sábado, 11 de dezembro de 2010

Modernização ou "Ecologização": uma síntese de Bruno Latour...

Latour, Bruno. To modernise or ecologise? That is the question (Disponível em http://www.bruno-latour.fr/articles/article/073.html - Acessado em 11/12/2010)

Neste artigo, com base na situação política francesa e na marginalidade contínua dos vários partidos verdes, Bruno Latour desenvolve uma interessante perspectiva para analisar as políticas ecológicas , apontando uma tendência de reconfiguração dos mesmos. Para tal empreendimento, utiliza três vertentes diferentes:
(1) o modelo da justificação para entender as disputas políticas, elaborado por Luc Boltanski e Laurent Thévenot;
(2) um estudo de caso sobre a criação por lei do que poderia ser chamado de "parlamentos locais de água" (Latour & Le Bourhis, 1995);
(3) um projeto, mais filosófico, de desenvolver uma alternativa à noção de modernidade e explorar as raízes políticas da noção de natureza.

O ponto principal é mostrar que uma política ecológica não pode ser inserida em uma análise da modernidade, mas como uma alternativa para a modernização. Neste sentido, a ecologia deve ser vista como uma nova forma de lidar com todos os objetos, humanos e não humanos, da vida coletiva. Com isso, o autor tenta dar conta da seguinte questão: o movimento ecológico é, de fato, uma nova forma de política (ecológica) ou um ramo particular das modernas políticas?

Latour começa seu empreendimento analítico assinalando que se, por um lado, as políticas ecológicas encontram-se cada vez mais integrada na vida cotidiana mesmo que não sejam capazes de se tornar a plataforma política de um grupo específico; por outro lado, estas políticas tornam-se exageradas (ou infladas) a tal ponto que se arrogam em assumir a responsabilidade pelas agendas de todos os partidos políticos, mesmo que, para tal, penalize homens e mulheres que não pertencem ao “mundo da política”, quando acenam para uma unidade global que não tem o domínio político como horizonte. Desta forma, o autor mostra que, nos termos da modernidade, a política ecológica parece ser menos aceita e menos importante do que aparenta ser, bem como mais marginal do que gostaria de ser.

Bruno Latour avança na seguinte hipótese: de que o aumento de poder das políticas ecológicas pode ser dificultado por uma auto-definição que as posicionam tanto como política quanto como ecologia. Esta auto-definição faz com que toda uma sabedoria prática adquirida em anos de ação militante seja incapaz de ser expressada em um princípio de classificação e ordenação, que o autor entende como “politicamente eficaz”. Sem esse princípio de ordenação, as políticas ecológicas apresentam pouca influência sobre o eleitorados, além de não gerenciar — mesmo com argumentos que aparentam ser tão eficazes — o desenvolvimento duradouro e consistente de sua viabilidade política.

O trabalho de Boltanski & Thévenot (1991) ofereceria, assim, o “teste ácido ideal” para verificar se as políticas ecológicas podem sobreviver como uma forma original de política ou se pode ser dissolvida em regimes de justificação que já tenham sido postos em prática. O autor entende que este modelo permite testar se as políticas ecológicas oferecem um novo princípio de justificação ou se podem ser reduzidas para os outros seis princípios (doméstico, mercado, industrial, cívico, transcendental e reputação) que foram sedimentados ao longo do tempo.

À primeira vista, parece que não pode haver um sétimo regime, “ecológico", na medida em que qualquer um dos regimes empíricos empresta seu princípio de justificação quando são enfrentados pelas políticas ecológicas. Latour enfatizou os regimes de justificação doméstico, cívico, industrial e comercial em sua análise e — com base em várias reduções, utilizando o modelo de Boltanski & Thévenot (1991) — entende que não seria possível falar de um "regime ecológico", pois suas questões podem ser resolvidas pelas justificações existentes nos regimes doméstico, industrial, cívico e comercial. No entanto, estes regimes encontram-se baseados no princípio da humanidade comum. Neste sentido, Latour provoca uma reflexão ao colocar a seguinte questão: será que devemos abandonar o princípio da humanidade comum?

Os regimes de justificação desenvolvidos por Boltanski & Thévenot (1991) apresentam como ponto comum que "a humanidade é a medida de todas as coisas". Latour assinala que a “resposta padrão” para o problema de abandonar este princípio comum passa pela constatação de que a ecologia não compreende apenas os seres humanos, mas a natureza, uma unidade maior que incluiria os seres humanos, entre outros componentes associados a outros ecossistemas.

Esta “resposta padrão” apresenta uma incoerência política. Utilizando de ironia, o autor destaca que é difícil se imaginar uma apresentação ao eleitorado com um programa que prevê a possibilidade de fazê-lo desaparecer em favor de um "congresso de animais" que nem sequer votam ou pagam impostos! Latour entende que, confrontado com essa alternativa, a reação do “cidadão comum” seria compreensível: "preferiria viver uma vida mais curta em uma democracia do que sacrificar minha vida hoje — e dos meus descendentes — para proteger uma natureza muda”. Daí a dificuldade de descobrir o " sétimo regime", bem como, diante de tais dilemas, pode-se entender porque os partidos têm dificuldades de explicar a si mesmos, para seus membros e aos seus eleitores o significado de sua luta ecológica.

Entretanto, Latour destaca que este caminho, trilhado/sintetizado até aqui, pode estar errado. Parece, de fato, que a originalidade das políticas ecológicas é muito mais sutil do que foi visto até este ponto. Com isso, o autor lança mão de uma análise a partir de uma distância que separa a prática da auto-representação. Para tal, propõe a criação de duas listas contrastantes:

1. O que a ecologia acredita que deve fazer sem conseguir fazer

As políticas ecológicas se credenciam a falar sobre a natureza, mas falam sobre imbróglios intermináveis, que envolvem sempre algum grau de participação humana:

• Alegam proteger a natureza dos seres humanos, mas em todos os casos empíricos percebe-se maior envolvimento humano com intervenções mais freqüentes.
• Alegam proteger a natureza por si só, mas esta “missão” é realizada por homens e mulheres com o fim de gerar bem-estar, prazer ou consciência a um pequeno número de seres humanos selecionados cuidadosamente e de forma justificada.
• Alegam pensar cientificamente, mas cada vez que tentam incluir tudo em uma “causa maior”, são arrastadas para controvérsias científicas em que os especialistas são incapazes de chegar a um acordo.
• Alegam ter seus modelos científicos de hierarquias regulados por sistemas de controle cibernético, mas são sempre surpreendidas por acontecimentos inesperados.
• Alegam falar sobre tudo, mas só conseguem formar opinião e modificar as relações de poder, vinculando-se a determinados lugares, biótopos, situações e eventos.
• Alegam ser cada vez mais poderosa uma “política da vida do futuro”, mas encontram-se reduzida à menor fatia dos eleitores.

Ao invés do desespero frente a esta grave avaliação, Latour entende que todas as vantagens das políticas ecológicas se estivessem livres de suas próprias ilusões também podem ser aproveitadas. Para tal, o autor passa a considerar que as práticas das políticas ecológicas valem mais do que seus ideais utópicos de um regime “super-natural” gerido por cientistas para o benefício exclusivo de uma “Terra-Mãe”, que poderia a qualquer momento se tornar “uma mãe cruel e antinatural”.

Desta forma, Latour passa a considerar os "defeitos" destas práticas como vantagens positivas, iluminando um novo significado.

2. O que as políticas ecológicas (felizmente) fizeram muito bem:

• não são, nem nunca tentaram falar sobre a natureza, sendo portadoras de formas complexas de associações entre os seres. A natureza não está em questão, pois as políticas ecológicas dissolvem as fronteiras, redistribuem os agentes e, assim, remete à pré-moderna antropologia muito mais do que pensa.
• não pretendem, nem nunca pretenderam proteger a natureza. Pelo contrário, querem assumir o controle, de uma forma ainda mais completa e ampla, de uma diversidade maior de entidades e destinos.
• nunca pretenderam servir à natureza para seu próprio bem, pois são totalmente incapazes de definir o bem comum de uma natureza desumanizada. Neste sentido, mais do que proteger a natureza, para seu próprio bem ou das gerações futuras, suspendem nossas certezas com relação ao bem soberano dos seres humanos e não humanos, de meios e fins.
• não sabem o que é um sistema “eco-político” e não repousam sobre as idéias de uma ciência complexa, cujo modelo e métodos, se existissem, escapariam totalmente do alcance do “pensamento comum”. Latour entende que esta é a sua grande virtude das políticas ecológicas: não sabem o que fazem e não formam um sistema; não sabem o que são e não estão conectadas! As controvérsias científicas em que se envolvem são precisamente o que as distinguem de todos os outros movimentos político-científicos do passado, sendo as únicas que podem se beneficiar de outras políticas da ciência.
• não são, nem nunca procuraram integrar todas as suas ações de forma meticulosa e particular em uma unidade completa e hierarquizada. A ignorância em relação à totalidade é “sua salvação”, pois isso impede a configuração de uma hierarquia única. Assim, “o menor pode se tornar maior”.

