, sempre excessivamente, estar-se situado. Geertz (1978) não procura se tornar nativo ou copiá-los, mas conversar com eles e não apenas com estranhos, o que acredita ser muito mais difícil do que se reconhece habitualmente.

11. Desta forma, o objetivo da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano, além de outros como a instrução, a diversão, o conselho prático, o avanço moral e a descoberta da ordem natural no comportamento humano. Entretanto, o alargamento do universo do discurso humano é um objetivo ao qual o conceito de cultura semiótico se adapta especialmente bem. Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (símbolos), a cultura não é um poder, mas um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível, descritos com densidade.

12. O autor entende a absorção da antropologia com o exótico praticamente como um artifício para deslocar o senso de familiaridade embotador com o qual o mistério da nossa própria habilidade em relacioná-los compreensivelmente uns aos outros se esconde de nós. Geertz (1978) compreende que a procura do comum em locais onde existem formas não-usuais ressalta como o grau do significado do comportamento humano varia de acordo com o padrão de vida através do qual ele é informado, ou seja, compreender a cultura de um povo expõe sua normalidade sem reduzir sua particularidade, tornando-os acessíveis na medida em que colocá-los no quadro de suas próprias banalidades dissolve sua opacidade.

13. Nada mais necessário para compreender a interpretação antropológica do que a compreensão exata do que ela se propõe a dizer (ou não) de que nossas formulações dos sistemas simbólicos de outros povos devem ser orientadas pelos atos. Assim, as descrições das culturas devem ser calculadas em termos das construções que os povos colocam através da vida que levam, a fórmula que eles usam para definir o que lhes acontece, mas são descrições antropológicas, que partem de um sistema em desenvolvimento de análise científica, sendo os antropólogos que a professam (objeto de estudo é uma coisa e o estudo é outra). Como no estudo da cultura, a análise penetra no próprio corpo do objeto: começamos com as nossas próprias interpretações do que pretendem nossos informantes, ou o que achamos que eles pretendem, e depois passamos a sistematizá-las.

14. Os textos antropológicos são interpretações de segunda e terceira mão, são ficções (algo construído ou modelado) na medida em que construir descrições orientadas pelo ator dos envolvimentos é um ato de imaginação. A antropologia existe no livro, no artigo, na conferência, na exposição do museu ou nos filmes. O convencimento deste fato envolve a compreensão de que a linha entre o modo de representação e o conteúdo substantivo é tão intraçável na análise cultural quanto na pintura.

15. Este fato parece ameaçar o status objetivo do conhecimento antropológico ao sugerir que sua fonte não a realidade social, mas um artifício erudito. Geertz (1978) qualifica esta ameaça como superficial, apesar de reconhecer sua existência. Neste sentido, a exigência de atenção em um relatório etnográfico reside no grau em que é capaz de esclarecer o que ocorre em tais lugares, para reduzir a perplexidade. Naturalmente, surgem alguns problemas de verificação ou avaliação no que se refere a diferença entre um relato melhor ou pior, mas o autor entende que essa é também sua melhor virtude, sendo que a questão é se a descrição separa as piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas verdadeiras das imitadas, pois não precisamos medir a irrefutabilidade de nossas explicações contra um corpo de documentação não-interpretada, descrições radicalmente superficiais, mas contra o poder da imaginação científica que nos leva ao contato com as vidas dos estranhos.

16. Geertz (1978) alerta para o perigo de uma abordagem hermética das coisas que não se preocupe com o comportamento, a não ser superficialmente, sendo a cultura tratada como sistema simbólico com o isolamento de seus elementos. Isso pode fechar a análise cultural longe do seu objetivo correto, ou seja, a lógica informal da vida real. Assim, se extrai o conceito dos defeitos do psicologismo para mergulhá-lo nos do esquematismo.

17. O autor considera que deve se atentar para o comportamento, pois é através do fluxo do comportamento, ou da ação social, que as formas culturais encontram articulação, bem como em várias espécies de artefatos e vários estados de consciência. Nestes casos, o significado emerge do papel que desempenham (seu uso) no padrão de vida decorrente. O acesso aos sistemas de símbolos “em seus próprios termos” é feito com a inspeção dos acontecimentos.

18. A coerência não pode ser o principal teste de validade de uma descrição cultural. Para o autor, nada contribui mais para desacreditar a análise cultural do que a construção de representações impecáveis de ordem formal, em cuja existência verdadeira praticamente ninguém pode acreditar. Se a interpretação antropológica constrói uma leitura do que acontece divorciá-la do que acontece é divorciá-la das suas aplicações e torná-la vazia. Neste sentido, uma boa interpretação de qualquer coisa leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar. Um tipo de interpretação antropológica consiste em traçar a curva de um discurso social, fixando-o numa forma inspecionável.

19. O etnógrafo “inscreve” o discurso social, o anota. Assim, o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente  Paul Ricouer.

20. O que faz o etnógrafo? Ele observa, ele registra, ele analisa (resposta padrão), mas (I) normalmente não se torna possível distinguir essas três fases da busca de conhecimento e, como “operações” autônomas, podem nem sequer existir; (II) inscreve-se apenas uma pequena parte do discurso social que os informantes podem nos levar a compreender. Isso torna a visão da análise antropológica como manipulação conceptual dos fatos descobertos, uma reconstrução lógica de uma simples realidade, parecer um tanto incompleta na medida em que se pretende como uma ciência que não existe, imaginando uma realidade que não pode ser encontrada. Desta forma, a análise cultural remete a uma adivinhação dos significados, uma avaliação das conjeturas, um traçar de conclusões explanatórias a partir das melhores conjeturas e não a descoberta do Continente dos Significados e o mapeamento da sua paisagem incorpórea.

21. Geertz (1978) aponta quatro características da descrição etnográfica: (I) interpretativa; (II) interpreta o fluxo do discurso social; (III) esta interpretação consiste em tentar salvar o “dito” num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis; (IV) microscópica. O antropólogo aborda caracteristicamente tais interpretações mais amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos. O antropólogo confronta realidades como poder, mudança, fé, opressão, trabalho, paixão, autoridade, beleza, violência, amor, prestígio em contextos muito obscuros, sendo essa a vantagem na medida em que existem muitas profundidades suficientes no mundo. Entretanto, um importante problema metodológico está em como retirar de uma coleção de miniaturas etnográficas (um conjunto de observações e anedotas) uma ampla paisagem cultural da nação, da época, do continente ou da civilização. Isso não se faz facilmente passando por cima com vagas alusões às virtudes do concreto e da mente comum.

22. Geertz (1978) aponta como falácias dois modelos elaborados por antropólogos para justificar a mudança de verdades locais para visões gerais: (I) modelo “microcósmico” e sua noção de que se pode encontrar a essência de sociedades nacionais, civilizações, grandes religiões ou o que quer que seja, resumida e simplificada nas pequenas cidades e aldeias típicas, constituindo um absurdo vsível, pois o lócus do estudo não é o objeto de estado e (II) modelo “experimento natural” e a noção de que os dados obtidos com estudos etnográficos são mais puros, ou mais fundamentais, ou mais sólidos, ou menos condicionados do que aqueles conseguidos através de outras espécies de pesquisa social, quando os achados etnográficos não são privilegiados, apenas particulares, sendo que qualquer coisa mais que isso distorce suas implicações para a teoria social.

23. O que importa é a especificidade complexa, sua circunstancialidade. Essa espécie de material produzido por um trabalho de campo quase obsessivo de peneiramento, a longo prazo, principalmente qualitativo (mas não exclusivamente), altamente participante e realizado em contextos confinados que os megaconceitos das ciências sociais contemporâneas (legitimidade, modernização, integração, conflito, carisma, estrutura, significado) podem adquirir toda espécie de atualidade sensível que possibilita pensar não apenas realista e concretamente sobre eles, mas também criativa e imaginativamente com eles.

24. O problema metodológico apresentado pela natureza microscópica da etnografia são reais e críticos e deverá ser solucionado através da compreensão de que as ações sociais são comentários a respeito de mais do que elas mesmas. Neste sentido, fatos pequenos podem se relacionar a grandes temas, as piscadelas à epistemologia, ou incursões aos carneiros à revolução, por que eles são levados a isso.

25. Geertz (1978) vai à teoria para enfatizar que o pecado obstruidor das abordagens interpretativas é a sua tendência a resistir à articulação conceptual, escapando a modos de avaliação sistemáticos ao ser apresentada como autovalidante ou validade pelas sensibilidades supostamente desenvolvidas da pessoa que a apresenta. Neste sentido, o autor destaca que estamos reduzidos a insinuar teorias porque nos falta o poder de expressá-las.

26. Uma série de características de interpretação cultural tornam mais difícil seu desenvolvimento teórico: (I) a necessidade da teoria se conservar mais próxima do terreno do que parece ser o caso em ciências mais capazes de se abandonarem a uma abstração imaginativa, esta necessidade de apreender e analisar é tão grande como irremovível e quanto mais longe vai o desenvolvimento teórico, mais profunda se torna a tensão, a primeira condição para uma teoria cultural é que não é seu próprio dono, tendo em vista que a liberdade de se modelar em termos de uma lógica interna é muito limitada; (II) a peculiaridade de crescer aos arrancos, pois a análise cultural separa-se em uma seqüência desconexa e coerente de incursões cada vez mais audaciosas, com estudos melhor informados e melhor conceitualizados, que mergulham mais profundamente nas mesmas coisas, começando com um desvio inicial e terminando onde consegue chegar antes de exaurir seu impulso intelectual, o movimento parte de um tateio desajeitado pela compreensão mais elementar para uma alegação comprovada de que alguém a alcançou e a superou.

27. Por isso, o ensaio parece ser o gênero natural no qual apresentar as interpretações culturais e as teorias que as sustentam e porque, se alguém procura tratados sistemáticos na área, logo se desaponta, principalmente se encontra algum. Em etnografia, o dever da teoria é fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo, sobre o papel da cultura na vida humana.

