1. Costa (2003) destaca que o conceito de sociedade civil é tão velho quanto a ciência política. O autor busca reconstituir a trajetória teórica da idéia de sociedade civil e refazer o percurso do conceito no contexto brasileiro, sugerindo delimitações para seu emprego no país de forma a configurar um marco de referências para a compreensão do papel da sociedade civil na democratização e construção do espaço público no Brasil.
2. MARCOS HISTÓRICO-CONCEITUAIS:
(I) Aristóteles, “comunidade pública ético-política” de iguais, definição clássica na qual Estado e sociedade aparecem fundidos, perdura até século XVIII;
(II) jusnaturalistas, de Hobbes a Kant, sociedade civil é a sociedade regulada por algum tipo de autoridade reconhecida capaz de assegurar a liberdade, a segurança e a convivência pacífica entre as pessoas, sendo que é na obra de Hegel que assume um estatuto teórico efetivo, como esfera que emerge com o advento da era moderna situada entre as famílias e o Estado, incorporando o sistema de necessidades e o aparato jurídico e a administração pública (devem regular o mercado e assegurar a ordem social) e a corporação (apresenta os indivíduos vinculados uns aos outros). A sociedade civil hegeliana contém uma ambivalência pela promoção simultânea de uma eticidade e de uma antieticidade: por um lado, incorpora o sistema de necessidades dentro do qual os indivíduos perseguem seus próprios interesses, produzindo conseqüências negativas para preservação do espírito público e dos laços de solidariedade; por outro, compreender organizações intermediárias e associações (corporações) que representam o suporte fundamental de uma nova “eticidade”.
(III) Marx se contrapõe ao idealismo por meio do materialismo, buscando explicar os processos sociais a partir de sua gênese material. Com isso, a sociedade civil não aparece associada a qualquer possibilidade de aglutinação de uma nova eticidade, pois na ordem capitalista constitui a fonte e expressão do domínio da burguesia. Para Marx, as instituições intermediárias hegelianas representam outra forma de manifestar o subjugo da classe trabalhadora determinado a partir das relações de produção. Da mesma forma, o Estado é identificado como construção institucional a serviço da classe dominante.
(IV) Gramsci compartilha da crítica marxiana à ordem burguesa, mas amplia dialeticamente algumas teses de Marx, demonstrando como a dominação de determinada classe social é multidimensionalmente fundada. Para Gramsci, a disputa entre as classes pela hegemonia tem lugar predominantemente na órbita da sociedade civil, completando-se no plano da sociedade política (Estado), de onde se depreende o modelo tripartite de sociedade. Desta forma, Gramsci apresenta uma forma de tratamento da ação coletiva que considera as diferentes organizações e formas associativas intermediárias, mas as vislumbra subordinadas à direção do partido operário, que deveria atuar como intelectual coletivo, responsável pela reforma ética pessoal e coletiva. Além disso, Costa (2003) destaca em Gramsci a preocupação com a opinião pública como determinante da produção de hegemonia.
3. O REVIVAL CONTEMPORÂNEO DO CONCEITO DE SOCIEDADE CIVIL: no plano político, o Leste Europeu reflete a resistência à onipresença do Estado socialista real e às restrições às possibilidades de organização soberana da sociedade civil; na América Latina, associada à resistência contra regimes autoritários, torna-se referência aos atores que afirmavam sua independência em relação ao Estado militar; nas sociedades liberal-democratas européias, categoria central no movimento que condena a hipertrofia do Estado socialista real enquanto a “segunda esquerda” alerta para ameaças à sociedade civil nas democracias capitalistas na medida em que a solidariedade social autônoma é destruída pelo impacto da “intervenção administrativa na sociedade por parte do Estado capitalista de bem estar”, entendida como uma tutela política, o que indica que as formas clássicas de exercício da cidadania política (partidos, eleições) não mais atendem plenamente às demandas por participação de amplos segmentos da população.