Latour entende que as políticas ecológicas felizmente permaneceram à margem até agora porque ainda não compreenderam a sua política ou a sua ecologia. Estas políticas acreditam que falam sobre a natureza como um sistema, uma totalidade hierarquizada, um mundo sem os seres humanos, uma ciência certa, sendo que o autor assinala justamente estas declarações bem-ordenadas como elemento que marginaliza.

Ao comparar as duas listas que construiu, Latour se concentra na aplicação prática das políticas ecológicas, levando a um um movimento analítico completamente diferente do que se tinha ao iniciar seu artigo. As políticas ecológicas não fazem menção à natureza, elas não conhecem “o sistema”, enterram-se em controvérsias, mergulham em imbróglios sócio-técnicos, assumem o controle de mais entidades com cada vez mais diferentes destinos, e sabem com menos certeza o que todos têm em comum.

Com isso, a questão aberta pelo " sétimo regime” é saber “o que é um ser humano sem elefantes, as plantas, os leões, os cereais, os oceanos, o ozônio ou o plâncton?”. Latour assinala que o regime ecológico não diz que devemos mudar a nossa lealdade, do reino humano para a natureza. Este regime simplesmente diz que não sabe o que faz com que a humanidade comum dos seres humanos, mas que “sem os elefantes do Amboseli, sem as águas meandros da Drôme, sem os ursos dos Pireneus (...) ou sem o lençol freático da Beauce eles não seriam humanos”.

Esse não-saber se deve à incerteza quanto à relação entre meios e fins. Latour faz menção a definição de Kant da moralidade humana, estendendo-a para os não-humanos, generalizando a todos os seres da criação a aspiração ao reino dos fins. Com isso, encontra uma definição exata das conexões práticas estabelecida pelos ecologistas com aqueles que estão a defender: os rios, os animais, os biotipos, as florestas, os parques e os insetos. Estes não-humanos fazem de tudo para dizer que não devemos utilizar, controlar, servir, dominar, ordenar, distribuir ou estudá-los, mas, como os seres humanos, nunca considerá-los como simples meio, mas sempre como fim.

Latour assinala que esta suspensão de segurança sobre meios e fins define uma escala de regime ecológico (ou “regime verde”) que não pode ser reduzido aos outros regimes de filosofia política, conforme o modelo de Boltanski & Thévenot (1991). Na escala de valores desta "cidade verde", o valor se constrói pela solidariedade entre meios e fins. Neste sentido, tudo não está necessariamente inter-relacionado, pois não se sabe o que é interligado e entrelaçado, bem como ninguém sabe do que o ambiente é capaz.

Uma vantagem de definir a escala de “regime verde” é a remoção de um obstáculo, representado por uma pretenciosa ecologia fundamentalista, ou "ecologia profunda", que ocuparia um estado de inutilidade no " sétimo regime”. Isso se dá na medida em que o “regime verde” pressupõe uma incerteza arraigada quanto à natureza de acessórios, à sua solidez e distribuição, considerando apenas mediadores, que devem ser tratados cada qual de acordo com suas próprias leis.

Assim, para definir este "sétimo regime”, Latour destaca que é necessário invocar a prática dos movimentos ecológicos, colocando-a em oposição às justificativas teóricas de seus seguidores. O autor entende que a razão para esta lacuna é evidente na medida em que, para justificar o “regime ecológico”, torna-se necessário ser capaz de falar sobre ciência e a política, suspendendo suas certezas (1) no que diz respeito aos sujeitos e (2) aos objetos. Todos os outros regimes de justificação pertencem ao mundo da filosofia política, são antropocêntricos. Por isso, o “regime ecológico” ainda espera pelo surgimento “de seu Rousseau, sua Bossuet, ou dos seus Hobbes”.

Neste novo regime, Latour entende que tudo é complicado e qualquer decisão exige cautela e prudência, nunca se pode ir em linha reta ou rápido. É impossível continuar sem prudência e sem modéstia. Para estimular as políticas ecológicas, deve se adicionar a incerteza para que os atores comecem a ter dúvidas suficientes. Trata-se de uma experimentação coletiva sobre as possíveis associações entre coisas e pessoas sem que qualquer destas entidades seja utilizada como um simples meio.

As políticas ecológicas, portanto, não são definidas considerando a natureza, mas pela trajetória diferente de todos os objetos. Elas fazem referência à obrigação de estarmos preparados para tomar conta dos outros participantes, bem como para o aparecimento de imprevistos desde que todos aspirem a tomar parte no "reino dos fins", combinando as relações locais e globais. Para acompanhar esses “quase-objetos”, Latour destaca a necessidade de inventar novos procedimentos capazes de “gerir essas chegadas e partidas, esses fins e esses meios”, entendidos como processos que são completamente diferentes daqueles utilizados no passado para gerir as coisas.

Resumindo, o argumento de Latour passa por assumir que as políticas ecológicas não tem nada a ver com considerar a natureza, seus próprios interesses ou objetivos, mas tem a ver com uma forma de considerar tudo. “Ecologizar” (ou ambientalizar...) uma questão, um objeto ou um dado, não significa colocá-los no contexto, dar-lhe um ecossistema. Isso seria defini-la em oposição à outra atividade, ou seja, o que é conhecido como “modernização”; porntato, significa criar os procedimentos que tornam possível acompanhar uma rede de quase-objetos cujas relações de subordinação permanecem incertos e que, portanto, exigem uma nova forma de atividade política adaptada para segui-los.

Latour entende que a ecologia não envolve simplesmente uma questão de ser "prudente" para evitar cometer erros. Torna-se necessário criar outros procedimentos de investigação político-científica e experimentação. No contraste entre a “modernização” e “ecologização”, o autor chama atenção para o fato de que é muito mais uma questão de tudo o que deve ser considerado de maneira diferente, sendo que esse "tudo" não pode ser subsumido sob a expressão da natureza. Esta diferença não se reduz a importação de conhecimentos naturalistas em discussões humanas. A partir do “regime verde” , a interação das denúncias dos outros regimes e os compromissos inevitáveis a serem acordados com eles, talvez se possa arrastar as políticas ecológicas de seu atual estado de estagnação, fazendo-as ocupar a posição que “as esquerdas”, em um estado de implosão, deixaram aberto por (há) muito tempo.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A construção da noção de sociabilidade agonística nos processos de familizarização e desfamiliarização na “roça”


A proposta do trabalho é tecer uma análise da construção da noção de “sociabilidade agonística” a partir de um trabalho de campo realizado “na roça” na Zona da Mata de Minas Gerais (Comerford, 2003). Ao perceber uma conflitividade cotidiana no contexto pesquisado, o autor apresenta um conjunto de expressões de antagonismo, realçando a importância dos conflitos na esfera das relações familiares do contexto pesquisado. Comerford (2003) analisa os eventos ou processos categorizados como conflitos agudos pelos esquemas classificatórios dos próprios atores sociais observados, bem como formas específicas de sociabilidade que configuram cenários “naturais” na medida em que propiciam e focalizam uma expressão pública das tensões.
Com base na dimensão agonística[1] presente nos comportamentos observados e nas narrativas de eventos da vida cotidiana, o autor constrói a formulação de uma sociabilidade agonística, inspirada em estudos sobre a relação entre linguagem, discurso e organização social. Com o pressuposto de que padrões de ação coletiva são também padrões de representação coletiva, procura entender a organização social, que, nessa perspectiva, passa a ser também a organização do discurso e das representações que veiculam esse discurso.
Devido ao interesse que nutro pelas análises do cotidiano, analiso a construção da noção de sociabilidade agonística como elemento que perpassa a vida cotidiana na “roça”. Portanto, não abordo aqui as relações, que o autor dedicou atenção, deste tipo de sociabilidade com os princípios inerentes à dimensão institucional das Comunidades Eclesiais de Base, das autoridades estatais ou dos sindicatos dos trabalhadores rurais.
O trabalho foi concebido como uma tentativa de fazer uso de operações de bricolagem (De Certeau, 1997)[2] sobre o texto de Comerford (2003). Isso me fez procurar, capturar, reelaborar e apresentar uma interpretação possível acerca da noção de sociabilidade agonística, considerando o contexto pesquisado pelo autor, de forma que possa ser aproveitada em outros contextos de pesquisa[3]. Com isso, noto que a noção de sociabilidade agonística se imbrica com processos de familiarização e desfamiliarização, bem como com outras noções, tais como política de reputação, poética do respeito e condições de respeitabilidade, mapeamento social e territórios de parentesco.
Assim, na primeira sessão, apresento o campo analítico, que denomino como pano de fundo, no qual se insere a noção de sociabilidade agonística, sobreposta e complementada pelas noções e processos mencionados acima, em um contexto marcado pelo controle. Na seqüência, procuro analisar o plano das motivações e os antagonistas, bem como as práticas de “conflito” que constituem a base de uma sociabilidade agonística, presente em processos de familiarização e desfamiliarização, que é abordada em um tópico final.

