terça-feira, 10 de novembro de 2009

"Política econômica, neoliberalismo e agricultura", Nélson Delgado, fichamento

1. Tratar, pela ótica da economia, das questões da intervenção do Estado e dos efeitos do ajuste externo sobre a agricultura. Divide-se em duas partes: (I) as razões expostas tradicionalmente pelos economistas para justificar a ação estatal no meio rural e das diversas formas que a política pública pode assumir em relação à agricultura, com uma breve discussão sobre os esquemas analíticos da teoria neoliberal que procuram justificar a defesa da não intervenção do Estado na economia; (II) as características da crise externa no início dos anos 80 e da política econômica usualmente utilizada para reequilibrar o balanço de pagamentos em conta-corrente nestas situações, com uma análise dos efeitos dessa política sobre a política agrícola e o comportamento da agricultura.

Parte I: Estado, atores sociais e formulação de políticas para a agricultura

2. As razões tradicionais para a intervenção do Estado na agricultura e no meio rural

3. Longa tradição de regular os mercados agrícolas, garantindo preços e rendas para os agricultores, e estimular a produção doméstica. Nos países em desenvolvimento, em decorrência dos projetos de industrialização via substituição de importações, as “funções” da agricultura consistiam em transferir recursos para o financiamento da industrialização (taxas de câmbio valorizadas) e produzir alimentos baratos (controle de preços) com objetivo de viabilizar um processo de industrialização dependente do pagamento de baixos salários para sua força de trabalho. O setor agropecuário tinham particularidades, caracterizadas pelos seguintes fatores:

(I) dependência estrutural da agropecuária em relação à natureza, que torna o tempo de produção superior ao tempo de trabalho, introduzindo descontinuidades e reduzindo a lucratividade da produção.

(II) atomização da produção e descontinuidade do processo produtivo, junto com as dificuldades e custo de estocagem fazem com que a oferta agregada dos produtos agrícolas in natura tenha elasticidade-preço menor do que um, ou seja, inelástica. Assim, a receita bruta dos agricultores tende a aumentar em períodos de má safra e reduzir-se em períodos de grande safra, que constitui uma das razões clássicas de regular os mercados.

(III) à medida que a renda nacional cresce, a demanda agregada por produtos agrícolas também cresce, mas numa proporção menor do que o aumento da renda, ou seja, esta demanda é inelástica, com duas conseqüências imediatas: (a) crescente industrialização da produção agrícola; (b) dilema de longo prazo da política econômica.

(IV) a partir da II Guerra, a pressão a favor da intervenção do Estado se relaciona: (a) à força política dos agricultores nos países desenvolvidos; (b) à importância assumida pela questão da segurança alimentar, especialmente na Europa; (c) às políticas de desenvolvimento econômico nos países de Terceiro Mundo.

4. Com o refortalecimento da ideologia liberal nos anos 1990, as discussões sobre política agrícola passaram a centrar seu interesse nas imperfeições e distorções que a intervenção do Estado provoca nos mercados e na renda agrícolas (as “falhas do Estado”).

5. A crítica neoliberal à intervenção do Estado: as teorias da regulação e da rent-seeking e as “falhas do Estado”.

(I) Numa economia capitalista, dois mecanismos: mercado e Estado => tensão permanente na esfera política, democracia. Questão crucial: intervenção estatal beneficia ou prejudica o bem-estar econômico e social no capitalismo? De um lado, beneficia em função da existência de “falhas” nos mercados que impedem o funcionamento eficiente de um mercado idealizado (regulação promoveria o “interesse público”. De outro lado, nociva porque os mercados competitivos são sempre eficientes, se auto-regulam e auto-reproduzem e, quando falham são capazes de enfrentar suas imperfeições melhor que o Estado.

(II) Década de 1970, EUA, teorias da regulação econômica e da rent-seeking (neoliberalismo), com uma postura central comum de que a intervenção do Estado na economia é um mal, pois o processo democrático é defeituoso e o Estado é uma fonte de ineficiência.

(III) Primeiro aspecto importante das teorias da regulação e da rent-seeking: toda ação governamental tem como resultado uma transferência de renda entre os agentes econômicos (ganhadores e perdedores) => os custos dos perdedores são sempre maiores do que os ganhos dos beneficiários, de tal forma que a sociedade como um todo sai prejudicada. Ponto de partida da teoria da rent-seeking é conceito de renda ou quase-renda, o que a caracteriza não são as rendas “reais”, mas as que se originam em processos que aumentam a produção e criam valor na economia: rendas “falsas”, geradas “artificialmente” através da intervenção governamental. Neste sentido, rent-seeking “é o dispêndio de recursos escassos na captura de uma transferência criada artificialmente”. A teoria da rent-seeking tem como objetivo investigar como as pessoas competem por tais transferências.