4. Dubiel (1994) destaca que o projeto de sociedade civil pautado pela crítica ao neoconservadorismo e aos desvios elitistas do Estado socialista real, bem como pelo olhar atento para a emergência de novas linhas de conflito e situações-problema nas sociedades industriais representa um substituto cada vez mais atrativo para a utopia renegada da conquista revolucionária do Estado; nos EUA, os limites da democracia liberal são sublinhados ao mostrar que o sistema político se revela inepto para alimentar a geração de um espírito público, as diversas formas associacionistas ancoradas na sociedade civil são indicadas como alternativa para redirecionar a busca estrita da concretização dos interesses individuais e o refúgio na esfera privada que dela deriva a fim de promover o florescimento de novas estruturas de cooperação que possam substituir as formas tradicionais de solidariedade social.
5. Cohen e Arato (1989) pressupõem algo como o modelo tripartite gramsciano da sociedade civil, acrescentando a reivindicação liberal de proteção dos direitos individuais, a ênfase de Hegel, Tocqueville e dos pluralistas na pluralidade de associações e intermediações societárias, o acento de Durkheim no componente da solidariedade social e a defesa da esfera pública e da participação política enfatizada por Habermas e Arendt.
6. Costa (2003) distingue duas vertentes interpretativas principais no debate contemporâneo sobre a sociedade civil: versão enfática (Keane, Cohen e Arato, Walzer, Taylor, Habermas, Rödel, Frankenberg e Dubiel) e moderada (Shils e Dahrendorf).
7. VARIANTE ENFÁTICA:
(I) Charles Taylor: paradigmática, visão comunitarista, concepção de sociedade civil como “uma rede de associações autônomas e independentes do Estado, as quais agrupam os cidadãos em torno de interesses comuns e que através de sua mera existência ou atividade podem desencadear efeitos sobre a política”. Ao analisar a trajetória do conceito, Taylor destaca duas interpretações da relação Estado/sociedade (Locke e Montesquieu), atribuindo a função corretiva de “atenuar as tendências destrutivas do privatismo”, enquanto a economia e a esfera pública representam limites ao poder estatal.
(II) John Keane: delinear um projeto para democratização das relações Estado/sociedade (civil), definindo propostas que garantam a existência simultânea de liberdade e igualdade. Do ponto de vista institucional, demanda um Estado que se baseie em fundamentos legais claros e opera a intermediação da convivência dos múltiplos interesses privados, coibindo o surgimento de novas formas de tirania e injustiça. Assim, o poder de deliberação das associações civis deve ser ampliado para permitir controle efetivo sobre aqueles que detém um mandato político. A sociedade civil corresponde a uma esfera politicamente dinâmica que força permanentemente a democratização das instituições estatais.
(III) Michael Walzer: sociedade civil incorpora os instrumentos analíticos requeridos à crítica social e a concepção normativa de uma good life, abarcando diferentes visões possíveis do que isso signifique (concepções marxista, comunitarista, capitalista e nacionalista). Para Walzer, o projeto de sociedade civil se baseia nos grupos que se associam, “não por razão de alguma formação particular, mas por força da sociabilidade mesma”.
(IV) Cohen e Arato: política dual, estratégia democratizante fundada na utilização sincrônica das arenas institucionais (parlamento, esferas estatais) e não convencionais de participação (movimentos sociais, protestos coletivos). Na tradição liberal de pensamento, identificaram dois matizes interprestativos: (a) variante utilitarista, que vincula a integridade da sociedade civil à economia de mercado e garantia da propriedade privada; (b) ênfase na participação ativa dos cidadãos por intermédio de suas associações voluntárias nos processos políticos, fazendo-se necessária a presença de atores políticos tradicionais e de garantias constitucionais, além dos movimentos e associações de base. Os autores apóiam a estratégia política dual na assimilação modificada do modelo em dois níveis de sociedade (sistema e mundo da vida) de Habermas, sendo que o mundo da vida incorpora um repertório de tradições e conteúdos aos quais os indivíduos recorrem no âmbito de suas ações cotidianas, abrangendo processos sociointerativos que determinam no plano individual a formação da personalidade. Esta dimensão envolve processos comunicativos de transmissão cultural, integração cultural e socialização que requerem instituições. Esta dimensão institucional do mundo da vida é o que corresponde ao conceito de sociedade civil para ambos. Costa (2003) destaca que os autores não enfatizam os limites das duas esferas.