1. O controle das famílias como pano de fundo de uma sociabilidade agonística

A noção de política de reputação (Bailey, 1971 apud Comerford, 2003) e a análise de Gilmore (1987 apud Comerford, 2003) sobre a conflitualidade cotidiana inspiraram a construção da noção de sociabilidade agonística. No entanto, Comerford (2003) ressalta que, ao invés da inclinação para o “individualismo metodológico” de ambos os autores, adotou a idéia de familismo metodológico, tomando a centralidade da família  no contexto pesquisado como ponto de partida.
O autor observou um controle informal sobre as ações dos moradores “na roça”, de tal forma que todos demonstram consciência de que suas ações poderão fazer parte das narrativas de seus vizinhos e parentes, que são, ao mesmo tempo, público e autor destas narrativas. Uma rede de julgamentos e interpretações assim se forma, avaliando as qualidades morais destes personagens, que são membros das famílias, bem como o estado das relações dentro destas e entre elas: cada ação tende a ser tomada como uma mensagem sobre qualidades, diferenças e capacidades pessoais e familiares em uma arte agonística das relações sociais. Com isso, a capacidade de construir e impor interpretações — desqualificando aquelas que são tidas como concorrentes — se torna essencial, constituindo um universo agonístico.
Os acontecimentos cotidianos que ocorrem no plano das famílias e de suas relações podem revelar qualidades e fraquezas de cada família e das relações entre elas. Comerford (2003) entende que as pessoas/famílias efetuam “operações de mapeamento”, pois possuem “mapas” das relações de parentesco, como prática permanente de produção de referências, conformando um “auto-conhecimento” no/do contexto pesquisado. Deste modo, esses mapeamentos promovem um saber obrigatório e naturalizado, que é essencial para a “navegação cotidiana” no emaranhado das relações.
Neste sentido, as narrativas e comentários cotidianos apontam para uma tendência de associação de córregos/fazendas a algumas famílias. Essa tendência de relação entre localidade e parentesco se dá em dois planos: primeiro, uma relativa agregação territorial, ao longo do tempo, de pais, filhos, irmãos, primos, tios, sobrinhos, netos, cunhadas, cunhados, noras, genros, compadres e comadres; segundo, uma ênfase das narrativas, comentários e explicações voltada tanto para as relações de parentesco entre aqueles que vivem em uma mesma localidade, quanto para a antiguidade da associação entre dadas famílias e dadas localidades.
Assim, Comerford (2003) assinala duas lógicas de nominação das localidades, compreendendo, de um lado, uma relação de associação direta entre os nomes de certas famílias e certas localidades; e, de outro, uma aparente ausência dessa relação. Isso lhe permite identificar uma distinção entre as famílias “que contam” e aquelas “que não contam”. As famílias que têm seu nome mais fortemente associado a um córrego são reconhecidas como “antigas” naquele lugar. Essa “antiguidade” mantém uma correlação positiva com o número de pessoas, a quantidade de terras, a riqueza, o prestígio e o poder.
Neste sentido também há uma valorização das famílias que não vendem suas terras para gente “de fora” (das famílias), o que indica união, um aspecto importante para manter a identidade entre localidades e famílias ao longo das gerações. Por outro lado, a divisão ou não de terras pode gerar controvérsias e se tornar um motivo de tensão entre filhos e pais (enquanto vivos), e/ou entre irmãos e irmãs (e cunhados e cunhadas).
A proximidade das áreas de moradia permite uma intensidade relativamente grande de interações e uma densidade de arranjos de cooperação, que, entretanto, não eliminam a possibilidade de rompimentos mais ou menos sérios. A subdivisão de terras como elemento de tensão aponta para uma série de motivos que podem desencadear desentendimentos, brigas e afastamentos entre parentes, que também se ajudam, freqüentam casas e se aproximam, demarcando e remarcando espaços e pertencimentos.
Desta forma, Comerford (2003) indica um padrão de territórios de parentesco pelo qual a liberdade, a fluência de relações e a familiaridade permitem tolerar problemas envolvendo animais, água, divisas, desatenções, brincadeiras, dívidas, entre outros, que poderiam resultar em graves rompimentos e mortes. No entanto, considerando que as circunstâncias podem mudar rápida e inesperadamente, essa familiaridade da família é sempre posta à prova, já que passa pela interpretação mútua dos atos e relatos.
A possibilidade latente de levar às últimas conseqüências a identificação de uma localidade e de um nome de família configura processos mútuos de localização das famílias e familiarização das localidades. Desta forma, o autor chama atenção para uma dimensão paralela à da valorização retórica e prática da união da família em torno da associação a uma localidade, que remete à manutenção dos laços, apesar de uma sempre possível dispersão.
As decisões de sair de um território de parentesco, por exemplo, relacionam-se com conflitos ou tensões intra/interfamiliares (“falta de respeito”, “provocação”, “traição”, “perder a paciência”) e/ou um desconforto com situações de relações rompidas que levam à evitação cotidiana, à desconfiança, à falta de tolerância. Por isso, Comerford (2003) assinala que, na origem da circulação de pessoas/famílias, figuram crises de certa economia moral ou poética do respeito.
As pessoas/famílias circulam em função de conflitos, casamentos, da busca de mais ou melhores terras para reacomodar e agrupar filhos, genros e noras, formando, assim, um “xadrez” complexo de relações estabelecidas ao longo do tempo, no qual as tensões se relacionam a ações coletivas e modalidades de disputas que adquirem um caráter público, se consolidando em reputação ou “fama” de um subconjunto de pessoas/famílias associadas a uma subdivisão do espaço geográfico.
Assim, há uma hierarquização em dois níveis: entre as famílias/parentelas que “contam”, porque têm seu nome associado a uma localidade, e as que “não contam”, pois são consideradas “famílias isoladas” “pequenas famílias”; e entre as famílias/parentelas que “contam”, no sentido de distinguir aquelas que “mandam”. Essa hierarquização das famílias pode mudar com o tempo, assumindo diversas configurações, que dependem do número de famílias que “contam”, da força relativa delas e das relações com outros ramos da família ou parentes nas vizinhanças na região, e fora dela. Por outro lado, há uma relativa igualdade na medida em que nenhuma família é tão forte que possa desconsiderar a presença das outras[4].
As modalidades de fixação e oficialização dessas hierarquias das famílias nos córregos são limitadas na medida em que são construídas cotidianamente através das mais diversas modalidades expressivas e formas de luta, atribuindo aos outros, bem como também se atribuindo, um lugar em escalas relativamente móveis de avaliação social. Trata-se de um jogo contínuo, no qual a hierarquização entre as famílias “que contam” serve como diretriz, guia ou parâmetro que orienta as famílias-parentelas menores e/ou mais recentes, que não “mandam” — sendo, por isso, mais “fracas”, menos admiradas, vistas como menos “unidas”: famílias que pouco ou nada “contam”.
Neste sentido, a noção de política de reputação (Bailey, 1971 apud Comerford, 2003) torna-se útil para pensar o jogo entre esses dois níveis de famílias, com as reputações das famílias que “contam” em um nível mais central. No contexto em questão, a ênfase recai na reputação das famílias e não de indivíduos, abrindo um campo significativo para subdivisões, segmentações, alianças cruzadas e conflitos “internos” que redefinem os limites das próprias famílias.
Comerford (2003) mostra como certas condições relacionadas com a posse da terra podem ser analisadas quanto à sua importância como condição para exercer uma política/poética de reputações e do respeito, ou seja, para a respeitabilidade como prática semiótica e discursiva. As famílias que não possuem acesso a terra e morada próprias não estão na mesma situação que as famílias de sitiantes proprietários, ou seja, das famílias que “contam” nos córregos. Assim, (1) ter ou não ter terra, (2) as condições em que se estabelece o acesso à terra e (3) a quantidade de terra a que se tem acesso ou de que se é proprietário constituem condições internas às operações da poética do respeito e da política de reputações, ou seja, são condições de respeitabilidade, que afetam toda a dinâmica do mapeamento social.
Neste sentido, a família que tem seu nome associado ao lugar aparece com uma densidade que a torna notável, pois “se dá a ver e fornece matéria prima para narrativas” (Comerford, 2003, p. 63) que remetem à sua luta cotidiana; à exemplaridade dos chefes das famílias nucleares que a compõem; à ajuda que pode dar aos seus e aos outros; à capacidade de controlar adequadamente os seus tempos; bem como à habilidade de cada membro de responder corajosa/habilmente a provocações, aproveitar as oportunidades em proveito da família e impor suas versões dos enfrentamentos e desfechos. Tudo isso acontece diante da observação atenta e do julgamento de todos aqueles que ficaram sabendo o que se passa, por “ouvir falar”.
Desta forma, a hierarquização e a fissão são processos que se complementam em uma dinâmica de familiarização e desfamiliarização, na qual se desenvolve uma sociabilidade agonística. Assim, na sessão seguinte, analiso as motivações e os antagonistas, assim como as práticas dos conflitos que surgem nestes contextos.