(IV) A intervenção governamental sempre visa o interesse próprio dos ofertantes da regulação ou dos seus demandantes ou de ambos. Assim, as teorias da regulação e da rent-seeking deram enorme impulso à análise econômica do comportamento dos grupos de interesse ou à teoria do governo neles baseada pela visão de que a concessão da regulação e a captura das rendas institucionais são resultado de um processo interativo entre agências governamentais, partidos políticos e grupos privados de interesse.

(V) As teorias da rent-seeking e da regulação tendem a fazer comparações entre as escolhas e as tomadas de decisões dos indivíduos no processo político democrático e no mercado. A conclusão revela a inferioridade do processo político em relação ao mercado como lócus de revelação das preferências soberanas dos indivíduos => decisões políticas criam sempre mais distorções e desperdícios do que as tomadas no mercado e o Estado é um mecanismo ineficiente de alocação de recursos e de distribuição de bens e serviços. Desta forma, política, especialmente a democrática, é um empecilho fundamental ao funcionamento do mercado. Surgem duas diferenças importantes entre processos democráticos de decisão política e de mercado: (a) no processo democrático, a simultaneidade de decisões por um grande número de pessoas impõe um ônus, pois votar sobre questões específicas torna-se proibitivamente caro, enquanto no mercado ocorre o oposto, tendo em vista que as decisões são tomadas individualmente na escolha de bens e serviços particulares; (b) o processo democrático de decisões deve envolver “toda” a comunidade, não pode excluir o votante desinteressado e, por isso, não permite participação em proporção ao interesse e ao conhecimento. Para as teorias da regulação e da rent-seeking, os agentes econômicos comportam-se no processo político exatamente da mesma forma que no mercado econômico, concluindo que no capitalismo, o Estado ou o processo político é um mecanismo de alocação de recursos e de distribuição de bens e serviços intrínseca e estruturalmente inferior ao mercado econômico privado.

(VI) O autor admite como contribuição das teorias neoliberais à problemática da intervenção do Estado na economia capitalista o argumento de que a política estatal gera rendas ou quase-rendas institucionais de que os grupos privados buscam apropriar-se através de mecanismos de pressão política que levam a ineficiências alocativas, grandes desperdícios de recursos e a distorções não desprezíveis na distribuição da renda e da riqueza sociais. Neste sentido, não basta considerar apenas as razões que justificam a intervenção do Estado na agricultura, mas estar atento às distorções que a ação estatal pode provocar na alocação de recursos e no desempenho do setor.

6. A respeito das teorias neoliberais, Delgado (2008) destaca:

(I) que nessa visão, a política estatal necessariamente introduz ineficiência, sua hipótese central (insustentável) é que a economia capitalista tende naturalmente a funcionar em algum ponto da fronteira de possibilidades de produção;

(II) mesmo que a política estatal reduza a renda nacional, não é automática a dedução de que venha a ocorrer uma diminuição do bem-estar social, a menos que a utilidade social seja medida em termos de dinheiro;

(III) a conclusão destes teóricos de que a política pública é ineficiente e leva a perdas de renda agregada está mais firmemente ancorada em sua preferência apriorística pelo mercado e em uma parcialidade derivada do método de raciocínio;

(IV) uma característica básica é que o Estado, alvo predileto, não é nem definido, nem descrito e nem analisado com mais profundidade, a política é um problema desagradável (teórico e prático), que tenta ser resolvido pela teoria da escolha racional no âmbito da economia.

7. Desta forma, contrasta-se um mercado perfeito, que se auto-equilibra instantaneamente, com preferências individuais fixas e exógenas, no qual as decisões são tomadas individualmente e sobre assuntos específicos COM um processo político em que as decisões são infrequentes, universais, simultâneas e incluem também a participação dos desinteressados. Com esta argumentação, os neoliberais tentam justificar sua recusa da proposição de que a alocação de recursos também possa ser avaliada por critérios distributivos e sua defesa intransigente e apriorística da tese “de que todas as alocações de recursos resultantes das preferências dos cidadãos e reveladas através do processo democrático são necessariamente menos eficientes que as soluções do mercado”.

