sábado, 14 de novembro de 2009

Sociedade de risco global, modernização reflexiva e individualização

Como recentemente, em decorrência do apagão (ou blecaute, afinal ficou tudo escuro, sem luz elétrica em 18 estados brasileiros...), alguns políticos, como o atual governador de São Paulo e líder disparado nas pesquisas de opinião para a presidência da república nas eleições do ano que vem, José Serra (PSDB-SP), destacaram a necessidade de controle total sobre a natureza, quero dizer que acho isso muito difícil nos dias atuais, para não dizer impossível... Daí a idéia de compartilhar uma reflexão sobre sociedade de risco e Ulrich Beck, que aparece sistematizada em meu projeto de qualificação do mestrado, apresentado em maio deste ano no âmbito do CPDA/UFRuralRJ sob título: "Ambientalização e polítização da vida cotidiana: uma etnografia do engajamento em práticas de consumo de alimentos orgânicos". Use com moderação, de preferência citando... boa leitura! 

A sociedade de risco global, definida por Beck (2002), reflete uma nova conexão entre o problema da natureza, a democratização da democracia e o papel futuro do Estado, na qual a autonomia individual, a insegurança no mercado de trabalho e nas relações de gênero e uma influência arrasadora das mudanças científicas e tecnológicas levam a uma supremacia do risco que provoca a abertura do discurso público e das ciências sociais aos desafios da crise ambiental, que são simultaneamente globais, locais e pessoais[1].

A sociedade de risco global é reflexiva em três sentidos. Primeiro, os perigos globais estabelecem reciprocidades mundiais e, potencialmente, começa a se formar uma esfera pública global. Segundo, a globalização, percebida por uma civilização que coloca a si mesma em perigo, impulsiona o desenvolvimento de instituições internacionais cooperativas. Terceiro, os limites do político esmorecem e o aparecimento de uma subpolítica global e direta conduz a “alianças de crenças mutuamente excludentes” de alcance mundial (BECK, 2002, p. 30).

Para o autor, a modernização reflexiva é uma auto-confrontação pela abstração e pela expectativa de que os indivíduos dominem oportunidades arriscadas em um ambiente de incerteza caracterizado pela crise ambiental e pela impossibilidade de controle em contextos abertos à crítica radical. O vazio das instituições e o renascimento não-institucional da esfera política em luta por uma nova dimensão do campo político compõem a ambivalência de um engajamento múltiplo contraditório. 

Neste sentido, Beck (2002) considera o fato dos indivíduos reproduzirem constantemente o sistema social em suas atividades cotidianas. Desta forma, a realidade pode ser reduzida tanto aos pontos de vista do indivíduo quanto dos sistemas sociais em que estes indivíduos vivem, constituindo uma controvérsia nas ciências sociais sobre qual lado priorizar. O autor entende os sistemas sociais como ficções produzidas pelos indivíduos na medida em que estes contrapõem a auto-referencialidade característica dos sistemas à dependência das realidades e ficções relacionadas com a cultura em que os indivíduos vivem.  

Com isso, tanto a incompletude do conhecimento quanto o fato de que o acúmulo de conhecimento apenas supõe mais incerteza fazem com que a tomada de decisões nas atuais condições de incerteza fabricada[2] evidencie uma inter-relação entre os conflitos e as lógicas de distribuição dos bens e dos males, produzidos pela sociedade do risco, que supera os fundamentos do cálculo de risco[3].

A sociedade de risco global é, portanto, autocrítica e política e necessita reinventar o diálogo transnacional da política, da democracia e da sociologia para discutir as questões emergentes das sociedades contemporâneas. Beck (2002) descreve uma sociedade individualista e moralista, a partir do momento em que a ética da auto-realização e do sucesso individual se tornou a corrente mais poderosa para escolher, decidir e configurar os indivíduos que desejam ser autores de sua vida e criadores de suas identidades.

A globalidade encontra-se presente na imaginação, na ação e na organização políticas de um novo cosmopolitismo entendido como um sentido de coesão social que reconhece a individualização, a diversidade e o ceticismo inscritos nesta cultura. A individualização pode ser definida como sendo “primeiro, a desincorporação e, segundo, a reincorporação dos modos de vida da sociedade industrial por outros modos novos em que os indivíduos devem produzir, representar e acomodar suas próprias biografias” (BECK, 1997, p. 24). Com isso, o autor entende que a individualização se torna a forma social da globalização enquanto a compulsão surge como característica principal deste retorno dos indivíduos à sociedade.

Além disso, Beck (2002) percebe o mundo como um sistema de auto-ameaças ambiental-industriais que transformam a moralidade, a religião, o fundamentalismo, a desesperança, a tragédia, o suicídio e a morte em um drama universal, caracterizando um teatro da vida real, com a presença de ingredientes como a salvação e a ajuda. Em uma sociedade de risco global os desafios produzidos pela civilização não podem ser delimitados socialmente.

O autor entende, ainda, que os problemas ambientais são inerentes à sociedade e não ao meio ambiente ou ao mundo que nos rodeia. Com isso, Beck (2002) procura superar o dualismo entre sociedade e natureza ao enfatizar a incerteza fabricada — por meio de noções como risco, perigo, efeitos colaterais, seguridade, individualização e globalização — como contraponto às idéias de natureza, de ecologia e de meio ambiente.