2. Os conflitos: motivações, antagonistas e práticas

Os territórios de parentescos mapeados pela respeitabilidade fazem com que a união de uma família seja um dos valores que demonstra sua superioridade sobre as outras. Um conjunto de valores que expressa união é usado performativamente para comparar e hierarquizar as famílias, o que está relacionado com a definição do que deve ser uma família. Desta forma, “algumas famílias são ‘mais’ famílias do que outras” (Comerford, 2003, p.67).
Neste sentido, um conjunto de práticas e processos de familiarização centrados em nomes de família se encontra associado em maior ou menor medida a determinados córregos. Deste modo, as famílias se produzem por meio de uma tripla associação: dos nomes em que se reconhecem, dos nomes de localidades e de suas reputações.
Trata-se de uma corporatização da família, conferindo-lhe um caráter relativamente fechado diante de “estranhos”, identificados como aqueles com os quais não há processos de familiarização em curso ou com os quais está em curso um processo de desfamiliarização. O conflito torna-se fundamental para explicar esse caráter mais ou menos corporado e está associado à expressão pública desse caráter e a qualidades morais, bem como aos processos de familiarização, às configurações de hierarquização entre famílias e aos processos de fissão de córregos.
Desta forma, se mesmo quando mais se expressa união, há uma conflitividade subjacente, o conflito, tomado no sentido amplo de uma sociabilidade agonística, aparece como pressuposto das relações e foco de estruturação social. As famílias se fazem e se tornam, ou não, famílias “que contam” no lugar através das contendas nas quais se envolvem. Por isso, os conflitos — como prática — são fundamentais no processo pelo qual a família ganha sentido no plano discursivo e se insere em narrativas carregadas de categorias de cunho “moral”, em especial o respeito.
Essas narrativas constituem parte essencial dos processos de familiarização e desfamiliarização, entendidos como fatos da ordem do discurso e da representação expressiva. Com isso, uma política de reputações não se faz entre unidades preestabelecidas, mesmo com pontos de partida predefinidos a cada momento, e nem apenas nos limites das localidades, na medida em que lança mão de relações que se apresentam como “externas”.
Comerford (2003) aborda as seqüências de atos ou eventos qualificados nos termos dos próprios atores observados — confusão, baderna, encrenca, briga, violência, morte — como ponto de partida para analisar a sociabilidade agonística enquanto uma conflitualidade permanente, que é matéria do cotidiano no contexto em questão. Esses conflitos são públicos e conformam marcos nas relações entre famílias e dentro delas; além de definir os limites entre elas, assim como as atribuições de boa ou má reputação, ou fama, a cada uma das famílias. Os conflitos tornam-se relevantes porque constituem matéria de reflexão sobre as relações interpessoais e intra/interfamiliares; os critérios de avaliação e hierarquização das pessoas/famílias; os campos em que as famílias podem se antagonizar ou competir; bem como a falibilidade da justiça dos homens em comparação com a de Deus.
Uma retórica dos conflitos é, portanto, construída em inúmeras conversas e discussões cotidianas, e repõe e impõe esses conflitos como pressupostos das relações entre/dentro das famílias. Neste sentido, “os conflitos são bons para pensar” (Comerford, 2003, p. 70) um tipo de pensamento público, narrado, que modula as fronteiras e relações entre unidades socialmente significativas nas configurações dos córregos em um processo cotidiano de mapeamento.
Assim, as narrativas configuram uma dimensão dos próprios conflitos, na medida em que a própria interpretação delas os faz continuar, bem como pela relação “interna” entre a lógica estruturadora de um gênero narrativo e a lógica das ações públicas dos agentes em conflito. Neste sentido, Comerford (2003) separa a análise do que as narrativas, diálogos e observações revelam a respeito das práticas de conflito; e as análises das formas narrativas e dos eventos narrativos em si, como práticas. Assim, desenvolve uma análise das motivações e dos antagonistas, bem como das práticas de conflito, que apresento bricoladamente na seqüência.

2.1. As motivações e os antagonistas

Os conflitos agudos nos córregos (1) são públicos e “coletivos” (familiares); (2) dizem respeito à gestão de fronteiras corporais, territoriais, pessoais e familiares (associadas entre si); constituindo (3) marcos nos processos de familiarização e desfamiliarização, e de hierarquização entre as famílias. As diferentes séries de motivos para deflagração de um conflito levam a ritmos, formas e etiquetas de negociação, rompimento, tensionamento e distenção, que apontam para padrões socialmente definidos de tolerância e intolerância. De certa forma, todos os motivos podem ser traduzidos como falta de respeito.
Comerford (2003) assinala que as partes em oposição são sempre membros de um mesmo círculo social amplo, um mesmo “público”, ainda que com segmentações. Dessa forma, os antagonistas são pessoas/famílias focalizadas em processos de mapeamento. Cada antagonista sempre pode caracterizar o outro  (exceto quando a motivação é a “tentação do capeta”) como pessoas/famílias que faltaram ao respeito, caracterizando a si mesmos como pessoas/famílias que buscam se fazer respeitar e se revoltam diante de um desrespeito.
Com isso, optei por configurar um quadro, apresentado abaixo, que contempla as características dos oito tipos de motivações dos conflitos mapeados por Comerford (2003), bem como os antagonistas mais recorrentemente envolvidos em cada uma dessas motivações.










Quadro 1 – Motivações e antagonistas dos conflitos
Tipo
Caracterízação
Antagonistas mais recorrentes
Por divisas
(mais comum)


Envolve atos interpretados como violações/transgressões[5] diretas/indiretas de fronteiras de territórios associados a famílias, que podem ocorrer a qualquer momento, possuindo certa “duração”. Um jogo de sinais expressa o senso de limites de cada uma das partes, com crescimento da tensão ao longo do tempo. As negociações e conversas configuram uma etiqueta do jogo entre “tolerar”/“ter paciência” e “não tolerar”/“perder a paciência”, permitindo estabelecer um consenso de limites mútuos.
Vizinhos


Membros de mesma família-nome ou entre parentes[6]
Política
As escaramuças, ameaças e atentados se limitam ao período da política eleitoral, mas podem permanecer como motivador de tensões latentes entre famílias/pessoas, em especial quando se trata de propor obras de sentido coletivo nas localidades.
Adversários políticos
Ciúmes
Apesar da possibilidade de negociações, com maturação da tensão ou distenção, depois de estabelecida a interpretação pública de ofensa ou agressão às mulheres da família, e feita a atribuição de culpa, o conflito se impõe com maior rapidez e pouco espaço para negociação.
Membros de mesma família-nome ou entre parentes

Pessoas/famílias de distintas localidades em eventos ambíguos[7]
Dívidas
O tempo para negociações parece amplo, mas com o anúncio público, o conflito leva a um comentário ou cobrança pública da dívida.
Membros de família-nome ou entre parentes
Brincadeiras[8]
São palavras ou gestos interpretados como provocações à pessoa/família ou a algo identificado, visto ou sentido como agressões diretas. Tudo é interpretação, em um “teste” contínuo do estado de relações mútuas, mostrando que a disposição para paz nas relações mútuas é tênue. Os trocadilhos e palavras com duplo sentido, insinuações e piadas podem ser interpretados como agressão real: tudo depende de como cada parte avalia o estado das relações mútuas.
Vizinhos

Membros de mesma família-nome ou entre parentes

Pessoas/famílias de distintas localidades em eventos
ambíguos
Ofensas
Podem ser de dois tipos. De um lado, a falta de consideração, quando alguém deixa de cumprir expectativas ou comete uma desatenção, marcando falta de intimidade e confiança; se não origina imediatamente um conflito agudo, marca um tensionamento. De outro, a traição, quando alguém de quem se espera alinhamento não se alinha em momento crucial para a apresentação pública da pessoa/família que espera esse alinhamento, o que equivale a se alinhar ao adversário.
Membros de mesma família-nome ou entre parentes

Pessoas/famílias de distintas localidades em eventos
ambíguos

Vizinhos (falta de consideração).
Relações de trabalho
Constituem um terreno fértil de tensionamento. Em muitos casos são variantes das motivações da série divisas e/ou ofensas, acrescidas de uma dimensão própria, que são as contendas em torno do tempo para realização do trabalho.
Patrões e empregados

Meeiros e proprietários
Braveza
(do agressor)
Trata-se de um gosto pela violência, agressão ou morte (fama) ou a “tentação do capeta” (sinais públicos) no plano mais interno do agressor.
Valentões[9]