28. O objetivo da etnografia é tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados, além de apoiar amplas afirmativas sobre o papel da cultura na construção da vida coletiva empenhando-as exatamente em especificações complexas. Neste sentido, o conflito social acontece quando formas como as piscadelas imitadas são pressionadas por situações não-usuais ou intenções não-habituais de operar formas não-usuais. Trata-se de um “recado numa garrafa”, um argumento que tenta remodelar o padrão das relações sociais reordenando as coordenadas do mundo experimentado, sendo que as formas da sociedade constituem a substância da cultura.

29. A análise cultural é intrinsecamente incompleta e quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência estranha, cujas afirmativas mais marcantes são as de base mais trêmulas, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar a suspeita (própria e dos outros), de que você não o está encarando de maneira correta. Essa é a vida do etnógrafo, além de perseguir pessoas sutis com perguntas obtusas.

30. O comprometimento com um conceito semiótico de cultura e uma abordagem interpretativa de seu estudo é um compromisso com uma visão afirmativa etnográfica como “essencialmente contestável”. A antropologia é uma ciência cujo progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que por um refinamento do debate: leva a melhor a precisão com que nos irritamos uns com os outros. Não há conclusões a serem apresentadas, apenas uma discussão a ser sustentada.

31. A posição de Geertz (1978) é tentar resistir ao subjetivismo, de um lado, e ao cabalismo, de outro. Trata-se de uma tentativa de manter a análise das formas simbólicas tão estreitamente ligadas quanto possível aos acontecimentos sociais e ocasiões concretas do mundo público da vida comum, organizando-as de tal forma que as conexões entre formulações teóricas e interpretações descritivas não sejam obscurecidas por apelos às ciências negras (mágicas). Para o autor, nada concorrerá mais para o descrédito de uma abordagem semiótica da cultura do que permitir que ela deslize para uma combinação de intuição e alquimia, não importa quão elegantemente se expressem essas intuições ou quão moderna a alquimia se apresente. Neste sentido, o autor é contrário à transformação da análise cultural em esteticismo sociológico por meio do treinamento de tais análises em relação a tais realidades e necessidades.

32. Olhar as dimensões simbólicas da ação social (arte, religião, ideologia, ciência, lei, moralidade, senso comum) é mergulhar no meio delas. Desta forma, a vocação da antropologia interpretativa é colocar à disposição as respostas que outros deram e, assim, incluí-las no registro de consultas sobre o que o homem falou.

REFERÊNCIA:
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978
(Cap 1.: pp.13-41).

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

"Localismo, globalismo e identidade cultural" (Mike Featherstone), fichamento

1. O autor critica interpretações simplistas do processo de globalização (homogeneização ou fragmentação), mostrando a complexidade diante de situações hegemônicas e de estratégias de preservação, adaptação ou resistência de culturas locais ou particulares. Desta forma, propõe um outro modelo para interpretar o processo de globalização baseado na relação social entre grupos “estabelecidos” e “forasteiros”.

2. Um problema na formulação de uma teoria da globalização é a adoção de uma lógica totalizante, que suponha a ocorrência de um processo geral de globalização que torna o mundo mais unificado e homogêneo. Neste sentido, a intensificação da compressão do espaço-tempo global pelos processos universalizantes das novas tecnologias da informação, finanças e mercadorias implica o recuo inevitável de culturas locais. As experiências e meios de orientação se divorciam dos lugares físicos e o destino dos locais de trabalho e moradia aparece à mercê de agências desconhecidas. Desta forma, o localismo e o sentido de lugar recuam diante do anonimato de “espaços de não-lugar” ou ambientes simulados. Outro problema remete aos relatos monológicos que associam o êxito do processo de globalização à extensão da modernidade, que deixam de lado a variabilidade cultural de nações-estado e civilizações não-ocidentais, além da especificidade do complexo cultural da modernidade ocidental.

3. Featherstone (1996) entende que o processo de globalização deve ser visto como a abertura da percepção de que o mundo agora é um só lugar com o inevitável aumento do contato: maior diálogo entre nações, blocos e civilizações formando um espaço dialógico em que a expectativa é de discordância, conflito e confronto de perspectiva, não apenas trabalho conjunto e consenso. As nações participantes de outros agentes estão presos em teias de interdependência e correlações de poder em função de sua complexidade e sensibilidade à mudança, bem como pela capacidade de transmitir informação sobre deslocamentos de fortuna, fatores que implicam uma maior dificuldade em reter imagens simplificadas e estáveis de outros. Neste sentido, a dificuldade em lidar com níveis ascendentes de complexidade é uma das razões pelas quais o “localismo” torna-se um tema importante. Desta forma, o autor não considera o global e o local como dicotomia separada no espaço-tempo, mas aponta para uma indissociabilidade dos processos de globalização e localização na fase atual.

LOCALISMO E COMUNIDADES SIMBÓLICAS:

4. Na tradição sociológica, o termo local aparece associado à noção de um espaço particular delimitado, como um conjunto de relações sociais estreitas baseadas em fortes laços familiares e tempo de residência, presumindo uma identidade cultural estável, homogênea e integrada, duradoura e única. Featherstone (1996) destaca que grande parte das pesquisas sobre localidades desenvolvidas na área de sociologia urbana e de comunidades foi influenciada por dois pressupostos: (I) o passado era visto como tempo de relações sociais mais simples, mais diretas e mais fortes, como nas oposições status e contrato (Maine), solidariedade mecânica e solidariedade orgânica (Durkheim) e comunidade e associação (Tönnies); (II) derivado da antropologia, a necessidade de fornecer descrições etnologicamente ricas da particularidade de pequenas cidades ou aldeias relativamente isoladas a fim de examinar as formas de transformação de comunidades locais pelos processos de industrialização, urbanização e burocratização, processos modernizantes vistos como abrangentes, anunciando o “eclipse da modernidade”. O autor destaca a “função de nojo” para enfatizar as freqüentes alternâncias entre identificação emocional, desejo de mergulhar no calor e na espontaneidade da comunidade local, de um lado, e o asco, o nojo e o desejo de distância, de outro.

5. Featherstone (1996) alerta para não presumir uma comunidade integrada quando falamos de uma localidade, além de não trabalhar com a visão de que as localidades só mudam por um processo linear de modernização, implicando o eclipse da comunidade e da cultura local. O estereótipo de uma localidade é de um lugar relativamente pequeno onde todos se conhecem, onde a vida social se baseia em relações face-a-face, presumindo que a intensidade dos contatos cotidianos gera um estoque comum de conhecimentos que reduz os desentendimentos. A regularidade e freqüência de contatos com outros é considerada como sustentação de uma cultura comum. Além de um certo exagero nos níveis local e nacional desse conjunto integrado de “valores nucleares” ou pressupostos comuns enraizados em práticas cotidianas, o autor menciona os rituais, cerimônias e memórias coletivas de sustentação emocional como mais uma dimensão da integração cultural, cujo uso atua como baterias que guardam e recarregam o sentido de comunalidade (rituais e cerimônias) ou mesmo contextos grupais periodicamente reforçados pelo contato com outros que partilharam da experiência inicial (memórias coletivas).

A NAÇÃO ENQUANTO COMUNIDADE:

6. Questões: haverá limites para o tamanho do grupo e do lugar a ser considerado como comunidade local? Pode uma nação ser considerada uma comunidade local?

7. Etimologicamente, Featherstone (1996) mostra a origem do termo em natio, comunidade local, condição de pertencer a uma família, um domicílio. Essa possibilidade é evitada por marxistas com simpatias internacionalistas (Raymond Williams), mas é contratada por antropólogos como Benedict Anderson, que defende o termo para “toda comunidade maior que a aldeia primordial de contato face-a-face. Neste sentido, o autor destaca que a distinção da comunidade deve se dar pelo estilo em que é imaginada ao invés de sua falsidade/autenticidade.

8. Featherstone (1996) considera a nação como uma comunidade imaginada que fornece um sentido de pertencimento quase religioso aos que partilham desse lugar simbólico particular, que pode ser um espaço geograficamente delimitado, sedimentado com sentimentos simbólicos capazes de gerar um sentido de comunalidade. Desta forma, certos lugares podem adquirir um status emblemático particular como monumentos nacionais e representar uma forma de laço simbólico que supera e incorpora as várias afiliações locais que as pessoas têm. O autor considera que essa é uma parte essencial do processo de construção nacional em que o Estado estimula ativamente a elaboração do núcleo étnico. Neste sentido, a criação de uma comunidade nacional é inventada a partir de um estoque de mitos, heróis, eventos, paisagens e memórias. Featherstone (1996) destaca, assim, que a possibilidade de uma nação depende do desenvolvimento do livro, do romance e do jornal, juntamente com um público leitor, sendo que a indústria cinematográfica facilita ainda mais esse processo. A nação é representada por um conjunto mais ou menos coerente de imagens e lembranças que lidam com as questões cruciais de origem, diferença e distinção de um povo, tendo uma base quase religiosa. Desta forma, o sacrifício e o sofrimento devem ser entendidos pela capacidade dos discursos, imagens e práticas de sustentação nacional proporcionarem um sentido maior que transcende a morte ou que dá significado à morte subsumindo o indivíduo à totalidade sagrada.

9. Entretanto, o autor também destaca as pressões externas da figuração do outro significante a que o Estado-nação pertence e a escalada de lutas de poder que podem tornar a construção de uma identidade nacional mais importante. Neste sentido, o conflito aumenta o sentido de diferença entre “os de dentro” e “os de fora”. Simmel destaca a capacidade dos conflitos de unificarem a estrutura interna de um grupo. Este autor (Simmel) possibilita elaborar uma noção da natureza multidimensional e relacional da vida social. Assim, uma cultura local pode ter um conjunto comum de relações de trabalho e de parentesco que reforça a cultura prática vivida cotidianamente, sedimentada em conhecimentos e crenças tomados como dados. A articulação dessas crenças e do sentido de particularidade torna-se mais nítida quando a localidade se envolve em lutas de poder e provas eliminatórias com seus vizinhos. Neste caso, vê-se a formação de uma cultura local em que a particularidade da sua própria identidade é sublinhada e a localidade apresenta uma imagem simplificada e unificada de si mesma (face ou máscara da comunidade local). A questão de Featherstone (1996) é a direção do foco: internamente, pode considerar a comunidade com todo tipo de independências, rivalidadades, lutas de poder e conflitos, mas, em certas situações estas lutas podem ser esquecidas (quando entra em conflito com outra ou quando está envolvida em disputas inter-regionais). Nestas situações, a particularidade de cada um é subsumida na coletividade maior e desenvolve-se um trabalho cultural para a construção de uma imagem pública aceitável, processo que implica a mobilização do repertório de símbolos comunais e memórias e sentimentos coletivos.