Neste sentido, a escala e a urgência da crise ambiental variam de acordo com percepções e avaliações intra/interculturais na medida em que os perigos só se convertem em questões políticas se as pessoas passam a ter consciência deles, ou seja, são construções sociais que se definem, se ocultam ou se dramatizam estrategicamente na esfera pública. com ajuda de materiais científicos providos pela definição, ocultamento ou dramatização destes perigos. 

Na teoria de Beck, a vida privada aparece como uma esfera de novos conflitos políticos, uma vez que o microcosmo das condutas pessoais se inter-relaciona com o macrocosmo dos problemas globais. Este autor destaca, ainda, a crise ambiental como um discurso de autoconfrontação que exige a reconsideração das práticas institucionais que o produziram.  

A forma direta com que as pessoas falam da natureza e da destruição da natureza na vida cotidiana, na visão deste autor, esconde uma estratégia paradoxal de construção da desconstrução, na medida em que se destrói reflexiva e poderosamente a impressão de que este discurso foi construído, produzindo-se uma aparência de realidade em si. Desta forma, ao invés de tratar de “problemas do meio ambiente”, Beck (2002) trata de uma profunda crise institucional da primeira fase da modernidade industrial.  

Beck (2002) também considera que os riscos e perigos estão presentes nas práticas de consumo a partir do momento em que a cultura e a natureza se misturam em uma natureza contaminada pelas atividades humanas. O conceito de sociedade do risco global, portanto, pode ser entendido pela virtualidade real de um futuro ameaçador que se torna um padrão de influência para a ação presente. Desta forma, o conhecimento e o desconhecimento são materializados em conflitos de reconhecimento em um contexto que reconstitui simultaneamente o global-local, em um mundo híbrido criado pelo homem que abandonou o dualismo natureza-cultura.

Neste contexto de modernização reflexiva, caracterizado por uma retroalimentação entre a globalização e a individualização, as práticas de consumo passam a incorporam os riscos e perigos de uma natureza contaminada pelas ações humanas, abrindo novas possibilidades de ação política e autonomia na esfera individual.

A perspectiva de Beck (2002) torna-se importante para compreender o objeto de pesquisa deste projeto, o que fica evidente com a ênfase que coloca na necessidade de entender a questão ambiental de uma forma multidimensional, ou seja, em suas dimensões global, local e pessoal. Deste modo, o autor enxerga o indivíduo e a vida cotidiana como esferas para a emergência de novos conflitos e ações políticas por meio de uma abordagem que considera a crise ambiental e as incertezas por ela geradas como um caminho para reconsiderar as práticas institucionais que produziram esta crise.

REFERÊNCIA:
CASTAÑEDA, Marcelo. Ambientalização e politização da vida cotidiana: uma etnografia do engajamento em práticas de consumo de alimentos orgânicos. Projeto de mestrado, qualificado em maio de 2009, CPDA/UFRuralRJ.
BECK, U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, A. et ali. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997, pp. 11-71.
____. La sociedad del risco global. Madrid: Sieglo XXI de Espana Editores S.A., 2002. 
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. 

[1] A globalidade do risco não significa uma igualdade global do risco. Beck (2002, p. 8) destaca, como uma “primeira lei dos riscos do meio ambiente”, que “a contaminação segue o mais pobre”. A intensificação da pobreza, ao longo da década de 1990, com o aumento da distância entre ricos e pobres e da quantidade de pessoas pobres, é associada pelo autor à imposição das políticas de livre mercado aos países endividados, obrigando-os a desenvolver indústrias que abastecem as parcelas abastadas ao invés de proteger, educar e cuidar dos mais pobres.
[2] Em uma perspectiva de reflexão institucional (GIDDENS, 1991), as incertezas fabricadas surgem como uma mistura de risco, conhecimento e desconhecimento e reflexividade, configurando um novo tipo de risco. Ao tratar de riscos não-seguráveis, Beck (2002) destaca que a sociedade moderna aborda as incertezas fabricadas auto-geradas por meio de uma distinção entre (1) riscos que dependem de decisões e podem ser controlados e (2) perigos que escaparam ou neutralizaram os requisitos de controle da sociedade industrial, tanto (a) falhas das normas e instituições da sociedade industrial, como, por exemplo, quando os seguros são desprezados por setores que não tem acesso a ele; quanto (b) o modelo de decisões da sociedade industrial e a globalidade de suas conseqüências agregadas, ao identificar normas e irresponsabilidade organizada, em um movimento circular entre a normalização simbólica e as ameaças permanentes e de destruição material.
[3] Beck (2002) destaca, como exemplo, a impossibilidade de superação financeira dos danos com milhões de desempregados e pobres ou de um seguro contra a recessão global ou a catástrofe ecológica. Por outro lado, as conseqüências sociais dos riscos financeiros globais compreendem mudanças culturais e políticas que solapam as burocracias, desafiam o domínio da economia clássica e do neoliberalismo e proporcionam um redimensionamento das fronteiras e frentes de batalha da política contemporânea.

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