2.2. As práticas narrativas

Os conflitos constituem formas de abertura, modalidades de violação, atribuição de responsabilidades, formas de mobilização e marcos de rearranjo de relações (mais do que desfechos). Neste sentido, Comerford (2003) se volta para as práticas narrativas que os atores isolam — em maior ou menor grau — como casos ou cenas, apresentando os elementos e seqüências básicas dos conflitos.
As aberturas das seqüências de conflitos envolvem uma publicização da interpretação, por parte de um/ambos antagonistas, de que houve/está havendo provocação, desrespeito ou falta de respeito, sendo que o lado que provoca/desrespeita é sempre “o outro”. A publicização tende a se dar em um cenário aberto, público, sendo que o acesso a esse cenário delimita o segmento do público ao qual se dirige o anúncio.
Assim, existe a possibilidade de mobilizar e envolver aliados de modo particularizado, contatando possíveis mediadores, com a mobilização de todo um círculo social para evitar e incentivar o passo seguinte e apresentar ou justificar caminhos alternativos de entendimento ou ruptura sem violação das fronteiras sociais, pessoais e físicas da outra parte. Comerford (2003) percebe uma diferença de amplitude de forma que cada família nuclear, segmento de família-nome ou pessoa possui um “fundo” diferenciado de conflitos passados ou em andamento, conferindo flexibilidade e dispersão ao conjunto que se mobiliza em cada conflito.
Neste sentido, os processos de familiarização articulam a família como uma entidade socialmente reconhecida, um foco de estruturação discursiva e um núcleo de subjetivação, através de alinhamentos públicos diante de outras famílias nas relações locais (disputas por reputação) ou no contato com o “externo”, “não-local” (disputas comerciais, políticas e jurídicas).
O ápice do conflito envolve a violação intencional e pública de uma fronteira socialmente reconhecida que delimita algo identificado com a outra parte. O grau de violação, o modo e momento de violar, bem como a atitude ao enfrentar a violação, podem revelar o caráter das partes em enfrentamento, sendo que o autor trabalha com os seguintes pares para caracterizar as partes: corajosas/covardes, sorte/azar, resistência/fraqueza, têm/causam medo, se mobilizam auxílio, se sua morte/ferimento causa espanto/sofrimento (e em quem), bem como se mobilizam apoio externo.
Depois de realizada a violação, em especial a que envolve morte, há um “cataclisma” nas relações locais, com o surgimento de um fluxo incessante de conversas, pois os “conflitos são bons para pensar e produzem argumentações quase obsessivas” (Comerford, 2003, p. 80).
Além da reputação dos antagonistas diretamente envolvidos, o que entra em jogo é a reputação de todos os que com eles se identificam, mesmo que apenas por defender a posição de um ou de outro e narrar o evento de um modo ou de outro. Há muita movimentação e mudanças: reputações são afetadas; surgem rupturas que originam novos padrões de evitação; famílias se dividem; parentelas inteiras se mudam de localidade/município; perspectivas de vida são esvaziadas; além da criação, reforço ou destruição de famas de pessoas ou lugares. Tudo isso envolve uma modificação da economia do respeito no contexto pesquisado.
            Desta forma, após o desfecho da violação, as narrativas ordenam e delimitam os efeitos do conflito direto, dando continuidade a ele ao consolidar e preservar o momento da violação, de forma a colocá-la como pressuposto das relações que se cristalizam. O autor destaca a existência de um fundo de narrativas desses “casos”, bem como narradores reconhecidos pelo público como bons conhecedores/narradores, ou seja, pessoas aptas para contar casos/cenas.
A retórica do conflito envolve os moradores das localidades observadas e cria uma forma específica de tensionamento das relações cotidianas, que compreende uma consciência sempre renovada da possibilidade concreta de conflitos agudos. As narrativas trazem para o primeiro plano uma dimensão trágica das relações dentro das famílias e entre elas, pois enquadram agressões e mortes no plano das relações intra/interfamiliares. Trata-se de um contexto em que a família é tema fundamental e o parentesco é o princípio organizador básico do mapa social, onde agressor e agredido são sempre parentes de alguém, ou seja, são localizados socialmente.
Comerford (2003) indica uma seqüência da estrutura dessas narrativas[10], que compreende: (1) o cenário; (2) a abertura do caso, descrevendo o anúncio público da provocação e a necessidade de se impor o respeito; (3) a discussão das motivações, com uma descrição da cena principal da violação, bem como da discussão e comentários sobre as formas de violação e os envolvimentos diretos/indiretos de pessoas e círculos sociais; (4) as sub-cenas dramáticas/ tragicômicas; (5) o encerramento; e a (6) localização atual ou no momento da morte, dos envolvidos.
O centro das narrativas sobre conflitos é o ato de violação e a reação a ele, mas as avaliações e julgamentos da violação corporal também assumem centralidade. Com isso, o autor identifica um paradigma do duelo como imagem básica dessas avaliações, com uma variante coletiva que é a de um enfrentamento coletivo. O que se afasta desse paradigma pode produzir uma onda obsessiva de comentários visando explicar e descobrir o significado da ação que foi empreendida.