10. Torna-se relevante na situação global contemporânea a capacidade de deslocar a moldura, de mover-se entre vários focos, de lidar com um leque de material simbólico de onde várias identidades podem ser formadas e reformadas em situações diferentes. Ao invés de um empobrecimento cultural, Featherstone (1996) identifica uma extensão de repertórios culturais e um aumento dos recursos de vários grupos para criar novos modos simbólicos de afiliação e pertencimento, esforçando-se para retrabalhar e reformular o significado de signos existentes e minar hierarquias simbólicas existentes para seus próprios fins de maneira que os centros culturais dominantes não podem ignorar. Este deslocamento tem sido ajudado e apoiado por grupos de especialistas culturais e intermediários simpáticos ao local.

11. As interações bilaterais entre Estados-nação, em especial as que envolvem competição e conflito crescentes, podem ter o efeito de unificar a auto-imagem de uma nação, a imagem apresentada ao outro. Este processo, de apresentação externa da face nacional, comporta uma dimensão interna e depende dos recursos de poder que determinados grupos possuem para mobilizar o núcleo étnico. Neste sentido, o processo de formação cultural de uma identidade nacional sempre implica uma parte sendo representada como o todo: uma representação particular da nação é apresentada como unânime e consensual. Featherstone (1996) destaca que a fragilidade e a volatilidade das emoções incorporadas na nação e a luta pela legitimidade da representação sugerem que as culturas nacionais devem ser consideradas em termos processuais.

12. As imagens construídas na televisão e no rádio são parte necessária do processo de formação da identidade nacional pela capacidade de estabelecer uma ponte entre o público e o privado. A nação é uma coletividade abstrata demasiado grande para ser vivida diretamente pelas pessoas, sendo que não é apenas pela existência de rituais cívicos, mas também pela representação de eventos que se liga a nação. O autor destaca que a televisão não apenas representa, mas também constrói os eventos. Entretanto, não se trata de uma audiência passiva, tendo em vista que indivíduos e famílias também podem reconstituir o espaço cerimonial do lar, observando os rituais, se arrumando e “participando”, sabedores de que inúmeros outros estão fazendo o mesmo. Desta forma, uma audiência “atomizada” pode ocasionalmente ser unida por eventos midiáticos.

13. Não devemos considerar culturas isoladas, mas localiza-las na matriz relacional dos outros significantes. Desta forma, as nações não apenas interagem, mas formam um mundo, pois cada vez mais suas interações ocorrem dentro de um contexto global, que viu o desenvolvimento do seu próprio corpo de procedimentos formais e dados baseado em processos e modos de integração que simplesmente não podem ser reduzidos aos interesses e ao controle das nações individuais. Exemplo: desenvolvimento de procedimentos e convenções diplomáticos e leis internacionais; poder independente de corporações multinacionais. A percepção e extensão desses processos pode aumentar a sensibilidade das nações para a necessidade de preservar a integridade de suas próprias tradições culturais e pode ser usada para promover reações fundamentalistas e contraglobalizantes.

14. Com o maior contato e o sentido de finitude do mundo, a consciência de que o mundo é um só lugar, Featherstone (1996) destaca que um dos efeitos do processo de globalização é levar à confrontação de uma pluralidade de interpretações diferentes do significado do mundo, formulado a partir da perspectiva de tradições nacionais e civilizatórias diversas. Temos uma pluralidade de respostas nacionais ao processo de globalização que não são redutíveis às idéias geradas na modernidade ocidental, configurando um dos problemas para mapear a condição global contemporânea, ou seja, o leque diversificado de respostas culturais nacionais que continuam a deformar e reformar, fundir, sincretizar e transformar, de maneiras variadas, os alegados processos-mestres da modernidade.

15. Featherstone (1996) critica as teorias da modernidade (Weber e Habermas, em especial) que tem o pressuposto de que a modernização necessariamente implica o eclipse das tradições nacionais e identidades culturais. Pelo exame das práticas cotidianas atesta-se a presença de significado e tradição, do corpo, da intimidade, do saber local, de tudo que se supõe ter sido eliminado dos “sistemas abstratos”. As práticas em ambientes locais fazem com que as classificações compartilhadas e profundamente valorizadas que as pessoas usam se convertam em uma forma do sagrado, tendo em vista que a modernidade não significou a perda da mágica ou do encantamento nem do uso ficcional de classificações simbólicas em instituições locais.

16. Esta idéia de modernidade aponta para o pós-modenismo e a pós-modernidade, que Featherstone (1996) entende como a consciência crescente dos limites do projeto de modernidade. De forma simplificada, o autor destaca que o pós-modernismo sugere o problema de lidar com a complexidade cultural, com aquilo que, do ponto de vista de categorias bem organizadas, parece ser desordem, mas que não pode ser adequadamente incorporado na classificação existente nem ignorado. Assim, (I) implica uma perda de confiança nas grandes narrativas de progresso e iluminismo, centrais à modernidade ocidental, sendo substituídas pela ênfase na contingência, na incoerência e na ambivalência com uma crescente consciência da multicodificação, da hibridização e do sincretismo cultural; (II) há a democratização e popularização de formas de conhecimento e de produção e difusão cultural que antes eram previamente monopolizadas ou controladas por grupos estabelecidos, criando uma sensibilidade aos anteriormente excluídos de classificações existentes. Desta forma, temos uma apreciação pela particularidade legítima do saber local e de perspectivas externas (feminismo e pós-colonialismo) em um processo acompanhado pela ampliação do que é considerado relevante no estudo da vida social e cultural no sentido de incluir perspectivas minoritárias, com uma ênfase na pluralidade, em histórias contestadas e irreconciliáveis em oposição a uma História unificada e unidirecional, sendo neste sentido que Vattimo (1988) fala de “fim da história”, entendendo um fluxo histórico unificado e singular nascendo do Ocidente, para o qual todas as demais civilizações, tradições culturais e Estados-nação inevitavelmente deverão fluir.

GLOBALIZAÇÃO E IDENTIDADE CULTURAL:

17. Se o termo globalização refere-se ao processo pelo qual o mundo é cada vez mais visto como “um só lugar” e às formas pelas quais nos conscientizamos disto, as mudanças culturais tematizadas sob a bandeira do pós-moderno apontam na direção oposta. Featherstone (1996) entende que a globalização não implica que há, ou haverá, uma sociedade ou cultura mundial unificada, mas que é possível referir-se ao desenvolvimento de uma cultura global em um sentido menos totalizante considerando-se dois aspectos do processo de globalização:
(I) no sentido de “terceiras culturas”, conjuntos de práticas, corpos de conhecimento, convenções e estilos de vida que se desenvolveram de forma crescentemente independente dos Estados-nações. O processo de globalização é desigual, sendo que nos bairros das cidades mundiais é que veremos pessoas trabalhando em um ambiente que depende de meios avançados de comunicação que superam as separações entre tempo e espaço (análise deste aspecto na pág. 25).
(II) no sentido do globo como um espaço delimitado, finito e cognoscível, representando tanto o limite quanto o espaço comum delimitado, com a produção de um choque de culturas como resultado do aumento da intensidade de contato e da comunicação entre nações e outros agentes.

18. Com isso, o autor considera que as mudanças que ocorrem na atual fase de globalização intensificada estariam provocando reações que procuram redescobrir a particularidade, o localismo e a diferença, que geram uma noção dos limites dos projetos culturalmente unificadores, ordenadores e integradores associados à modernidade ocidental. Neste sentido, argumenta que a globalização produz o pós-modernismo.

19. Featherstone (1996) critica a tese de homogeneização cultural, sugerindo algumas possibilidades:

(I) delinear algumas das estratégias de absorção/assimilação/resistência que as culturas periféricas podem adotar diante de imagens e bens culturais e de massa originados nos centros metropolitanos. O autor entende que as interações cultura local/cultura de mercado são normalmente mediadas pelo Estado-nação que, no processo de criar uma identidade nacional, educará e empregará seus próprios intermediários e especialistas culturais. Neste sentido, é provável que surjam diversas formas de hibridização ou crioulização em que os significados de bens, informações e imagens de origem externa são retrabalhadas , sintetizadas e fundidas com tradições culturais e formas de vida existentes. Em relação aos efeitos da televisão, o autor entende a necessidade de ir além das formulações simplificadas opostas que destacam manipulação ou resistência das audiências. De um lado, manipulação e resistência, de outro, homogeneização e fragmentação. Neste sentido, os recursos globais são frequentemente indigenizados e sincretizados, produzindo uma fusão e identificações particulares que sustentam a noção do local.

(II) ver as formas pelas quais as corporações transnacionais cada vez mais dirigem às diversas partes do globo uma publicidade planejada sob medida para mercados e audiências diferenciadas.

20. Featherstone (1996) entende que as diversas combinações e fusões de processos aparentemente opostos e incompatíveis como homogeneização e fragmentação, globalização e localização, universalismo e particularismo, apontam para os problemas nas tentativas de conceber o global em termos de um esquema singular integrado e unificado. Segundo Appadurai (1990), a ordem global deve ser entendida como “complexa, justaposta e disjuntiva”, ou seja, envolve conjuntos de fluxos não-isomórficos de pessoas, tecnologias, finanças, imagens e informações midiáticas e idéias.