(V) Habermas aproveita a correção de Cohen e Arato para conferir aos atores da sociedade civil um caráter duplo (ofensivo e defensivo). Assim, a sociedade civil passa a ser tratada como o lugar social de geração de uma opinião pública “espontânea”, ancorada no mundo da vida, e como o elenco de atores sociais habilitados para conduzir os impulsos comunicativos condensados nas esferas da vida cotidiana às demais órbitas sociais, tornando-se componente vivo de uma ordem democrática.
8. VERTENTE MODERADA: sociedade civil não passa de uma categoria empírica.
(I) Edward Shils: sociedade civil abrange a teia de instituições e atividades que conferem forma e expressão ao espírito cívico, entendido como a consciência coletiva da participação conjunta na sociedade. Assim, torna-se o substrato social ideal para o crescimento da democracia liberal, sendo que as virtudes cívicas no seio da sociedade civil neutralizariam as tendências desintegradoras alimentadas pela competição entre interesses privados próprias às sociedades pluralistas. Por outro lado, a ordem liberal-democrática forneceria os requisitos institucionais mais apropriados ao desenvolvimento da sociedade civil, cujo pleno florescimento demandaria a existência do “mercado enquanto princípio ordenador” e instituições liberais, como um Parlamento influente, pluralismo partidário, liberdade de opinião e expressão. Desta forma, torna-se um fenômeno restrito das sociedades européia-ocidentais e norte-americanas, sem abranger todo o conjunto de cidadãos, fazendo parte apenas os portadores das “tradições cívicas” e promotores do espírito público. Assim, torna-se uma referência sociointegrativa hierarquizadora.
(II) Dahrendorf: critica Shils por sua homegeneidade étnica, matendo os pressupostos liberais.
9. O ESTADO ATUAL DO DEBATE: acontecimentos mais recentes, como o recuo dos movimentos cívicos no Leste Europeu, os difíceis e prolongados processos de democratização da América Latina e as transformações na formas de protesto nas nações industrializadas (crescimento dos movimentos de direita, institucionalização e profissionalização dos atores) evidenciaram que a aposta na sociedade civil como lugar de emergência da inovação e de transformações sociais enfrenta problemas e dificuldades no plano político. Os trabalhos teóricos subestimaram a habilidade adaptativa das elites políticas, sobrevalorizando o potencial político das associações voluntárias. Costa (2003) destaca as seguintes críticas à categoria sociedade civil:
(I) contornos analíticos frouxos, que apresenta ambivalências variadas. Para Heins, trata-se de uma moda cultural na medida em que a auto-educação cívica nada mais é que um subproduto da tentativa de concretização de interesses e necessidades específicas e identificáveis. Para ele, o mundo da vida nas sociedades industriais apresenta-se carregado de atitudes e comportamentos “incivis”, chauvinismos diversos, completa decadência dos setores urbanos pobres, abusos sexuais contra crianças, etc
(II) Arato (1994) indica uma imprecisão constitutiva de tal movimento político-teórico de que algo que “não existe” (uma sociedade civil sob o totalitarismo) possa contribuir para sua própria libertação, mostrando que nas transições “pós-revolucionárias” eram as contra-elites e partidos políticos que estavam no centro do processo político. Além disso, este autor reconhece problemas conceitual-metodológicos na retomada da idéia de sociedade civil, faltando uma lógica de coordenação unívoca e clara. Para muitas organizações civis, dinheiro e poder são meios inelutáveis de concretização de seus objetivos, sendo que a comunicação voltada para o entendimento não é monopólio da sociedade civil, podendo ser observada ocasionalmente em outros campos da vida social, como na órbita parlamentar.
(III)Instrumentalização para a práxis política: para Arato, o conceito apresenta problemas, pois revela-se uma referência pouco adequada para a negociação de um consenso entre os vários atores sociais.
10. Mesmo com as críticas, Arato não propõe abandonar o conceito de sociedade civil, mas alerta para a reparação de algumas imprecisões conceituais em alguns campos dentro dos quais o conceito necessita ser melhor trabalhado: (I) aspectos institucionais da democracia, (II) a questão dos meios de comunicação; (III) os problemas da globalização da sociedade civil.
