2. O ponto de partida é o desenvolvimento do conceito de “economia” e seus derivados como uma idéia muito recente. Inicialmente, o termo referia-se a certas atividades sociais específicas dos indivíduos, dizendo respeito ao ordenamento do lar, ao gerenciamento dos assuntos domésticos, ou seja, à maneira como as pessoas agiam ou deveriam agir. No século XVII e início do século XVIII suas implicações eram típicas dos indivíduos da classe baixa, pessoas que precisavam trabalhar para se sustentar (mercadores, comerciantes), que tinham que subordinar gastos aos rendimentos. Neste sentido, a transformação sofrida pelos significados do termo “economia” está relacionada com o desenvolvimento de um determinado código social. O recente ethos que prescreve como virtude o equilíbrio das contas pessoais e a poupança de parte da receita individual para investimento só pode surgir em uma sociedade com recursos líquidos em quantidade suficiente para tornar amplamente disponíveis as facilidades de crédito e as oportunidades de investimento. Elias (2006) destaca que esse ethos social surgiu acompanhado da tentação que pretendia conter, com destaque para o fato de que o código social dos ricos e poderosos foi em grande medida oposto à lógica que exigia a subordinação das despesas à renda. Os padrões de consumo baseavam-se em sua posição social e na opinião de seus contrapartes e a penalidade de não viver conforme as expectativas era a perda de prestígio e status. A correspondência entre consumo e status compunha o código que dominava as atitudes “econômicas” dos estratos mais altos das tradicionais sociedades européias pré-industriais, anteriores à Revolução Francesa. Desta forma, o termo “economia” era empregado pejorativamente pelas classes altas até o final do século XVIII.
3. A mudança no uso do termo “economia”, que deixa de designar uma atividade específica de determinados estratos sociais para se configurar em uma função social, está relacionada com a ascensão dos estratos para os quais as atitudes agora “racionais” eram consideradas positivas: equilibrar gastos e renda, vender com lucro e poupar para investir.
4. Elias (2006) destaca que a primeira mudança no significado da palavra “economia” derivou de um deslocamento do termo que passou do campo privado para o da administração pública, indo do manejo dos recursos domésticos para o gerenciamento do país. Neste sentido, a expressão “economia política” é um sintoma da mudança, sendo destacado o papel de François Quesnay, um médico, do grupo denominado de fisiocratas na introdução do termo em um domínio mais amplo, menos pessoal e mais científico. O autor usa este ponto de inflexão para buscar indicações sobre a mudança no padrão de concepção da sociedade. Neste sentido, procura examinar mais detalhadamente de que forma a gênese dos conceitos pode ser de grande valia para diagnosticar transformações sociais mais amplas.
5. Para Elias (2006), se um novo significado dado a uma palavra por alguns indivíduos entra na linguagem corrente e alimenta novas transformações, essa mudança traduz mais que um capricho pessoal, pois corresponde mais às necessidades de um grande público interessado em ferramentas intelectuais que o ajudassem a lidar com os novos problemas em seu horizonte mental. O autor aponta como uma dificuldade o risco de se tomar os conceitos como algo dado. Para um sociólogo, remontar o trajeto percorrido por um conceito é uma tarefa sociológica representativa de uma abordagem focada no desenvolvimento dos problemas do pensamento e da construção do saber como parte integral de uma teoria do conhecimento.
6. Na trajetória do termo “economia”, os fisiocratas demonstraram por meio de evidências empíricas que a sociedade, da mesma forma que a natureza, tinha leis específicas que não podiam ser negligenciadas sem prejuízos. Na época, a argumentação dominante era de que a natureza produziria no domínio social uma vida mais feliz e harmoniosa entre os homens, sendo que o trabalho de Rousseau é o exemplo paradigmático desta crença social do século XVIII. Os fisiocratas e Adam Smith foram influenciados por essa crença de que a ação das leis naturais assegurariam o bem-estar e a prosperidade dos homens, mas usaram dados empíricos para demonstrar essas “leis”. Os dados já estavam disponíveis anteriormente, como por exemplo as vantagens práticas da divisão do trabalho antes desse conceito ser usado para demonstrar o mecanismo social auto-regulador da livre concorrência por Adam Smith. Com isso, as inovações intelectuais dos fisiocratas e de Adam Smith foram proezas de síntese, por conectarem com elementos empíricos o que antes era uma crença filosófica, ganhando, assim, a função de uma hipótese científica.