21. A cidade mundial é um ponto importante onde se cruzam e convergem os diversos fluxos de pessoas, bens, tecnologias, informação e imagens, em que encontramos a justaposição de ricos e pobres, os novos profissionais da classe média e os sem-teto e uma variedade de outras identificações étnicas, tradicionais e de classe, onde pessoas do centro e da periferia se encontram no mesmo espaço (Londres, Paris, Nova York, Los Angeles, Bangkok, Rio de Janeiro, Cidade do México, São Paulo e Manila). A primeira cidade multicultural teria se desenvolvido durante a colonização, como Rio de Janeiro, Calcutá ou Cingapura. O autor reivindica uma noção que adote uma concepção global do moderno que focalize a dimensão espacial, a relação geográfica entre centro e periferia em que as primeiras sociedades multirraciais e multiculturais estavam na periferia e não no centro, foi lá que primeiramente ocorreram a diversidade, o sincretismo e o deslocamento. O processo de intensificação dos fluxos de pessoas das ex-colônias para os centros metropolitanos no período pós-guerra nos fez perceber o aspecto colonial do desenvolvimento da modernidade e da questão da identidade cultural.

22. Featherstone (1996) argumenta que os problemas de tentar viver com identidades múltiplas ajudam a gerar discursos intermináveis sobre o processo de encontrar ou construir uma identidade coerente. O autor destaca argumentos que enfatizam a busca de uma identidade coletiva forte, uma nova forma de comunidade, no interior de sociedades modernas, ao invés de produzir um individualismo crescentemente estreito e uma preocupação narcisista com a identidade individual: (1) o processo de desenvolvimento da modernidade para a pós-modernidade implica um movimento do individualismo ao coletivismo, da racionalidade para a emocionalidade, que traz um novo tribalismo, proporcionando um forte sentido de localismo e identificação emocional (Maffesoli, 1995). Neste sentido, trata-se de identificações temporárias na medida em que as pessoas necessariamente continuarão se movendo através do fluxo infindável de socialidade para estabelecer novos laços (Bauman, 1991, 1992); (2) processo de marketing global da indústria do turismo, com locais em contato com outro conjunto de locais na localidade turística sendo altamente regulado e ritualizado, da mesma forma que pós-turistas mais sofisticados estão mais interessados na parafernália dos bastidores e na construção do espetáculo e do cenário, ou então “selvageria representada ou encenada”. As tribos não têm recursos de poder suficientes para manipular o grau de abertura ou fechamento das fronteiras de seu território nos seus próprios termos.

OBSERVAÇÕES FINAIS:

23. Todas as teorias globalizantes são auto-representações do particular dominante (King): problema da localização do teórico: escreve de um lugar particular e dentro de uma tradição de discurso particular.

24. Na medida em que membros do “resto” vão cada vez mais viver no Ocidente e conseguem ser ouvidos, podemos esperar muitos outros relatos que desafiam as “auto-representações do particular dominante”. Entretanto, por mais que seja importante o movimento em direção à desconceitualização, resta o problema da reconceitualização, da possibilidade de construir modelos gerais do globo mais abstratos, em nível mais alto. Alguns pontos ganham relevância:

(I) A nossa conceitualização do globo, sendo mais adequado representar o processo de globalização como um amontoado, uma congérie ou um agregado. Desta forma, a cultura global consiste em amontoados, congéries e agregados de particularidades justapostas no mesmo campo, no mesmo espaço delimitado, em que o fato de que não se encaixam nem querem se encaixar torna-se notável, constituindo uma fonte de problemas práticos.

(II) Tendências sistêmicas da vida social, derivadas do poder expansivo e integrador de processos econômicos e dos esforços hegemônicos de determinados Estados-nação ou blocos: necessidade de conhecimento prático modelado de forma sistemática que possa gerar informações tecnicamente úteis e um planejamento racional. Apesar de certos aspectos do nosso mundo se tornarem passíveis de uma análise sistêmica, a relação entre sistema e cultura, embora as culturas sejam plurais e crioulas em termos de suas origens, o fato de elas se identificarem como tal depende de outros processos.

(III) Elias argumenta que nas situações em que grupos estabelecidos estão firmes na situação de controle, as relações com grupos externos são mais hierárquicas e o grupo dominante é capaz de colonizar o mais fraco com seu próprio padrão de conduta. Os estabelecidos desenvolvem uma “imagem de nós” coletiva baseada no sentindo de superioridade e de “carisma de grupo”, uma imagem inseparável da imposição e internalização no sentido de “desgraça de grupo”, o estigma de desvalorização e inferioridade por parte do grupo externo. Os “forasteiros” são normalmente classificados como “sujos, moralmente indignos de confiança e preguiçosos”. Ao mesmo tempo, essa fase colonizadora da relação entre estabelecidos e forasteiros pode sofrer um deslocamento de interdependência e de equilíbrio relativo de poder para uma segunda fase de “democratização funcional”. Nesta fase, as pessoas se envolvem em redes mais densas e mais longas de interdependências que o grupo estabelecido dificilmente pode controlar, muito modelos são considerados injustos para com a particularidade e a complexidade, ficando sujeitos à crítica e à rejeição. Desta forma, se desenvolve um interesse na construção de modelos e teorias que possam incorporar noções de sincretismo, complexidade e padrões aparentemente aleatórios e arbitrários.

25. Featherstone (1996) deixa claro o caráter especulativo das considerações finais, salientando a dificuldade de utilizar modelos do tipo estabelecidos/forasteiros em situações em que há um número crescente de participantes do “jogo global” e as fronteiras entre as coletividades podem ser ultrapassadas ou ignoradas, mas talvez sugiram que não deve haver precipitação no sentido de dispensar por completo as teorias das relações sociais.

REFERÊNCIA:
FEATHERSTONE, Mike. Localismo, globalismo e identidade cultural. In: Sociedade e
Estado, v. XI, nº 1, 9-42, jan.-jun., 1996.

"Contradições Latino-Americanas, modernismo sem modernização" (Canclini), fichamento

1. O autor destaca a hipótese mais reiterada na literatura sobre modernidade latino-americana de que tivemos um modernismo exuberante com uma modernização deficiente, sendo colonizados pelas nações européias mais atrasadas e apenas com a independência iniciamos a atualização de nossos países com ondas de modernização: (I) fim do século XIX e início do XX, impulsionadas pela oligarquia progressista, pela alfabetização e pelos intelectuais europeizados; (II) entre os anos 1920 e 30, pela expansão do capitalismo e ascensão democratizadora do setores médios e liberais, pela contribuição de migrantes e pela difusão em massa da escola, pela imprensa e pelo rádio; (III) desde os anos 1940, pela industrialização, pelo crescimento urbano, pelo maior acesso à educação média e superior, pelas novas indústrias culturais. Entretanto, esses movimentos não cumpriram as operações da modernidade européia: não formaram mercados autônomos para cada campo artístico, não conseguiram uma profissionalização ampla dos artistas e escritores nem o desenvolvimento econômico capaz de sustentar os esforços de renovação experimental e democratização cultural.

2. De certa forma, Canclini (2000) mostra como modernização com expansão restrita do mercado, democratização para minorias, renovação das idéias com baixa eficácia nos processos sociais caracterizaram desajustes entre modernismos e modernização que foram úteis às classes dominantes para preservar sua hegemonia, na medida em que a hegemonia oligárquica se apoiava em divisões da sociedade que limitavam sua expansão moderna. Na cultura escrita, limitaram escolarização e o consumo de livros e revistas. Na cultura visual: (I) espiritualizaram a produção cultural como “criação” artística, distinguindo entre arte e artesanato; (II) congelaram a circulação de bens simbólicos em coleções concentradas em museus, palácios; (III) propuseram como única forma de consumo desses bens a contemplação, uma modalidade espiritualizada, hierática.

3. Algumas questões são colocadas: O que podiam fazer as vanguardas? Como representar de outro modo para sociedades heterogêneas, com tradições culturais que convivem e que se contradizem o tempo todo, com racionalidades diferentes, assumidas desigualmente por diferentes setores? É possível impulsionar a modernidade cultural quando a modernização socioeconômica é tão desigual? Por que nossos países realizam mal e tarde o modelo metropolitano de modernização? Somente pela dependência cultural a que a deterioração dos temos do intercâmbio econômica nos condena, pelos interesses mesquinhos de classes dirigentes que resistem à modernização social e se vestem com o modernismo para dar elegância a seus privilégios?

4. Para Canclini (2000), o erro das interpretações que enxergam os movimentos inovadores como enxertos, transplantes desvinculados da nossa realidade surge da comparação da nossa modernidade com imagens otimizadas de como esse processo aconteceu nos países centrais. Neste sentido, considera necessário rever (I) se existem tantas diferenças entre a modernização européia e a nossa, (II) averiguar se a visão de uma modernidade latino-americana reprimida e postergada, realizada com dependência mecânica em relação às metrópoles, é tão verdadeira e tão pouco funcional como os estudos sobre o nosso “atraso” costumam destacar.

COMO INTERPRETAR UMA HISTÓRIA HÍBRIDA:

5. Perry Anderson, ao falar da América Latina reitera a tendência a ver nossa modernidade como um eco tardio e deficiente dos países centrais. Apesar da estimulante análise, Canclini (2000) questiona no historiador inglês: (I) a mania quase em desuso nos países de Terceiro Mundo (a) de falar do Terceiro Mundo e (b) de colocar no mesmo saco Colômbia, Índia e Turquia; (II) a atribuição do sintoma de nosso modernismo a Cem anos de solisão; (III) o rústico determinismo pelo qual certas condições socioeconômicas produziram as obras-primas da arte e da literatura.

6. Perry Anderson, por sua vez, mostra que o modernismo cultural não expressa a modernização econômica, dando a Inglaterra como exemplo. Para ele, os movimentos modernistas surgem onde existem conjunturas complexas, com a intersecção de diferentes temporalidades históricas. Este tipo de conjuntura apresentou-se na Europa como um campo cultural de força triangulado por três coordenadas decisivas: (I) codificação de um academicismo altamente formalizado nas artes visuais e nas outras institucionalizado por Estados e sociedades nos quais dominavam classes aristocráticas ou proprietárias de terras, superadas pelo desenvolvimento econômico, mas que davam o tom político e cultural antes da Primeira Guerra Mundial; (II) surgimento de tecnologias geradas pela Segunda Revolução Industrial (telefone, rádio, automóvel); (III) proximidade imaginativa da revolução social (Revolução Russa e outros movimentos sociais). Neste sentido, o conjunto do modernismo europeu floresceu nas primeiras décadas do século XX, em um espaço onde se combinavam “um passado clássico ainda utilizável, um presente técnico ainda indeterminado e um futuro político ainda imprevisível”: na intersecção de uma ordem dominante semi-aristocrática, uma economia capitalista semi-industrializada e um movimento operário semi-emergente ou semi-insurgente.