11. A TRAJETÓRIA DO CONCEITO NO BRASIL: difusão coincide com a resistência ao regime militar, posição político-estratégica mais que analítico-teórica, remete a não militar. No período militar, linha marxista de interpretação do conceito de sociedade civil (Carlos Nelson Coutinho) a partir de uma leitura de Gramsci, que consistiu em uma influente linha de pensamento dos primeiros movimentos de base surgidos ainda sob o domínio militar.
12. Ao longo do processo de redemocratização, o termo sociedade civil apresentava traços conceituais muito difusos: conceito genérico incorporava desde organizações de base até a igreja progressista, passando pelo “novo sindicalismo”, setores empresariais “progressistas” e partidos e políticos “democráticos”, que integravam o conjunto de protagonistas do processo de restabelecimento da democracia, regime que contribuiria para o arrefecimento dos antagonismos entre governantes e governados, entre o Estado e a sociedade civil.
13. Com o aprofundamento do processo de democratização, estas clivagens, então latentes, do bloco da “sociedade civil” pela democracia vêm a tona. Emergem conflitos e divergências, revelando que esta órbita está longe de constituir um campo homogêneo.
14. Ao longo dos anos 90, as distinções internas vão se tornando mais evidentes, com processos de transformação de natureza muito variada: de um lado, a busca por uma melhor delimitação das fronteiras entre a sociedade civil e o Estado, de outro, a crença de que a participação no âmbito do Estado não implica mais, necessariamente, o sacrifício da identidade de atores da sociedade civil.
15. Entre os acontecimentos recentes que tornam o campo de atuação das organizações da sociedade civil cada vez mais multifacetado e complexo, acentuando a heterogeneidade e ambivalência dos modelos de relação que estas estabelecem com os demais agentes sociais, Costa (2003) destaca: (I) a aceitação social da crítica neoliberal; (II) a emergência de numerosas ONGs; (III) a investida de setores empresariais nas chamadas parcerias com a sociedade civil; (IV) a ação sistemática do governo federal no sentido de regulação das relações com a sociedade civil; (V) a internacionalização de muitas organizações.
16. Costa (2003) entende que, no Brasil, a sociedade civil compreende um contexto de ação, ao qual se vincula aquele conjunto amplo de atores que, depois do restabelecimento dos canais liberais democráticos de expressão e do fissuramento do bloco de certa maneira unitário de oposição ao regime militar, não querem ser assimilados nem às estruturas partidárias nem ao aparelho de Estado. Desta forma, as associações da sociedade civil constituem “apenas” uma força propulsora de transformações no arcabouço institucional democrático, o qual deve sofrer permanentemente aperfeiçoamentos e adaptações, se se pretende atenuar as tensões inevitáveis entre a lei e a ordem, as instituições democráticas e as disposições e reivindicações sociais em mutação.
17. O autor ressalta que historicamente os interesses sociais foram organizados pelo próprio Estado, e não constituídos por meio de sua representação em um espaço público político. Neste sentido, o movimento contra a ditadura representou uma inversão dessa tendência histórica.
18. Costa (2003) define um conceito operacional de sociedade civil como uma categoria referente ao contexto na topografia social, marcado por relações de solidariedade e cooperação, sem se restringir a um somatório de organizações, tratando-se de uma teia de interações. Neste sentido, as organizações da sociedade civil devem ser vistas como condensação institucional, nódulos nesse contexto de interações, que se distinguem dos grupos de interesse atuantes na esfera da política e da economia nos seguintes aspectos: (I) base de recursos; (II) base de constituição dos grupos; (III) natureza do recrutamento dos membros; (IV) natureza dos interesses representados.
19. Dessa distinção, Costa (2003) destaca duas condições resultantes para a construção e consolidação da sociedade civil: a vigência de direitos civis básicos (liberdade de organização e de expressão) e existência de um espaço público minimamente poroso. Desta forma, sociedade civil e espaço público se condicionam mutuamente.
REFERÊNCIA:
COSTA, Sérgio. As cores de Ercília. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003
(Cap. 2)
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2 comentários:
Muito obrigado pela leitura desse fichamento,na biblioteca da universidade não tem este livro, esse capitulo foi muito bom... valew..... Lida diária
oi, eu precisava muito desse capitulo! Tu tem esse livrou ou um xerox dele? se sim teria como me enviar uma copia! Eu pago correio, copias tudo! Sim desespero tomando conta heheh
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