7. Elias (2006) evidencia como que a crescente interdependência e a fusão de duas correntes com tradição independentes conferiram significado especial ao exemplo dos fisiocratas: grande conceitos filosóficos e o conhecimento prático sobre dados sociais específicos. Os fisiocratas desenvolveram modelos específicos cujo centro era o conceito de renda anual de um país inteiro, que mostravam como circulava entre os três estratos de pessoas, três classes que antecederam no ambiente agrário aquelas que Marx descreveu nas sociedades industriais. Desta forma, os fisiocratas perceberam aspectos da sociedade como um conjunto consistente de funções, em grande medida auto-reguladas como os processos da natureza, mas que seguiam suas próprias leis. Como nas ciências naturais, as relações entre os fenômenos no campo da ciência econômica podiam ser formuladas e provadas com a ajuda de evidências factuais. Desta forma, a aproximação entre uma corrente filosófica e uma corrente de observação empírica levaram a uma abordagem mais científica dos problemas sociais.
8. As diferenças entre as condições nas quais os germes da novidade apareceram nestes ambientais tradicionais e as circunstâncias nas quais se desenvolveram em função de uma abordagem mais científica tornam visíveis alguns obstáculos que essas novas idéias enfrentaram: (1) imensa dificuldade de imaginar que a indústria poderia produzir mais riqueza do que a agricultura, a silvicultura e a mineração; (2) os fisiocratas faziam referência ao país, ao reino, ao Estado e à nação, mas não à sociedade ou economia. Cabe destacar que o Antigo Regime estabelecia limites específicos ao que as pessoas podiam escrever e pensar. Com isso, Elias (2006) destaca a coragem que era necessária para dizer e demonstrar com fatos que a sociedade tinha suas leis, independentes das normas estabelecidas pelos governantes, repousando nisso os primórdios do conceito de “sociedade” como algo distinto do “Estado”. Essa ousadia só pode ser percebida ao reviver suas implicações sociais. A tarefa de convencer os detentores do poder, no Estado e na Igreja, de que a natureza seguia princípios próprios, indiferentes a qualquer autoridade secular ou espiritual, e de que deveriam ser estudados por procedimentos especiais antes que se pensasse em controlar as forças a eles submetidas, se tornava árdua porque representava um duro golpe contra esta autoridade.
9. A diferença de atitude entre os fisiocratas e os economistas clássicos da primeira metade do século XIX em relação ao governo aponta para a conexão entre a alteração no uso do termo “economia” e mudanças na distribuição de poder na sociedade. Os economistas clássicos foram muito além de pedir atenção à capacidade “natural” e auto-reguladora das funções sociais, como os fisiocratas fizeram. Eles puseram as “leis econômicas”, entendidas como a capacidade auto-reguladora de certas funções sociais específicas, no centro de suas doutrinas, insistindo que o bem-estar da sociedade seria maior se operassem livres da intervenção governamental. Neste sentido, a economia política de Adam Smith começou a se transformar em economia pura e simples, com seus representantes reclamando autonomia em pelo menos dois aspectos interconectados, configurando um conjunto auto-regulado de funções e mecanismos especificamente econômicos. Esta reivindicação de autonomia refletia esse lugar diferenciado. A mudança de posição e atitude estava vinculada à distribuição do poder no âmbito social como um todo: o poder das classes médias industriais e mercantis em relação aos governos tinha aumentado enormemente e elas demandavam, primeiramente, mais liberdade. O fato de suas reivindicações terem sido atendidas em grande medida e a ampliação do horizonte no qual suas operações estavam livres da interferência do governo caracterizavam uma mudança multifacetada na distribuição do poder pelo avanço das amplas camadas médias da sociedade.