7. Novas questões que surgem para Canclini (2000): se o modernismo não é expressão da modernização socioeconômica, mas o modo como as elites se encarregam da intersecção de diferentes temporalidades históricas e tratam de elaborar com elas um projeto global, quais são essas temporalidades na América Latina e que contradições seu cruzamento gera? Em que sentido essas contradições entorpeceram a realização dos projetos emancipador, expansionista, renovador e democratizador da modernidade?

8. Neste sentido, o autor entende que os países latino-americanos são resultado da sedimentação, justaposição e entrecruzamento de tradições indígenas, do hispanismo colonial católico e das ações políticas educativas e comunicativas modernas. Uma mestiçagem interclassista gerou formações híbridas e, apesar dos impulsos secularizadores e renovadores da modernidade terem sido mais eficazes nos grupos “cultos”, certas elites preservaram seu enraizamento nas tradições hispânico-católicas e, em zonas agrárias, também em tradições indígenas, como recursos para justificar privilégios da ordem antiga desafiados pela expansão da cultura massiva. Ser culto moderno implica mais saber incorporar a arte e a literatura de vanguarda e os avanços tecnológicos, matrizes tradicionais de privilégio social e distinção simbólico, do que vincular-se a um repertório de objetos e mensagens exclusivamente modernos.

9. A heterogeneidade multitemporal da cultura moderna é resultado de uma história na qual a modernização poucas vezes operou mediante a substituição do tradicional e do antigo. Ao mesmo tempo em que as rupturas provocadas pelo desenvolvimento industrial e pela urbanização (que foram mais aceleradas que na Europa, apesar de posteriores), constituindo campos artísticos e humanísticos autônomos, se chocava com o analfabetismo da metade da população, e com estruturas econômicas e hábitos políticos pré-modernos. As contradições entre culto e popular se refletiram mais nas obras que nas histórias da arte e da literatura. Desta forma, Canclini (2000) considera que a explicação dos desajustes entre modernismo cultural e modernização social considerando apenas a dependência dos intelectuais em relação às metrópoles negligencia as fortes preocupações de escritores e artistas com os conflitos internos de suas sociedades e com os obstáculos para comunicar-se com seus povos. Neste sentido, uma hipótese plausível é pensar como algumas perguntas contribuem para organizar as relações desses escritores com seus públicos: o que significa fazer literatura em sociedades em que não há um mercado com desenvolvimento suficiente para que exista um campo cultural autônomo? Qual sentido do trabalho literário em países com precário desenvolvimento da democracia liberal, com escasso investimento estatal na produção cultural e científica, onde a formação de nações modernas não supera as divisões étnicas nem a desigual apropriação do patrimônio aparentemente comum?

IMPORTAR, TRADUZIR, CONSTRUIR O PRÓPRIO:

10. Canclini (2000) destaca a necessidade de uma teoria livre da ideologia do reflexo e de qualquer suposição sobre correspondências mecânicas diretas entre a base material e representações simbólicas. Neste sentido, baseado em Roberto Schwarz, coloca que para entender por que essas contradições eram “dispensáveis” e podiam conviver com uma bem-sucedida difusão intelectual do liberalismo, é preciso levar em conta a institucionalização do favor. A colonização produziu três setores sociais: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, sendo que este último dependia do favor de um poderoso e, através desse mecanismo, se reproduziu um amplo setor de homens livres. O favor se transforma em uma “mediação quase universal”, sendo tão anti-moderno quanto a escravidão. Desta forma, enquanto a modernização européia se baseia na autonomia da pessoa, na universalidade da lei, na cultura desinteressada e na remuneração objetiva e sua ética de trabalho, o favor pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada e a remuneração de serviços pessoais. Era isso que ocorria quando se pretendia criar um Estado burguês sem romper com as relações clientelistas.

11. Canclini (2000) compreende que avançamos pouco ao acusarmos as idéias liberais de falsas, sendo mais interessante acompanhar seu jogo simultâneo com a verdade e a falsidade, atentando para as justificativas prestiogiosas do arbítrio exercido nos intercâmbios de favores e para a “coexistência estabilizada” que permite. Este modo de adotar idéias alheias com sentido impróprio está na base de grande parte de nossa literatura e arte (Machado de Assis, Arlt e Borges, Cabrujas, Carlos Gardel).

12. Nova questão: são essas relações contraditórias da cultura de elite com sua sociedade um simples resultado de sua dependência das metrópoles? Schwarz entende que esse liberalismo descolado e desafinado como um elemento interno e ativo da cultura nacional, um modo de experiência intelectual que assume conjuntamente a estrutura conflitiva da própria sociedade, sua dependência de modelos estrangeiros e os projetos de transformá-la. Os procedimentos materiais e simbólicos não explicam o que as obras de arte fazem com o triplo condicionamento (conflitos internos, dependência externa e utopias transformadoras). Estas obras podem ser compreendidas se abrangermos simultaneamente a explicação dos processos sociais em que se nutrem e dos procedimentos com que os artistas os retrabalham.

13. Nas artes plásticas, a inadequação nem sempre é recurso ornamental da exploração, como na primeira fase do modernismo latino-americano promovida por artistas que regressavam a seus países depois de uma temporada na Europa: foram as perguntas deles sobre como tornar compatível sua experiência internacional com as tarefas que lhes apresentavam sociedades em desenvolvimento que suscitou a veia modernizadora. Neste sentido, os modernistas beberam em fontes duplas e antagônicas, a informação internacional e um nativismo que se evidenciaria na inspiração e busca de nossas raízes. A coincidência entre os historiadores sociais da arte nos relatos acerca do surgimento da modernização cultural em vários países latino-americanos no que se refere às reelaborações desejosas de contribuir com a transformação social: edificar campos artísticos autônomos, secularizar a imagem e profissionalizar seu trabalho. Entretanto, tropeçam na atrofia da burguesia, na falta de um mercado artístico independente, no provincialismo, na árdua competição com academicistas, nos ranços coloniais (como o indianismo e o regionalismos ingênuos). Neste sentido, os modernistas se sentem como um grupo isolado e escudado em sua própria convicção. Apesar de sua precaridade, este campo funciona como palco e estrutura reordenadora dos modelos externos.

14. Em vários casos, ao invés de ser desnacionalizador, o modernismo cultural deu o impulso e o repertório de símbolos para a construção da identidade nacional com o propósito de rediscutir as divisões fundamentais do desenvolvimento desigual e dependente: arte culta X popular, cultura X trabalho, experimentação de vanguarda X consciência social.

15. No México (exemplo), as tentativas de superar as divisões críticas da modernização capitalista esteve ligada à formação da sociedade nacional. Neste sentido, os murais em edifícios públicos, calendários, cartazes e revistas de grande circulação foram resultado de uma poderosa afirmação das novas tendências estéticas dentro do incipiente campo cultural, e dos vínculos inovadores que os artistas foram criando com os administradores da educação oficial, com sindicatos e movimentos de base. Apesar disso, a situação mexicana não era diferente do restante da América Latina no que se refere ao legado do realismo nacionalista. Com um Estado rico e estável, havia recursos para construir museus e centros culturais, dar bolsas e subsídios para intelectuais, escritores e artistas.

16. As principais polêmicas eram semelhantes aos de outras sociedades latino-americanas: (I) articular o local e o cosmopolita; (II) as promessas de modernidade e a inércia das tradições; (III) como podem os campos culturais conquistarem maior autonomia e tornar essa vontade de independência compatível com o desenvolvimento precário do mercado artístico e literário; (IV) de que modo a reorganização industrial da cultura recria as desigualdades. Desta forma, Canclini (2000) conclui que em nenhuma dessas sociedades, o modernismo foi a adoção mimética de modelos importados, nem a busca de soluções meramente formais, apesar de terem se diluído parcialmente em academicismos, variantes da cultura oficial ou jogos do mercado. Suas contradições e discrepâncias expressam a heterogeneidade sociocultural, a dificuldade de realizar-se em meio aos conflitos entre diferentes temporalidades históricas que convivem em um mesmo presente. O autor destaca a necessidade de entender a sinuosa modernidade latino-americana repensando os modernismos como tentativas de intervir no cruzamento de uma ordem dominante semi-oligárquica, uma economia capitalista semi-industrializada e movimentos sociais semitransformadores. Assim, descarta como problema a adoção tardia e mal feita de um modelo de modernização de tipo europeu ou a invenção de um paradigma alternativo e independente. Na medida em que a transnacionalização da economia e da cultura nos torna contemporâneos sem eliminar tradições nacionais, estas opções se tornam uma simplificação insustentável.

EXPANSÃO DO CONSUMO E VOLUNTARISMO CULTURAL:

17. A partir dos anos 1930, começa a organização de um sistema mais autônomo de produção cultural nos países latino-americanos. As camadas médias começam a constituir um mercado cultural com dinâmica própria. Juntamente com a ampliação dos circuitos culturais que a alfabetização crescente produz, escritores, empresários e partidos políticos estimulam uma importante produção nacional.

18. Na segunda metade do século XX, as elites das ciências sociais, da arte e da literatura encontram sinais de firme modernização socioeconômica na América Latina. Canclini (2000) destaca cinco fenômenos indicativos de mudanças estruturais entre os anos 1950 e 70: (I) início de um desenvolvimento mais sólido e diversificado, baseado no crescimento de indústrias com tecnologia avançada, aumento de importações industriais e emprego de assalariados; (II) consolidação e expansão do crescimento urbano; (III) ampliação do mercado de bens culturais, por conta das maiores concentrações urbanas e rápido incremento da matrícula escolar e a conseqüente redução do analfabetismo; (IV) introdução de novas tecnologias comunicacionais, com destaque para a televisão; (5) avanço de movimentos políticos radicais, confiantes no potencial transformador da modernização. O autor destaca que esses processos transformaram as relações entre modernismo cultural e modernização social, bem como a autonomia e a dependência das práticas simbólicas no sentido de uma secularização, convertendo em núcleo do senso comum culto a versão estrutural-funcionalista da oposição entre tradições e modernidade.