8. Formas de intervenção do Estado na agricultura. O autor destaca dois tipos de política econômica:

(I) Macroeconômica: busca afetar os grandes agregados em termos de quantidades e de fluxos de entrada e de saída de divisas estrangeiras e de capital externo em geral, sendo composta pela combinação das políticas fiscal, monetária e cambial, buscando influenciar diretamente o nível e a composição da demanda agregada, a taxa de crescimento da renda nacional e do produto interno bruto, a disponibilidade e o custo do crédito doméstico para consumo e investimento, o saldo do orçamento governamental, a entrada e a saída de recursos externos, a rentabilidade da aplicação dos recursos domésticos para produção de bens comerciáveis e não-comerciáveis, o volume de exportações e de importações e o saldo da balança de pagamentos, a taxa de crescimento do nível geral de preços e o ritmo inflacionário do país. Dado seu caráter abrangente, pode neutralizar ou inviabilizar o funcionamento das políticas voltadas para agricultura, bem como pode conter uma política agrícola implícita, independentemente da existência ou não de uma política explícita em nível nacional.

(II) Política setorial:objetiva influenciar diretamente o comportamento econômico-social de um setor específico da economia nacional; três tipos principais: agrícola, agrária e políticas ou programas diferenciados de desenvolvimento rural, além do destaque dado ao conceito de política agrícola ativa.

Parte II: O ajuste da economia brasileira à crise externa na década de 1980. A política econômica do ajuste externo e suas conseqüências para a agricultura

9. Ajuste da economia brasileira à crise externa na década de 1980:

(I) no caso brasileiro, implementou-se, a partir da década de 1970 e 1980, uma política agrícola ativa e não apenas compensatória, que definiu instrumentos e incentivos específicos com vistas à modernização setorial (financiamento, preços, comercialização, tributários, geração e difusão de tecnologia);

(II) as condições de articulação, financiamento e continuidade desse padrão romperam-se com a crise da dívida externa, a política macroeconômica ficou refém da necessidade de viabilizar internamente os pagamentos relativos ao serviço da dívida externa e de impedir que o agravamento do endividamento público interno e da taxa de crescimento dos preços empurrasse a economia para a hiperinflação  adoção de uma política econômica recessiva.

10. A política macroeconômica do ajuste externo tenta articular três tipos fundamentais de política econômica: (I) políticas de redução da demanda agregada doméstica, cujas principais políticas macroeconômicas são a fiscal e a monetária; (II) políticas de substituição de despesas, que são a comercial e a cambial; (III) políticas financeiras. São políticas complexamente inter-relacionadas.

11. Política macroeconômica e política agrícola: crescimento e modernização do setor agrícola não foram uma mera decorrência do crescimento da demanda privada, doméstica e/ou internacional => década de 1970: desempenho favorável do mercado internacional estimulou produção para exportação X elevação da renda interna não foi acompanhada por um crescimento da produção para abastecimento => década de 1980: desempenho desfavorável do mercado externo X desempenho medíocre do PIB: produção para exportação continuou crescendo graças à política cambial e de subsídios às exportações. O autor destaca que a política agrícola tem conseguido, nas últimas décadas, se adaptar às mudanças macroeconômicas, as quais são comprometeram seu caráter ativo, pelo contrário, favoreceram as exportações agrícolas nos anos 80, através de desvalorizações contínuas da taxa de câmbio, para enfrentar o estrangulamento externo do início da década.

12. Delgado (2008) destaca a segunda metade dos anos 1950 como o período de maior penalização da agricultura brasileira. Nos anos 1960, vários segmentos foram penalizados através dos controles quantitativos das exportações em favor da indústria doméstica e dos controles de preços de alimentos (de acordo com uma política de industrialização baseada em mão-de-obra barata). Nos anos 1970, esta penalização foi compensada pela política de crédito subsidiado, especialmente para setores capitalistas e interesses agrários voltados para exportação. Nos anos 1980, as políticas cambial, de preços mínimos e tecnológica viabilizaram o crescimento agrícola em um ambiente macroeconômico interno e externo bastante desfavorável. No final dos anos 1980, aceleração da inflação + fracasso recorrente de uma seqüência de planos de estabilização intervencionistas => inviabilização da política setorial vigente induz uma enorme instabilidade nas expectativas e aguça o caráter especulativo da formação dos preços das commodities agrícolas, desembocando em uma crise agrícola no início dos anos 1990, que impôs limites ao seguimento da política ativa.

13. A partir da década de 1990: conquista da estabilidade macroeconômica passa a ser pressuposto e restrição à continuidade da política agrícola ativa no país (inviabilidade das políticas de crédito, de preços mínimos e de tecnologia), que deveria se concentrar prioritariamente em questões postas pela necessidade de melhoria na distribuição de renda e da riqueza, pela abertura comercial do país e pela integração econômica com os países do Cone Sul (Mercosul).

REFERÊNCIA:
COSTA, L.F.C; FLEXOR, G; SANTOS, R. (orgs.) Mundo Rural Brasileiro. Ensaios
interdisciplinares Mauad X-EDUR, Rio de Janeiro - Seropédica, 2008.

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