3.  A sociabilidade agonística nos/dos processos de familiarização e desfamiliarização

Comerford (2003) percebe que a família é vista idealmente como uma esfera de reserva do respeito, de ausência de provocações, o espaço por excelência da intimidade e a unidade básica da solidariedade, da confiança, da ajuda mútua. A relação entre pais e filhos é o modelo por excelência das relações de autoridade, em que obedecer não é humilhante. A relação entre cônjuges é semelhante, porém de forma mais sutil. Já a relação entre irmãos é o modelo de uma complicada combinação de intimidade, relativa igualdade e tenso respeito mútuo.
Estes princípios de relacionamento são modulados circunstancialmente. Neste sentido, mesmo com uma supressão dos jogos de desafios/respostas — tanto pela suposta impossibilidade interiorizada de interpretar atos/palavras como provocações, quanto pela repressão ativa ou interdição interiorizada de atos/palavras que possam vir a ser interpretados como provocação — as provocações acabam se insinuando no cotidiano familiar. Elas se tornam explosivas pela própria situação de intimidade permanente, que fecha os caminhos da evitação, deixando abertos apenas os da paciência ou — contra todas as representações da união da família — da briga e da desunião.
O autor entende a garantia de união da família como um garantir cotidiano da disciplina, que representa a hierarquia, o que fica evidente no respeito hierárquico, expresso pelos pedidos de permissão e pela obediência sem hesitação às ordens, que tendem a ser automáticos. Deste modo, se ocorrem falhas nesta dinâmica, seguem-se advertências, que podem ser sintetizadas na assertiva “Não tem querer!”, expressão da submissão do indivíduo ao todo. Assim, o único “querer”, a única vontade que conta, é a do todo, encarnado sobretudo na figura do pai.
Essa ordem interna ideal de relações deve produzir união e disciplina para que a família possa se apresentar publicamente de modo eficaz. Ao produzir uma imagem pública, a família produz uma imagem de si mesma e um compromisso com a reputação associada a essa imagem. Quanto maior a importância dada pelos chefes de família à imagem pública que ele encarna e “quanto maior a fragilidade dessa imagem, possivelmente tanto maior será a pressão de disciplinamento nas relações ‘internas’ entre aqueles que devem atuar em conjunto para garantir o prestígio da família” (Comerford, 2003, p. 117).
Neste sentido, a vida em família envolve uma constante representação de noções de união, solidariedade, autoridade, ordem, hierarquia e igualitarismo. A densidade e diversidade de relações nesse micro-universo, seu caráter naturalizado e consagrado, a importância da experiência desse modelo e de suas modulações como dimensão de processos de subjetivação dão margem para sua reapropriação em esferas/circunstâncias as mais variadas.
Assim, a confiança que se deve aos familiares parece ser fruto de uma experiência de disciplinarização interna da família e de sua apresentação pública coordenada — para dentro e para fora. Trata-se da vivência de um modelo publicamente reconhecido e valorizado, cuja crise pública — a desunião da família — é vista e vivida como uma situação que é profundamente dramática e abominável.
Um caso interessante aparece compreende os usos das casas como espaços para receber pessoas, tais como vizinhos, parentes e outras pessoas de fora. “Receber bem” é uma arte, assim como visitar[11]. As ações de anfitrião e visitante tendem a seguir um modelo padrão, onde não há improviso: parte da casa é dedicada à recepção de visitantes (frente e sala) e dificilmente a dona de casa está desprevenida, especialmente no que diz respeito à ter comida pronta ou a ser preparada. A etiqueta do “receber bem” envolve uma série de ações e opções dos que recebem, pressupondo um trabalho prévio de disciplinarização dos membros da família.
Desta forma, as visitas estabelecem, reforçam e representam laços de confiança. Ter a casa cheia de amigos e parentes é valorizado e prazeroso, afirmando competitivamente a quantidade e qualidade dos laços nucleados pela família daquela casa e a liberdade de cultivar esses laços. No entanto, em função do controle público, não é qualquer um que pode ou deve ser bem recebido em casa. Neste sentido, deixar subitamente de visitar ou passar a visitar e freqüentar é um sinal dos rearranjos possíveis, em termos de familiarização e desfamiliarização, que todos os envolvidos em um círculo social se esforçarão por interpretar.
Neste contexto, ajuda e caridade são termos que caracterizam e pensam um amplo campo de práticas em uma retórica centrada na afirmação do valor social dos que exercem estas práticas e de suas famílias e/ou comunidades. De outro lado, sofrimento, necessidade e dificuldade apontam para momentos de aflição, mas fazem parte de uma retórica agonística de afirmação do valor e da dignidade da pessoa/família. Desta maneira, “ajudar” e “fazer caridade” são fontes legítimas de prestígio social e dão prazer, pois configuram sinais públicos de reconhecimento. Da mesma forma, o prazer de receber ajuda decorre de ver nos atos dos outros o reconhecimento público de que são reputadas como pessoas/famílias dignas, com um reconhecimento público do seu sofrimento, de sua luta com dificuldades.
Neste campo ambíguo, “receber ajuda” também pode ser negativamente caracterizado em função de imprevidência, preguiça ou do caráter pouco trabalhador, comprometendo aquele que ajuda, pois ajudar quem não é digno de receber ajuda pode ser foco de perda de reputação. Portanto, uma situação socialmente valorizada é “viver com fartura para poder ajudar os que sofrem de aflições e necessitam de lugar, dinheiro e cura” (Comerford, 2003, p. 123).
Desta forma, as pessoas bem reputadas, ou seja, que gerenciam bem a economia do respeito, não encontram dificuldades de obter ajuda. A gratidão e reconhecimento diante dessa ajuda são inequívocos, expressos em signos de consideração, como o “receber bem” a todos os que ajudam. As narrativas de situações de ajuda e gratidão afirmam publicamente a generosidade dos que ajudam e o merecimento dos que recebem ajuda e sabem agradecer, modulando uma hierarquização maior ou menor, dependendo da narrativa que se imponha socialmente.
Trata-se de uma espécie de ação solidária, na qual os que ajudam e os que são ajudados colaboram ativamente na construção de uma definição positiva de toda a transação. Esse processo resulta em um ganho de reputação, que só é possível se a seguinte seqüência é enquadrada com felicidade: um generoso ajuda um merecedor digno, em situação de dificuldade e sofrimento, e este demonstra agradecimento.
A expressão pública do sofrimento, da generosidade, da caridade e do agradecimento produz uma espetacularização das qualidades morais das partes envolvidas diante de um público que participa, colocando em jogo modalidades de hierarquização e arranjos de posições sociais. Esse espetáculo terá sempre uma dimensão agonística, onde cada ator procura se mostrar mais digno: mais sofredor, generoso, caridoso ou agradecido, ou mais sincero na sua generosidade e verdadeiro no seu sofrimento. Essas seqüências produzem um vocabulário expressivo que enquadra os conflitos, sendo que o não reconhecimento do sofrimento, bem como a falta de ajuda, de caridade e de agradecimento são focos importantes de desentendimentos e contendas.
Por fim, cabe destacar a barganha, entendida como a troca de algum objeto por outros, complementada ou não por dinheiro, após negociações mais ou menos prolongadas. Neste jogo, o papel de “bobo” é assumido por aqueles que se deixam enganar, não percebem oportunidades ou não sabem aproveitá-las O termo bobo é neutro e pode ser usado em circunstâncias de relaxamento, espontaneidade, intimidade e familiarização. Entretanto, também pode ter um uso menos suave, no sentido de se deixar enganar, ser excessivamente paciente, deixar de algum modo outras pessoas prejudicarem sua pessoa/família. Comerford (2003) chama atenção para formas de ridicularização do “bobo”, que podem tornar muito difícil e pesada a convivência, configurando modos de destruir reputações, se não forem devidamente respondidos, sendo preciso certa dose de desconfiança.
Assim, as barganhas são oportunidades de medir-se mutuamente, de enredar outras pessoas/famílias em um complicado jogo de aferição. Se, por um lado, apresentam uma dimensão econômica, não se dissociam da política e poética de reputações e do respeito, compreendendo toda uma etiqueta, uma forma “ritualizada” de empreender a barganha, sendo que o seu início é assinalado por marcadores, que se negam enquanto tais: uma observação jogada de certo jeito, um olhar, uma conversa  “neutra” em determinada circunstância.
            Nas barganhas, uma mentira pode ser caracterizada como ambição, sendo algo socialmente desvalorizado, pois é considerada uma falta de senso que implica a inconfiabilidade dos ambiciosos. Assim, as práticas e narrativas de barganha abrem mais um campo para distinções sutis, modulações do estado de relações entre famílias e mostras públicas de capacidade de prover sua própria família.
O termo “velhaco” (esperto) se opõe ao “bobo”, definindo aqueles que sabem defender os interesses e as fronteiras sociais de sua pessoa/família com habilidade e senso de oportunidade e de limites. Com isso, quem não tem senso de limites acaba rompido e desfamiliarizado. Desta forma, a ambição aparece como foco de conflitos e de destruição de relações ou de possibilidades de relação, um descontrole da ética da convivência cotidiana, impossibilitando a confiança e familiarização, e que pode destruir reputações. A mentira e a ambição configuram, portanto, marcos de desfamiliarização.

3.1. As formas de sociabilidade agonística

Comerford (2003) identifica um caráter marcadamente agonístico na sociabilidade cotidiana das localidades rurais observadas. A natureza agonística das relações se articula, de maneiras distintas e em diferentes níveis e graus nas conversações, brincadeiras, saudações cotidianas, relações de vizinhança; nos bailes, forrós e julgamentos de crime de morte; bem como na política e na comunidade religiosa; ou seja, em situações nas quais está em jogo a possibilidade de provocar e ser provocado, em tom sério ou lúdico.
No contexto pesquisado, a provocação tende a ser uma referência àqueles atos vistos negativamente, que faltam com o respeito: desafiam, insultam e ofendem, incitando uma resposta séria em defesa da respeitabilidade da pessoa/família. Os atos provocativos se distinguem da brincadeira, que pode ser vista como uma provocação não-séria, uma falsa falta de respeito, que pede uma resposta igualmente não-séria.
            O autor assinala que o núcleo da sociabilidade agonística compreende a possibilidade de certas ações serem vistas como um chamado para o enfrentamento (sério ou lúdico) diante de um público, entendido como representação das relações entre as pessoas envolvidas e uma forma de agir sobre essa relação. Deste modo, a provocação cria uma possibilidade de medição mútua, bem como os elementos que a tornam aceita e estabelecida, e seus parâmetros. Neste sentido, existe uma dupla operação de interpretação na provocação: de um lado, daquele que provoca e brinca, agindo de maneira que “o outro” interpreta como provocação, mesmo que não seja essa a intenção; de outro, daquele que é ou se sente provocado[12].
A provocação pode ser mais ou menos aberta, mas também implícita e sutil, pois depende do contexto e da interpretação das ações alheias. Logo, estão em jogo as interpretações dadas pela dupla provocador-provocado e aquelas produzidas pelo público. Tanto o provocador, quanto o provocado precisam explicitar suas ações para o(s) público(s), ou seja, convencê-los e conduzir a percepção da situação, levando em conta as várias interpretações possíveis.
Esse fluxo de provocações gera inúmeras narrativas a ponto de um segmento de ações agonísticas poder ser reapresentado em outros contextos através de narrativas que podem estar inseridas em outros contextos provocativos. O desafio de uma provocação é um mecanismo complexo, envolvendo um fluxo de ações e interpretações que, observado por um público, se insere no fluxo de narrativas da comunidade e está sujeito, portanto, a outras interpretações. Deste modo, na seqüência de narrativas, vai se formando a fama de cada família e de cada lugar. Neste sentido, não há família sem fama — substrato necessário para a afirmação pública de um nome, sendo tão constitutivo da família quanto as relações de sangue.
Se, no contexto em questão, boa parte das interações são perpassadas por uma atitude de consideração mútua, de atenção e de interesse, de civilidade um pouco formal, Comerford (2003) chama atenção para o fato de que essa relativa “formalidade” pode ser o reverso da moeda de uma possibilidade permanente de iniciar uma seqüência de provocações e respostas. Apesar do caráter extraordinário das situações de conflito aberto, a dimensão agonística dá o tom às formas de sociabilidade, sendo que a tensão que favorece o ethos desafiante é um dado da vida social das localidades rurais pesquisadas.
Desta maneira, uma conversa formal e respeitosa pode marcar a distância, mas também um sinal de cuidado, de possibilidade de provocação, mesmo que esta não se concretize. Há uma gradação sutil entre diferentes climas em interações mais ou menos coletivas, que se expressa nos seguintes termos nativos: “conversa sem graça” (tensa), “ambiente gostoso” (sem tensão), “clima de brincadeira” (excepcional amplitude para provocação lúdica).
Cabe destacar que o termo respeito sugere uma dimensão de visibilidade, reciprocidade e espetacularidade (ou performatividade) que implica a ausência de provocação séria, obtida pelo esforço mútuo em contornar formalmente  qualquer insinuação de provocação. Trata-se de um termo negativo, de evitação, e positivo, de afirmação de distinções, de fronteiras em uma dada ordem. Assim, “ser respeitado” é não ser provocado seriamente e ser provocado ludicamente apenas em circunstâncias em que a falta não-séria de respeito seja interpretada como respeito real.
As linhas do respeito, portanto, são de evitação, que pode ser hostil/temerosa ou pacífica/amigável. A respeitabilidade, então, é o grau de imunidade a desafios, seja por neutralização da possibilidade de provocações, seja por uma posição consolidada ao longo de desafios bem lançados e/ou bem respondidos.
Neste sentido, a possibilidade de bem realizar provocações e de respondê-las adequadamente, bem como a proteção ou imunidade às provocações dos outros não estão igualmente distribuídas. Essa possibilidade depende das condições de respeitabilidade, que são desiguais na medida em que dependem da capacidade de representar toda a seqüência a posteriori de uma maneira aceitável e convincente para o público.
Através dos usos de jogos com provocação, brincadeira, paciência, consideração, respeito, falta de respeito e toda uma gama de falsificações (falso respeito, falsa falta de respeito), as pessoas/famílias vão gerando e gerindo suas relações, criando um saber-viver e transgredindo-o ao cultivar o autocontrole e estabelecer modalidades de “descontrole controlado”. Isso faz com que as seqüências ordinárias do dia-a-dia, mas também aquelas extraordinárias (das celebrações, festas, jogos), bem como as representações de ambas através de narrativas sejam perpassadas por categorias práticas de construção e apresentação de relações que mostram como essas práticas partem de e engendram desiguais condições de respeitabilidade.
Assim, apresento abaixo um quadro que procura sintetizar onze diferentes formas de sociabilidade agonísticas mapeadas por Comerford (2003), em seus aspectos mais relevantes.