19. O crescimento da educação superior e do mercado artístico e literário contribuiu para a profissionalização das funções culturais. São criados os primeiros museus de arte moderna e inúmeras galerias. A ampliação do mercado cultural favorece a especialização, o cultivo experimental de linguagens artísticas e uma sincronia maior com as vanguardas internacionais. Desta forma, produz-se uma separação mais brusca entre os gostos das elites e das classes populares e médias, controladas pela indústria cultural, característicos da dinâmica de expansão e segmentação do mercado. Por outro lado, os movimentos culturais e políticos de esquerda geram ações opostas destinadas a socializar a arte, comunicar as inovações do pensamento a públicos majoritários e fazê-los participar de algum modo da cultura hegemônica. Com isso, gera-se um conflito entre a lógica socioeconômica do crescimento do mercado e a lógica voluntarista do culturalismo político, constituindo uma cisão dos anos 1960. Outra cisão foi a crescente oposição entre o público e o privado.

20. O declínio do voluntarismo cultural foi atribuído ao sufocamento ou à crise das forças insurgentes em que se inseria, mas Canclini (2000) ressalta que falta analisar as causas culturais do fracasso dessa nova tentativa de articular o modernismo com a modernização. Primeiramente, está a supervalorização dos movimentos transformadores sem considerar a lógica de desenvolvimento dos campos culturais, sendo que a dependência consistia na única dinâmica social. O novo olhar sobre a comunicação da cultura construído nos últimos anos parte de duas tendências básicas da lógica social: (I) especialização e estratificação das produções culturais; (II) reorganização das relações entre público e privado em benefício de grandes empresas e fundações privadas. Numa perspectiva de democratização do cosmopolitismo em uma cultura industrializada que necessita se expandir constantemente o consumo, a possibilidade de reservar repertórios exclusivos para minorias é menor. Além disso, renovam-se os mecanismos diferenciais quando os diversos sujeitos se apropriam das novidades.

O ESTADO CUIDA DO PATRIMÔNIO, AS EMPRESAS O MODERNIZAM:

21. Os procedimentos de distinção simbólica operam de outro modo, mediante uma dupla separação: (I) entre o tradicional, administrado pelo Estado, e o moderno, auspiciado por empresas privadas; (II) divisão entre o culto moderno ou experimental para elites promovido por um tipo de empresa e o massivo organizado por outro. A tendência geral é que a modernização da cultura para elites e para as massas vá ficando nas mãos da iniciativa privada.

22. O patrimônio tradicional continua sendo responsabilidade do Estado, enquanto a promoção da cultura moderna é cada vez mais tarefa de empresas e órgãos privados, derivando dois estilos de ação, que buscam seus respectivos reditos simbólicos: (I) governos pensam sua política em termos de proteção e preservação do patrimônio histórico, buscando legitimidade e consenso ao aparecer como representantes da história nacional, e (II) iniciativas inovadoras ficam nas mãos da sociedade civil, especialmente daqueles que dispõem de poder econômico para financiar arriscando, sendo que as empresas buscam lucro e a construção, através da cultura de ponta, renovadora, de uma imagem “não interessada” de sua expansão econômica.

23. Nas últimas três décadas do século XX, as metrópoles e a modernização da cultura visual apresentam uma alta dependência de grandes empresas, em especial pelo seu papel como mecenas dos produtores do campo artístico ou transmissores dessas inovações a circuitos massivos através do desenho industrial e gráfico. A partir dos anos 1960, a burguesia industrial acompanha a modernização produtiva e a introdução de novos hábitos de consumo que ela mesmo impulsiona, com fundações e centros experimentais destinados a conquistar para a iniciativa privada o papel protagônico na reorganização do mercado cultural.

24. Canclini (2000) destaca o fato de algumas dessas ações terem sido promovidas por empresas transnacionais, sendo que as interpretações da história põe todo peso em intenções conspirativas e alianças maquiavélicas dos dominadores, empobrecendo a complexidade e os conflitos da modernização. Nestes anos, ocorria nos países latino-americanos a transformação radical da sociedade, da educação e da cultura e a adoção na produção artística de novos materiais e de procedimentos construtivos não era simples imitação da arte das metrópoles. Essas transformações se consolidaram com o aparecimento de novos espaços de exibição e valorização da produção simbólica, estava sendo formado um novo sistema de circulação e valorização que proclamava mais autonomia para a experimentação, mas a mostrava como parte do processo geral de modernização industrial, tecnológica e do contexto cotidiano, conduzido pelos empresários que dirigiam esses institutos e fundações.

25. Se nos anos 1950 e 70, a cisão entre cultura de elites e de massas tinha sido aprofundada pelos investimentos de diferentes tipos de capital e pela crescente especialização dos produtores e dos públicos; nos anos 1980, as macroempresas se apropriam ao mesmo tempo da programação cultural para elites e para o mercado massivo. A posse simultânea de grandes salas de exposição, espaços publicitários e críticos em cadeias de tevê e rádio, em revistas e outras instituições, permite-lhes programar ações culturais de vasta repercussão e alto custo, controlar os circuitos pelos quais serão veiculados as críticas e, até certo ponto, a decodificação que farão os diferentes públicos.

26. Se a cultura moderna se realiza ao tornar autônomo o campo formado pelos agentes específicos de cada prática, as fundações de mecenas totalizadoras atacam algo central deste projeto, ao subordinar a interação entre os integrantes do campo artístico a uma única vontade empresarial, tendem a neutralizar o desenvolvimento autônomo do campo. O enorme poder de organizações como Televisa e Globo está transformando a estrutura de nossos mercados simbólicos e sua interação com os dos países centrais ao estabelecer uma densa rede de lealdades profissionais e paraprofissionais com artistas, arquitetos, urbanistas e críticos.

27. As fundações não atuam apenas na circulação das obras, mas reformulam as relações entre artistas, intermediários e público, subordinando a uma ou poucos figuras poderosas as interações e os conflitos entre os agentes que ocupam diversas posições no campo cultural. Desta forma, Canclini (2000) aponta uma transição de uma estrutura com vínculos horizontais, na qual as lutas pela legitimidade e a renovação efetuavam-se com critérios predominantemente artísticos e constituíam a dinâmica autônoma dos campos culturais PARA um sistema piramidal no qual as linhas de força se vêem obrigadas a convergir sob a vontade de mecenas ou empresários privados.

28. Tornou-se mais complicado comunicar-se com públicos amplos, ser artista ou escritor, produzir obras significativas no meio dessa reorganização da sociedade global e dos mercados simbólicos. Neste sentido, o popular e o culto, mediados por uma reorganização industrial, mercantil e espetacular dos processos simbólicos, requerem novas estratégias. A América Latina chega aos anos 1990 modernizada como sociedade e como cultura. O modernismo simbólico e a modernização socioeconômica já não estão tão divorciados. O problema é que a modernização se produziu de um modo diferentemente do que esperava-se em décadas anteriores, pois a socialização ou democratização da cultura foi realizada pelas indústrias culturais mais que pela boa vontade cultural ou política dos produtores. Continua havendo desigualdade na apropriação dos bens simbólicos e no acesso à inovação cultural, apesar de não ser mais simples e polarizada. Mediante as transformações estruturais, é preciso averiguar como diversos agentes culturais (produtores, agentes e públicos) redimensionam suas práticas ante tais contradições da modernidade, ou como imaginam que poderiam fazê-lo.

REFERÊNCIA:
CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2000 (Cap. 2: pp. 67-97).

"Galha do cajueiro", letra de música, Wílson Simonal...

Vou fazer minha queixa,
Quando o meu papai chegar
Mamãe não me deixa subir nesse galho
Ela disse que eu caio
E vou lhe dar trabalho

Quando o meu papai,
Quando o meu papai,
Quando o meu papai chegar
Corro pra ele e vou lhe contar, oh!

Papai, mamãe não quer
Que eu suba no cajueiro
Ela falou se eu subir eu caio
Da galha do cajueiro! (3x)

Me tira, mamãe, me tira
Me tira deste castigo
Eu subo naquela galha
Não corro nenhum perigo

Eu quero tirar caju
Eu vendo e ganho dinheiro
Me deixa, mamãe, subir, deixa subir
Na galha do cajueiro!

"Ensaio teórico sobre as relações entre estabelecidos-outsiders" (Norbert Elias), fichamento

1. Comunidade de periferia urbana, com clara divisão entre um grupo estabelecido desde longa data e um grupo mais novo de residentes, tratados pelo primeiro como outsiders, por lhes faltar o carismo grupal distintivo, que o grupo principal atribuía a si mesmo. Elias (2000) destaca que naquela pequena comunidade encontrou um tema humano universal em miniatura na medida em que podemos observar que os membros dos grupos mais poderosos que outros grupos interdependentes se pensam a si mesmos (auto-representam) como humanamente superiores.

2. Elias (2000) levanta as seguintes questões: Como se processa isso? De que modo os membros de um grupo mantém entre si a crença de que são não apenas mais poderosos, mas também seres humanos melhores do que o outro? Que meios utilizam eles para impor a crença em sua superioridade humana aos que são menos poderosos? Os moradores mais antigos recusavam-se a manter qualquer contato social com os vizinhos mais recentes, exceto o exigido por suas atividades profissionais, tratavam os recém-chegados como “os de fora”, enquanto esses pareciam aceitar, com resignação e perplexidade, a idéia de pertencerem a um grupo de menor virtude e respeitabilidade, justificado apenas em poucos casos. Nessa pequena comunidade deparava-se com o que parece ser uma constante universal em qualquer figuração de estabelecidos-outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus membros características humanas superiores; excluía todos os membros do outro grupo do contato social não profissional com seus próprios membros; e o tabu em torno desses contatos era mantido através de meios de controle social como a fofoca elogiosa (no caso dos que observavam) e a ameaça de fofocas depreciativas (contra os sujeitos de transgressão).

3. Apesar das reconhecer as limitações, Elias (2000) destaca vantagens no estudo de uma figuração universal em uma pequena comunidade pelas possibilidades (I) de explorar minuciosamente os problemas (microscopicamente); (II) de construir um modelo explicativo, em pequena escala, da figuração que se acredita ser universal (para ser testado, ampliado e revisto). Desta forma, este modelo pode funcionar como um “paradigma empírico” para compreender características comuns de configurações mais complexas, bem como razões para desenvolvimentos diferentes.