10. Com o aumento do poder potencial da classe média, suas operações de interconexão (compra e venda) tornavam-se mais autônomas, seguindo uma lógica própria. A transição de um equilíbrio de poder muito irregular e quase unilateral para um menos irregular e mais multilateral acentuou muito as propensões auto-reguladoras e relativamente impessoais de elementos sociais como os mercados nacionais e internacionais. Desta forma, a busca por novas maneiras de analisar a sociedade foi estimulada e, com a inadequação dos modos tradicionais de abordagem dos fenômenos sociais, criou-se uma demanda por especialistas que pudessem desenvolver uma maneira de desenvolvê-los como fora construído para os fenômenos naturais. Entretanto, para se chegar a economia e a sociologia como ciências a mudança foi lenta. A renda é um conceito que exemplifica esta transição, deixando de ser analisada como pagamento pelo uso da terra derivado da produção propiciada pela natureza para ser analisada no contexto do mercado. A crescente autonomia de elementos sociais, como os mercados, encontrou expressão na gradual emancipação do pensamento, que se libertava dos modelos de uma era anterior e se tornava mais autônomo.
11. A ciência econômica começou a criar suas teorias e afirmar sua independência com relações às ciências da natureza. Essa reivindicação tinha pelo menos três aspectos: (1) a afirmação da autonomia do conjunto de funções que constituía o objeto da ciência econômica; (2) a asseveração da independência da ciência dedicada ao estudo desse conjunto de funções; (3) a afirmação da classe de especialistas em tais funções. Ao analisar o percurso do aumento de autonomia da economia, uma das ciências sociais nascentes, Elias (2006) procura ilustrar o caminho trilhado entre o pensamento pré-científico e uma maneira mais científica de lidar com os problemas que se apresentavam às pessoas
12. Elias (2006) destaca que o complexo de fatos sociais experimentou o mesmo destino. Na economia e na sociologia, o reconhecimento de que um nível específico do universo, um tipo particular de ocorrência, dotava-se de ordem própria e de certas regularidades correspondeu à chegada de uma etapa inédita do conhecimento científico.
13. O autor destaca a ausência de condições especiais que possibilitaram a autonomia do objeto das pesquisas sociológicas. Um domínio específico e os instrumentos de pesquisa próprios a este campo consistem a base para reivindicar uma autonomia relativa para os cientistas dedicados à exploração dessa esfera de eventos. Elias (2006) identifica que a mudança na maneira de olhar a dimensão social do universo se deu junto com a alteração sofrida pelo objeto de atenção nessa área do conhecimento, destacando isso como dificuldade para analisar o surgimento das ciências sociais como um problema sociológico. Da mesma forma, o desenvolvimento da sociedade desempenhou um papel importante na construção de uma forma mais científica de concebê-la.
14. Como exigências básicas neste caminho, Elias (2006) destaca: (1) aprender com base nos modelos das ciências naturais já existentes e, ao mesmo tempo, desenvolver métodos e teorias suficientemente independentes para se distanciarem daqueles modelos sempre que as evidências o exigissem; (2) conceituar o que se estudava em termos menos pessoais que as expressões correntemente usadas na sociedade em geral, tratava-se de compreender conexões entre as ações sociais e as funções sociais; (3) estabelecer uma distinção entre, de um lado, o diagnóstico sociológico da interdependência funcional no desenvolvimento, na estrutura e no movimento das sociedades e, de outro, os enunciados que representavam objetivos, crenças, ideais e opiniões de grupos específicos.
15. Uma das principais preocupações dos economistas do século XIX era estudar, conceituar e explicar as regularidades dos mercados. Após uma longa gestação, com impulso do desenvolvimento das ferrovias, os mercados nacionais e supranacionais passaram a operar com força total, constituindo um dos fenômenos que ajudam a explicar a disseminação de abordagens científicas para os problemas sociais. Neste caso, a tarefa dos economistas era similar a dos estudiosos das ciências naturais, ou seja, expressar e explicar as regularidades.