Quadro 2: Formas de sociabilidade agonística
Formas
Características
Conversando
Remete às conversas do tipo “para ganhar”, em que uma pessoa quer “mostrar que sabe mais”, evidenciando uma natureza competitiva. A dinâmica dos turnos de fala e a atenção dada a cada um que fala configuram índices de maior ou menor consideração, sendo que a tentativa de centralizar a conversa pode ser vista como desafio ou ofensa.
Parece haver relação entre conversação e confusão, especialmente em contextos como bailes, forrós e futebol, quando as conversas reúnem vários homens.
Brincando
Os envolvidos costumam ser homens e os temas mais usados como mote para provocação podem ser a sexualidade, a capacidade técnica/intelectual, os atributos físicos, um acontecimento envolvendo um dos participantes e a posição política. É comum que uma ou duas pessoas se tornem o foco das provocações.
Há inúmeras possibilidades de combinações e distinções, adequando o tom da brincadeira de acordo com os participantes, a situação e o local. Trata-se de uma série de jogadas que visam lançar o foco das provocações sobre a(s) pessoa(s) até o limite, com essa(s) pessoa(s) podendo tentar mudar o foco.
Verifica-se um “igualitarismo”, já que todos podem ser provocados e “agredidos”. Frequentemente há pessoas que, apesar de presentes, não participam da brincadeira, mas, uma vez demarcado o início de uma brincadeira, a participação é “obrigatória”, sob pena de se tornar o foco das provocações.
Um senso dos limites define a brincadeira e um “saber-brincar”: saber o momento, o lugar, com quem, o tom, bem como reconhecer quando a brincadeira está “passando dos limites”. O domínio desse saber é fundamental para a “navegação social” cotidiana bem-sucedida. Os marcadores lingüísticos e expressivos são: a risada, certa forma de falar, a entonação, os locais e os momentos inadequados (como os momentos “solenes”, na Igreja, ou em conversas “sérias”).
O “lugar social” da brincadeira é o grupo de amigos, com os quais se tem intimidade. A brincadeira acontece quando há amigos reunidos, é uma forma de sociabilidade cotidiana, prazeirosa, não-séria, supostamente igualitária, que guarda uma relação especial com a amizade. Logo, companheirismo, união, amizade e brincadeira andam juntos.
Farreando
A diversão dos jovens envolve uma agregação periódica e deslocamentos coletivos para lugares e eventos de reunião da própria turma ou de várias turmas, em várias localidades. O clima de permanente gozação e brincadeira configura uma modalidade tensa de envolvimento, que não é totalmente controlável e pode ter conseqüências dramáticas. Em função de tensões mais permanentes no plano da localidade e de tensões geradas pela dinâmica lúdico-provocativa da própria turma, podem surgir conflitos.
A dinâmica da provocação sofre uma refração quando a turma está em outra localidade, o que é uma situação tensa: quase impensável estar em outra localidade sem turma, que evita brincar com quem eles não têm intimidade.
Bailes e festas colocam a intimidade com as moças no centro da cena: elas são foco de atenção e tensão. O clima de desafio da farra coloca em jogo o desrespeito aos limites dos outros e a reafirmação da defesa dos limites da própria turma diante dos desafios alheios.
Indo à escola
Entre as crianças estão em jogo relações entre famílias. As crianças podem lançar mão, em suas contendas, do “fundo de reputações” das respectivas famílias a partir do qual se faz a política de reputações. O jogo de brincadeiras que se tornam conflitos na escola (lugar de sociabilidade agonística) gera conseqüências nas relações entre as famílias. Assim, adquirem caráter coletivo: começam por brincadeiras que acabam levando à necessidade de explicações entre as famílias quando ultrapassavam os limites do que pode ser interpretado como tal.
Finais de semana: jogando futebol
O futebol possui um “clima gostoso”, mas ambíguo, tornando-se cenário comum de brigas ou momentos que causam preocupação pela possibilidade de acontecerem brigas, mas são valorizados como momentos de confraternização. O momento que antecede os jogos é atravessado por um clima de tensão e excitação. Ao final do jogo, se tudo correr bem, o clima é de confraternização.
Os conflitos nesses eventos podem assumir um caráter coletivo, sendo que as brigas de futebol nem sempre levam a rupturas permanentes. Os jogos de futebol criam um contexto em que certo “descontrole” em função do “calor da hora” parece ser aceito como atenuante de ofensas e agressões.
Finais de semana: dançando
Há uma associação entre festa e briga, bem como entre festa e desrespeito, criando-se uma expectativa tensa de conflito pelo caráter de desafio explícito presente nesses eventos, que envolvem dança e consumo de álcool, constituindo um clima ambíguo de confraternização e tensão.
Do ponto de vista dos rapazes, o baile pode ser visto como uma espécie de competição pelo desfrute da intimidade com as moças, que também tomam iniciativas e apóiam os rapazes ou os provocam, aceitando ou recusando suas investidas, bem como apoiando os rapazes de sua localidade em caso de briga.
Os confrontos, ainda que inicialmente “individuais”, muitas vezes se relacionam com o consumo de bebidas ou propostas dos homens em relação às moças. Assim, quase que imediatamente depois de instaurados, se tornam conflitos entre turmas, que podem gerar tensões mais ou menos duradouras.
Celebrando e rezando
A sociabilidade agonística está presente na estruturação interna da festa: nos desafios de grupos musicais, na importância do papel de festeiro, na competição por prestígio na comunidade, nos leilões e outros jogos competitivos de festividades religiosas, centradas na representação de ordem e do respeito, cujo momento de clímax são missas e procissões.
Podem surgir brigas, ou um clima de apreensão, no entorno festivo da missa, que está sujeito às mesmas regras, e é um espaço por excelência, das ações públicas, necessárias para dar partida a um conflito.
Fazendo Política
A época da política compreende um acirramento de conflitos, provocações, desafios, brincadeiras e observação mútua. As sedes municipais tornam-se palcos de eventos públicos com uma freqüência bem maior, divididos de maneira bem mais explícita e generalizada.
A expressão “animação” aponta para períodos de grande exibição pública das relações e situações que favorecem a apresentação pública de desafios, bem como a possibilidade de desordem, baderna, confusão, ou seja, de reordenamento das linhas de pertencimento e aliança.
Bebendo e jogando
Os homens adultos se encontram nos bares e vendas para conversar, beber, comer e jogar, especialmente no período noturno e finais de semana. Eles não bebem sozinhos, mas conversam (sobre diversos assuntos: futebol, política, agricultura, trabalho, negócios, crimes e brigas, namoros) e pagam bebidas uns para os outros, além de jogar sinuca.
Os padrões agonísticos de sociabilidade nesses espaços masculinos e profanos configuram uma generosidade competitiva. O exagero nos gastos com generosidade é uma questão imposta por padrões de sociabilidade, mas representam um investimento na própria reputação de generosidade e na abertura e consolidação de laços de sociabilidade através desses encontros.
Convivendo com vizinhos
Está em jogo alcançar um equilíbrio para cada par de vizinhos, definidos por uma multiplicidade de relações e uma história de convivência entre tolerância/paciência e não tolerar/perder a paciência. A qualidade agonística compreende um posicionamento e a expressão social em um processo que envolve todo um círculo social mais amplo. Qualquer evento visível e perceptível para as pessoas do lugar, uma vez percebidos e reconhecidos publicamente por um dado círculo social como eventos significativos, praticamente impõem que se explicite uma atitude pública.
A valorização da solidariedade entre vizinhos anda junto com o reconhecimento de uma permanente tensão, apontando para a valorização da paciência e tolerância, sustentadas por uma ética da convivência.
A evitação, quando ocorre, implica deixar de freqüentar as casas, fechando uma série de possibilidades expressivas, todo um canal de circulação de ajudas, favores, recados, alimentos e atenções cotidianas, bem como formas de entendimento, que se fecham, abrindo um processo de desfamiliarização.