4. A única diferença entre as duas partes da comunidade estudada consistia no fato de um grupo ser composto de antigos residentes, instalados na região há duas ou três gerações, e o outro formado por recém-chegados. Novas questões são colocadas: Que é que induzia as pessoas que formavam o primeiro grupo a se colocarem como uma ordem melhor e superior de seres humanos? Que recursos de poder lhes permitiam afirmar sua superioridade e lançar um estigma sobre os outros, como pessoas de estirpe inferior?

5. Elias (2000) destaca que, neste estudo, podia expor as limitações das teorias que explicam os diferenciais de poder somente (I) em termos da posse monopolista de objetos não humanos (armas, meios de produção), (II) que desconsidere os aspectos figuracionais dos diferenciais de poder, para dever puramente a diferenças no grau de organização dos seres humanos implicados. Neste sentido, o autor destaca o papel decisivo da coesão interna e do controle comunitário na relação de forças entre um grupo e outro na medida em que os recém-chegados eram estranhos para os antigos residentes e entre si. Deste modo, os antigos residentes conseguiam reservar para as pessoas de seu tipo os cargos importantes das organizações locais. A exclusão e estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para preservação de sua identidade e afirmação de sua superioridade, mantendo os outros em seu lugar.

6. Figuração estabelecidos-outsiders: um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração diferencial permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, reforçando sua coesão e excluindo dessas posições os membros dos outros grupos. Neste sentido, o conceito de uma relação entre estabelecidos e outsiders preencheu uma lacuna que impedia de perceber a unidade estrutural comum e as variações desse tipo de relação, bem como explicá-las.

7. O grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características “ruins” de sua porção pior, de sua minoria anômica enquanto a auto-imagem do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar, mais “nômico” ou normativo, na minoria de seus “melhores” membros. Essa distorção em direções opostas faculta ao grupo estabelecido provar suas afirmações a si mesmo e aos outros. Elias (2000) procura estabelecer uma sociodinâmica da estigmatização ao entender as condições em que um grupo consegue lançar um estigma sobre outro como função de uma figuração específica que os dois grupos formavam entre si. Neste sentido, o autor destaca a tendência de se encarar o preconceito social como um categoria individual, quando acredita que só pode ser encontrada ao considerar a figuração formada pelos dois ou mais grupos implicados ou a natureza de sua interdependência. A peça central dessa figuração é um equilíbrio instável de poder e as tensões que lhe são inerentes. Por isso, um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído. Neste caso, o estigma social imposto pelo grupo social mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último, enfraquecendo-o e desarmando-o. Da mesma forma, tão logo diminuem as disparidades de força ou a desigualdade do equilíbrio de poder, os antigos grupos outsiders tendem a retaliar (contra-estigmatização).

8. Uma investigação da estrutura global da relação vigente entre os dois grupos principais requer um desprendimento ou distanciamento de ambos os grupos. O problema consiste em saber que características estruturais da comunidade em desenvolvimento ligavam os dois grupos de tal maneira que os membros de um deles sentiam-se impelidos a tratar os de outro, coletivamente, com certo desprezo. Elias (2000) identifica a diferença acentuada de coesão dos dois grupos como a expressão sociológica desse fato: um integrado, outro não.

9. Grupo de antigos residentes estabelecera um estilo de vida comum e um conjunto de normas, observaram certos padrões e se orgulhavam disso. O afluxo de recém-chegados era sentido como uma ameaça. Para o grupo nuclear da parte antiga, o sentimento de status de cada um e da inclusão na coletividade estava ligado à vida e às tradições comunitárias: para preservar isso, cerravam fileiras contra os recém-chegados, protegendo sua identidade grupal e afirmando sua superioridade. Essa situação mostra a complementaridade do valor humano superior (carisma) atribuído a si mesmo pelo grupo estabelecido e das características “ruins” (desonra grupal) que atribuía aos outsiders. Esta complementaridade é um dos aspectos significativos da relação estabelecidos-outsiders na medida em que fornece um indício da barreira emocional erguida pelos estabelecidos, que responde pela rigidez da atitude e pela perpetuação do tabu contra um contato mais estreito.

10. Elias (2000) compreende a mecânica da estigmatização a partir do papel desempenhado pela imagem que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros e de seu próprio status como membro desse grupo. Os que “estão inseridos” participam desse carisma, mas pagam um preço: a participação na superioridade de um grupo e em seu carisma grupal singular é a recompensa pela submissão às normas específicas do grupo. Trata-se de um preço pago individualmente através da sujeição de sua conduta a padrões específico de controle dos afetos (orgulho ligado à disposição). Os membros do grupo estigmatizado são tidos como não observantes destas normas e restrições, sendo vistos, coletiva e individualmente, como anômicos que põe em risco as defesas do grupo estabelecido, gerando um “medo da poluição”. O contato com outsiders ameaça o “inserido” de ter seu status rebaixado dentro do grupo estabelecido, podendo perder a consideração dos membros deste.

11. Os conceitos que os grupos estabelecidos fazem uso como meio de estigmatização podem variar conforme as características sociais e a tradição de cada grupo. A estigmatização pode surtir um efeito paralisante nos grupos de menor poder. Neste sentido, nada é mais característico do equilíbrio de poder extremamente desigual do que a impossibilidade de os grupos outisiders retaliarem com termos estigmatizantes equivalentes para se referirem ao grupo estabelecido. Um grupo de outsiders não tem como envergonhar os membros de um grupo estabelecido, pois quando começam a ser insultuosos é sinal de que a relação de forças está mudando.

12. A anomia é a censura mais freqüente: os outsiders são vistos pelo grupo estabelecido como indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros. Entretanto, os sintomas de inferioridade humana costumam ser gerados nos membros do grupo inferior pelas próprias condições de sua posição de outsiders e pela humilhação e opressão, sendo iguais no mundo inteiro: pobreza, exposição constante aos caprichos das decisões e ordens dos superiores, humilhação de ser excluído das fileiras deles, atitudes de deferência instiladas no grupo “inferior”. Costumeiramente, se os grupos estabelecidos vêem seu poder superior como um sinal de valor humano mais elevado, quando o diferencial de poder é grande e a submissão inelutável, os grupos outsiders vivenciam afetivamente sua inferioridade de poder como um sinal de inferioridade humana.

13. Além de vivenciarem os grupos outsider como desordeiros que desrespeitam leis e normas, os grupos estabelecidos que dispõem de uma grande margem de poder também consideram que os outsiders não são particularmente limpos, ou seja, sujos e quase inumanos (no caso de diferenciais de poder muito grandes e de uma opressão muito acentuada).

14. Elias (2000) destaca que adjetivos como “racial” ou “étnico” são sintomáticos de um ato ideológico de evitação, cujo emprego chama atenção para um aspecto periférico dessas relações, desviando do aspecto central, que é o fato de estarem ligados de um modo que confere a um recursos de poder muito maiores do que os do outro e permite que esse grupo barre o acesso dos membros do outro ao centro dos recursos de poder e ao contato mais estreito com seus próprios membros, relegando-os a uma posição de outsiders. Desta forma, o autor destaca que a sociodinâmica da relação é determinada por sua forma de vinculação e não por qualquer característica que os grupos tenham, independentemente dela.

15. As tensões e conflitos de grupos inerentes a essa forma de relação podem manter-se latentes (quando os diferenciais de poder são muito grandes) ou aparecer abertamente sob a forma de conflitos contínuos (quando a relação de poder se alterar em favor dos outsiders). O autor destaca que só se apreende a força irresistível desse tipo de vínculo ou o singular desamparo de pessoas ligadas entre si dessa maneira quando de discerne com clareza que estão aprisionadas num vínculo duplo, que não pode se tornar operante quando a dependência é quase inteiramente unilateral e o diferencial de poder entre estabelecidos e outsiders é muito grande. Esse vínculo opera quando os grupos outsiders são necessários de algum modo aos grupos estabelecidos, quando têm alguma função para estes.

16. Elias (2000) destaca que a superioridade de poder confere vantagens aos grupos que a possuem, seja materiais ou econômicas, que sob a influência de Marx despertaram atenção, mas não são as únicas vantagens auferidas pelo grupo estabelecido e muito poderoso em relação a um grupo outsider e de poder relativamente pequeno. As questões passam a ser: que outras vantagens incitam os grupos estabelecidos a lutar ferozmente pela manutenção de sua superioridade? Que outras privações sofrem os grupos outsiders, afora as privações econômicas? O autor destaca que a supremacia dos aspectos econômicos tem acentuação máxima quando o equilíbrio de poder entre os contendores é mais desigual. Quando os grupos outsiders têm que viver no nível de subsistência, o montante de sua receita prepondera sobre todas as suas outras necessidades. Quanto mais se colocam acima do nível de subsistência, mais a sua própria renda serve de meio para atender a outras aspirações humanas que são a satisfação das necessidades animais ou materiais mais elementares, e mais agudamente os grupos nessa situação tendem a sentir a inferioridade social (do poder e do status de que sofrem). Nesta situação, a luta entre estabelecidos e outsiders deixa de ser uma simples luta para aplacar a fome e obter meios de subsistência física e se transforma numa luta para satisfazer também outras aspirações humanas. O autor destaca que a natureza dessas aspirações ainda é obscurecida pelos efeitos da grande descoberta de Marx, ou seja, pela tendência a ver nela o ponto de chegada das indagações sobre as sociedades humanas, quando remete mais à manifestação de um começo. Ao tentar explicar e entender a dinâmica das relações entre estabelecidos e outsiders, Elias (2000) destaca que elas desempenham um papel muito real nos choques entre os grupos humanos interligados desta forma, pois a principal privação sofrida pelo grupo outsider não é a privação de alimento, mas de valor, de amor próprio e de auto-respeito.

17. A estigmatização é um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders que se associa a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido, que reflete e justifica a aversão (preconceito), transformada em um estigma material (coisificação). Desta forma, surge uma coisa objetiva, implantada nos outsiders pela natureza ou pelos deuses, pela qual o grupo estigmatizador é eximido da responsabilidade. Neste caso, se enquadram a referência à cor diferente da pele e outras características inatas ou biológicas.