4. Considerações finais: sociabilidade agonística como dinâmica de conflitos e pacificações

Ao observar as seqüências de ações, Comerford (2003) percebeu um cotidiano perpassado por uma sociabilidade agonística, compreendendo uma lógica de desafios e respostas internalizadas. Essa sociabilidade não se organiza de forma aleatória, em uma conflitualidade generalizada, mas em ciclos de reunião e separação, intimidade e afastamento, formalidade e intimidade, assim como de formas mais ou menos ritualizadas de enfrentamento e entendimento. Desta forma, os momentos de enfrentamento “quente” permitem rearranjos, ao apresentar o “calor da hora” como um atenuante que eventualmente permite retomar as relações sem rupturas totais.
No contexto de “vida na roça”, há uma dinâmica agonística com uma dimensão pública em seu centro, mesmo que não seja de natureza “institucional”. Neste sentido, os encontros fora da família garantem um tempo de mais animação e movimento, de intensa espetacularização e performatização das relações e de exploração pública de suas virtualidades (no sentido de virtude).
As reuniões públicas são centradas em formas de sociabilidade agonística: brincadeiras nas turmas, conversas competitivas entre os homens, generosidade competitiva nos bares, jogos de futebol e sinuca, disputas relacionadas com o desempenho junto às moças nos bailes, competições de habilidade em rodeios e de capacidade financeira e generosidade em torneios, jogos e leilões nas festas religiosas. A exceção encontra-se nas celebrações religiosas em si, marcadas pela ordem, hierarquia, respeito e ausência de disputas na medida em que todos são inferiores perante Deus e seu representante no mundo profano — ali não há o que se disputar.
No contexto pesquisado, as reuniões públicas constituem modalidades de exercício de controle/ordenamento dos antagonismos, seja ao estabelecer momentos, locais e formas específicas de construção pública dos antagonismos, combinando a intimidade concentrada com o respeito às regras dos jogos e à etiqueta dos encontros; seja ao estabelecer o contraponto com todos os antagonismos através das regras hierárquicas da celebração religiosa. Assim, essa sociedade “domestica” os antagonismos e valoriza o autocontrole.
Essas reuniões são marcadas pela ambigüidade, sendo que a tensão crescente, a expectativa e o temor dos conflitos transformam-se em relaxamento e regozijo quando “tudo corre bem”. A existência da amizade e do respeito, que estão sendo postos à prova por modalidades de intimidade forçada e tensão multiplicada e controlada apontam uma “capacidade de medir-se sem matar-se, de chamar à frente sem chamar à guerra” (Comerford, 2003, p. 112).
No entanto, o autor assinala que esta prova pode provar o oposto e terminar justamente em guerra, pois os encontros coletivos e eventos festivos que reúnem um ou mais círculos sociais, mais ou menos amplos, são momentos de publicização por excelência. A observação do resultado dessas “provas” pode efetivamente provar a existência e o surgimento de linhas de tensão produtoras de um elemento dinâmico nos mapeamentos básicos de navegação social que todos controlam em maior ou menor grau e amplitude.
Essas modalidades de reunião buscam controlar os antagonismos. Assim, estes eventos públicos não-cotidianos com regras de certo modo próprias, que permitem expressar os antagonismos existentes entre pessoas/famílias que estão “presas” ao cotidiano não são passíveis de concentração ou ordenamento do mesmo modo, pois a “intimidade forçada” é permanente, e as tensões podem se acumular.
Neste sentido, a boa gestão das fronteiras consiste em um esforço permanente para evitar casos de maiores proporções, tais como encrencas, confusões e/ou mortes, que constituem possibilidades, expressas em palavras e comportamentos. Este esforço não pode ser descuidado para que seja possível produzir uma “paz camponesa” tensa, por conta desta sociabilidade agonística sustentada por acordos tácitos entre famílias em contínuo processo de familiarização e desfamiliarização.

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:

COMERFORD, John. Como uma família: sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2003.

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 2.morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1997.



[1] Comerford (2003) utiliza o termo “agonístico” para assinalar a centralidade da luta ou combate, que se é inerente à vida, também possui uma dimensão de arte, seja como espetáculo ou dramatização pública, seja como técnica que pode ser julgada e apreciada publicamente pelos que a praticam e conhecem.

[2] Para De Certeau (1987), as operações de bricolagem configuram uma maneira  particular/especial  de  usar os  elementos de um contexto (que emite mensagens) de forma diferente por meio de junções com interpretações particulares (de receptores da mensagem emitida).

[3] Ao efetuar uma junção entre os diferentes elementos imbricados na construção da noção de sociabilidade agonística (Comerford, 2003) e minha interpretação, pretendo fazer destes elementos uma outra coisa, algo novo, ressignificando-os. Talvez, assim, possa configurar um ponto de partida para desenvolver uma perspectiva analítica que seja útil para o trabalho de campo que devo empreender como parte do doutorado no âmbito do CPDA/UFRRJ.
[4] Comerford (2003) ressalta que essa igualdade envolve aqueles que se reconhecem e são reconhecidos como os “da roça”, “roceiros”, “pequenos”. A exceção fica por conta dos que são reconhecidos como “fazendeiros”, que configuram outra categoria e círculo de relações.
[5] Comerford (2003) destaca a existência de uma dimensão jurídica neste tipo, sendo que “transgressões” de limites jurídicos podem ser consideradas “naturais” (entre pessoas familiarizadas) e outras, que não violam códigos jurídicos, podem ser consideradas graves (entre pessoas desfamiliarizadas).

[6] Comerford (2003) chama atenção para o fato de que aqueles que se encontram/convivem mais tem mais oportunidades de criar situações ambíguas em termos da gestão das proximidades e intimidades. Os pares específicos de antagonistas-parentes que aparecem com certa recorrência são: sogros X genros; cunhados X cunhados, consogro X consogro.

[7] Comerford (2003) entende que eventos como festas, rodeios, bailes e jogos de futebol propiciam encontros de caráter ambíguo — ao mesmo tempo tensos e festivos — entre grupos vindos de localidades distintas, mas próximas o suficiente para serem incluídas em um mesmo círculo, referindo-se a um mesmo fundo amplo de reputações.

[8] Comerford (2003) denomina brincadeira o nome dado a um tipo de interação envolvendo duas pessoas ou um grupo mais/menos extenso de pessoas, caracterizada por provocações mútuas aparentemente agressivas, e respostas a essas provocações, a propósito de um mote qualquer.

[9] Comerford (2003) caracteriza este tipo como pessoas/famílias com fama de valente, que se destacam pelo prazer pelo conflito, coragem, temor que impõe se enfrentam entre si, e precisam se mostrar à altura da fama. Essa caracterização depende de como o conflito e as partes que se antagonizam se apresentam e são apresentados, em que circunstâncias, e com que sucesso, o que por si só pode ser objeto de conflito no plano das narrativas.

[10] Comerford (2003) destaca que essas narrativas trazem personagens paradigmáticos relacionados com o modo de gerar/gerir a mútua medição das famílias através da ação/provocação: o “provocador contumaz”; o “perseguidor”; o que em tudo vê uma provocação, o que releva as provocações (valoriza a paciência, mas pode ser interpretado como “medroso” e “sem coragem”); o que acaba provocando seriamente porque brinca quando não devia ou de uma forma inadequada; o que prefere recorrer às autoridades; o que prefere a conversa; aqueles que valorizam a coragem; a ausência de concessões; a não-evitação e as armas; e os que valorizam o diálogo, a concessão e a evitação.

[11] Comerford (2003) assinala uma distinção entre “ida à casa” e “visita”: a freqüência cotidiana de vizinhos, amigos e parentes trata-se de uma simples “ida à casa” de alguém, um “receber” informal. O termo “visita” se aplica à presenças mais excepcionais em função de situações excepcionais, como doenças e nascimentos.
[12] Comerford (2003) destaca que o personagem mais valorizado no conjunto de possibilidades inerentes à dinâmica incessante dos desafios e respostas é o respeitador/respeitado, ou seja, aquele que se abstém da provocação e que, por isso, não é provocado. Uma aproximação do padrão desse personagem só se torna possível em função de uma história, pessoal e familiar, de desafios bem feitos e/ou bem respondidos, para que não seja interpretado como “fraqueza”.