18. A abordagem de umas figuração estabelecidos-outsiders como uma relação estática não passa de uma etapa preparatória na medida em que os problemas só se tornam evidentes ao considerarmos que o equilíbrio de poder entre esses grupos é mutável, compondo um modelo que mostra os problemas humanos inerentes a essas mudanças. O autor destaca que ainda é obscura a polifonia do movimento de ascensão e declínio ao longo do tempo, bem como o rumo dessas mudanças no longo prazo. Por isso, se surpreende com a inexistência de uma teoria geral das mudanças nos diferenciais de poder e dos problemas humanos associados a elas num período em que se multiplicam os movimentos de antigos grupos de outsiders rumo a posições de poder, com o eixo central de tensão no nível global situando-se entre unidades estatais que nunca foram tão amplas. O autor destaca que a preocupação com os problemas existentes no curto prazo e a concepção de desenvolvimento das sociedades no longo prazo como prelúdio não estruturado do presente continuam a bloquear a compreensão das longas seqüências de desenvolvimento das sociedades e de seu caráter direcional. A herança do antigo Iluminismo, com seu ideal da racionalidade, continua a barras o acesso à estrutura e à dinâmica das figurações estabelecidos-outsiders. Um reflexo disso são as fantasias grupais, proto-históricas, que continuam a escapar pelas malhas de nossa rede conceitual. Isso também surpreende, pois a construção de fanstasias enaltecedoras e depreciativas desempenha um papel óbvio e vital na condução das questões humanas em todos os níveis das relações de poder pelo seu caráter diacrônico e de desenvolvimento.

19. As tensões e conflitos entre estabelecidos e outsiders são lutas para modificar o equilíbrio de poder (desde cabos-de-guerra silenciosos até lutas francas pela mudança do quadro institucional). Enquanto permanentemente intimidados, os grupos outsiders exercem pressões tácitas ou agem abertamente no sentido de reduzir os diferencias de poder responsáveis por sua situação inferior, ao passo que os grupos estabelecidos fazem a mesma coisa em prol da preservação ou aumento desses diferenciais. Evidenciado o problema da distribuição das chances de poder, surge um problema subjacente, que costuma passar desapercebido: se os grupos ligados entre si sob a forma de uma configuração de estabelecidos-outsiders são compostos de seres humanos individuais, o problema é saber como e por que os indivíduos percebem uns aos outros como pertencentes a um mesmo grupo e se incluem mutuamente dentro das fronteiras grupais que estabelecem ao dizer “nós”, enquanto, ao mesmo tempo, excluem outros seres humanos a quem percebem como pertencentes a outro grupo e a quem se referem coletivamente como “eles”. Neste sentido, Elias (2000) evidencia o papel decisivo que a dimensão temporal ou o desenvolvimento de um grupo com um passado comum desempenha como determinante de sua estrutura e suas características. O grupo de estabelecidos tinha atravessado um processo grupal (do passado para o futuro através do presente) que lhes dera um estoque de lembranças, apegos e aversões comuns, uma dimensão grupal diacrônica fundamental para compreender a lógica e o sentido do “nós” que eles usavam para se referir umas às outras. Eles possuíam uma coesão, tinha sua própria hierarquia interna e sua ordem de precedência, que só eram conhecidos no nível da prática social (nível baixo de abstração) e não no nível alto de abstração de termos como “posição social das famílias” ou “ordem hierárquica interna de um grupo”. O grupo de estabelecidos se ligava por laços de intimidade emocional que incluíam antigas amizades e velhas aversões, ou seja, vínculos emocionais de um tipo desenvolvido entre seres humanos que vivenciam juntos um processo grupal de certa duração que só pode ser explicado em termos de seus sentimentos imediatos, sua sensação de pertencer a uma parte superior da vizinhança, com atividades de lazer, instituições religiosas e uma vida política local que eram apreciadas por todos, e não queriam misturar-se em sua vida particular com pessoas de áreas inferiores da localidade, a quem viam como menos respeitáveis e menos cumpridoras das normas do que eles.

20. A opinião interna de qualquer grupo com alto grau de coesão tem uma profunda influência em seus membros, como força reguladora de seus sentimentos e sua conduta. Em um grupo estabelecido, com reserva monopolística para seus membros do acesso recompensador aos instrumentos de poder e carisma coletivo, o efeito é pronunciado devido ao fato do diferencial de poder de um membro diminuir quando seu comportamento e seus sentimentos contrariam a opinião grupal, fazendo-a voltar contra ele. O rebaixamento da posição de um membro dentro da ordem hierárquica interna do grupo reduz sua capacidade de se manter firme na competição interna pelo poder e pelo status. Desta forma, a aprovação da opinião grupal requer a obediência às normas grupais, sendo a punição a perda de poder, acompanhada do rebaixamento de status.

21. O impacto da opinião interna do grupo em cada um de seus membros tem a função e o caráter de consciência da própria pessoa na medida em que a auto-imagem e a auto-estima de um indivíduo estão ligadas ao que os outros membros do grupo pensam dele. Apesar de variável e elástica, a ligação entre a auto-regulação de sua conduta e seus sentimentos com a opinião normativa interna deste ou daquele de seu “nós” só se rompe com a perda da sanidade mental. Neste sentido, a autonomia relativa de cada pessoa, o grau em que sua conduta e seus sentimentos, seu auto-respeito e sua consciência relacionam-se funcionalmente com a opinião interna dos grupos a que ela se refere como “nós” está sujeito a grandes variações.

22. Pode se observar uma ordem estabelecida central que preservava a virtude e a respeitabilidade especiais contra uma ordem estabelecida de nível inferior, e podia ser mantida através da participação gratificante no valor humano superior do grupo e da correspondente acentuação do amor-próprio e auto-respeito dos indivíduos, reforçados pela aprovação contínua da opinião interna do grupo e, ao mesmo tempo, pelas restrições impostas por cada membro a si mesmo. O autocontrole individual e a opinião grupal estão articulados entre si. Se Freud formulou a concepção das funções de autocontrole dos seres humanos como autonomia absoluta dos indivíduos, Elias (2000) mostra que as camadas da estrutura de personalidade ligadas mais direta e estreitamente aos processos grupais de que as pessoas participam, como a imagem do nós e o ideal de nós, ficaram fora do horizonte de Freud, cujo conceito de homem continuou a ser de um indivíduo isolado na medida em que as pessoas pareciam estruturadas e as sociedades formadas por pessoas interdependentes afiguravam-se um pano de fundo, uma “realidade” não-estruturada, cuja dinâmica não exercia nenhuma influência no ser humano individual. Para Elias (2000), a imagem do nós e o ideal de nós de uma pessoa fazem parte de sua auto-imagem e seu ideal do eu tanto quanto a imagem e o ideal do eu da pessoa singular a quem ela se refere como “eu”.

23. Elias (2000) destaca, em nossa época, a imagem e o ideal de nós de nações anteriormente poderosas, cuja superioridade em relação a outras sofreu um declínio: seus membros podem sofrer durante séculos porque o ideal do nós carismático, coletivo, moldado numa auto-imagem idealizada dos tempos de grandeza, permanece por muitas gerações como um modelo ao qual eles crêem dever conformar-se sem ter a possibilidade de fazê-lo. Se por algum tempo, o escudo fantasioso de seu carisma imaginário como grupo estabelecido e dominante pode dar a uma nação em declínio forças para seguir em frente, a discrepância entre a situação real e a situação imaginária do grupo pode acarretar uma avaliação errônea dos instrumentos de poder de que ele dispõe e sugerir uma estratégia coletiva de busca de uma imagem fantasiosa da própria grandeza, que é capaz de levar à autodestruição e à destruição de outros grupos interdependentes.

24. Conceitos como carisma grupal e ideal do nós fazem parte de uma teoria da figuração estabelecidos-outsiders e contribuem para uma avaliação mais adequada dessas relações grupais. Elias (2000) destaca que quanto maior a consciência da equação emotiva entre grande poder e grande valor humano, maior a probabilidade de uma avaliação crítica e de uma mudança. Por isso, os padrões tradicionais de continência e as normas de conduta que distinguem um antigo grupo superior tendem a se fragilizar ou se desarticular quando vacila o amor-próprio recompensador, a crença no carisma especial do grupo antes poderoso, em função do declínio de sua grande superioridade de poder. Esse processo leva tempo. A rejeição e a estigmatização dos outsiders constituem seu contra-ataque, com a circulação de fofocas depreciativas e a auto-imagem maculada dos outsiders como traços constituintes desse tipo de figuração.

25. O autor destaca que a exclusão dos processos grupais de longo prazo tende a distorcer o problema, dando como exemplo a discussão sobre os problemas “raciais”, quando se afirma que as pessoas percebem as outras como pertencentes a outro grupo porque a cor da sua pele é diferente, quando seria mais pertinente indagar como foi que surgiu no mundo o hábito de perceber as pessoas com outra cor de pele como pertencentes a um grupo diferente. Para Elias (2000), foi em decorrência de um longo processo de interpenetração que grupos com diferentes características físicas tornaram-se interdependentes, ocupando posições com grandes diferencias de poder. Por isso, a necessidade de reconstituir o caráter temporal dos grupos e suas relações com processos na seqüência temporal para entender as fronteiras que as pessoas traçam ao estabelecer uma distinção entre grupos a que se referem como “nós” e grupos a que se referem como “eles”.

26. No caso em pauta, os estabelecidos vêem os outsiders como uma ameaça a sua posição, sua virtude e graça especiais e, por isso, revidaram contundentemente ao se sentirem expostos a um ataque tríplice contra o monopólio das fontes de poder, o carisma coletivo e suas normas grupais. Cerraram suas fileiras contra os recém-chegados, excluindo-os e humilhando-os. Os outsiders dificilmente teriam a intenção de agredir os antigos residentes, mas foram colocados em uma situação infausta e, muitas vezes, humilhante.

REFERÊNCIA:
ELIAS, Norbert. Estabelecidos e outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000 (Introdução: pp.19-50)