16. A análise não se dirigia à sociedade como ela era, mas também a ideais preconcebidos para demonstrar o que a sociedade deveria ser. Uma delas era a “racionalidade” da conduta na compra e na venda, quase uma exigência moral para comprar ao preço mais baixo e se vender ao mais alto. Elias (2006) mostra como esta atitude e ethos tinham como foco as classes sociais cuja situação refletiam. Neste sentido, não se podia evitar neste momento inicial o recurso, nos conceitos, a expressões que as faziam parecer remeter, em primeiro lugar, às pessoas. A ciência econômica ainda não constituía teorias das funções, suas proposições básicas eram formuladas sob a forma de teorias da ação, com base em modelos comportamentais dos indivíduos. Tratava-se de um estudo dedicado aos comportamentos e não às configurações. Desta forma, a natureza de seu objeto e o problema da relação entre as configurações e o comportamento das pessoas permaneciam pouco explorados. Uma das questões mais difíceis era reconhecer e examinar criticamente o problema do envolvimento de seus próprios representantes, o problema da dupla função de todas as novas teorias (representar a estrutura e funcionamento de uma região particular do universo humano, de forma válida para todos X apresentação como ideologias, armas transitórias nas disputas entre diferentes grupos).
17. No final do século XVIII e início do século XIX, uma mudança mais ampla pode ser percebida ao analisar o movimento em direção a uma abordagem mais científica do campo econômico, associado à trajetória paralela do conceito de “economia”: (1) as formas tradicionais de sociedade, caracterizadas pela alta concentração de poder nas mãos de grupos relativamente pequenos, deram lugar a outros modos de organização social; (2) em lugar de conceber a sociedade com base nas leis de um país e no poder regulador dos governos, passou-se a percebê-la de maneira distinta; (3) a distribuição de poder tornava-se menos irregular e certas esferas sociais, como o mercado, viram-se livres da regulação governamental. As forças em ação nessas configurações não estavam submetidas à direção de alguém que se pudesse identificar, e menos ainda de qualquer pessoa que contribuísse para formá-la. Isso chamou atenção.
18. Uma transformação semelhante ocorreu no atual campo da “sociologia”. Os primeiros sociólogos diferenciavam-se muito mais uns dos outros do que os economistas e suas conexões eram diferentes. Eles se vinculavam mais por se depararem com problemas semelhantes, em decorrência da similitude de suas situações, das mudanças por eles presenciadas na estrutura da sociedade, do estágio de desenvolvimento alcançado pelos modos de pensar e pelo conhecimento reunido a respeito dos fenômenos sociais. Por outro lado, seus ideais sociais frequentemente diferiam partilhando de uma mesma plataforma situacional. Das características compartilhadas, uma das mais significativas era que todos conceituavam as mesmas experiências como “sociedade”, diferenciando-a do Estado. Neste sentido, tentavam descobrir as “leis” da sociedade, que serviam de base a todas as leis feitas pelo homem, que eram inerentes à sociedade, tal qual os princípio naturais eram inerentes à natureza.
19. Os primeiros sociólogos perceberam a “sociedade” como uma região do universo dotada de certa autonomia e que tinha ou constituía uma ordem sui generis. Eles procuraram provar suas idéias gerais sobre as regularidades por meio de evidências factuais. Como Comte, mesmo sem concordar com ele, consideravam a análise da sociedade como um estudo “positivo”.
20. Da mesma forma que a economia, a sociologia tornou-se relevante como ciência quando certos grupos passaram a conceber uma ordem de eventos particular como algo de funcionamento relativamente autônomo e puderam comprovar om que diziam por meio de um contínuo cruzamento de referências, testando reciprocamente suas idéias e observações factuais. O problema compartilhado era saber como a sociedade tinha se desenvolvido, considerando-a um processo auto-regulado, autopropulsionado, mais ou menos independente das intenções de curto prazo dos indivíduos que a formavam. A questão comum era o desenvolvimento da humanidade a longo prazo.
21. A novidade desse novo padrão de pensamento fica mais evidente ao apreciar as abordagens mais estáticas do século XVIII, como, por exemplo, dos fisiocratas. Elias (2006) destaca o trabalho de Hegel como a primeira grande manifestação deste padrão nascente por meio de sua concepção da história universal pura metafísica especulativa. Sua ênfase estava no padrão mutável da história e desenvolvimento da sociedade.
22. Para explicar essa mudança, Elias (2006) recua aos séculos XVII e XVIII, quando apresentar idéias seculares sobre a sociedade consistia em uma generalização de alto nível, sendo uma tarefa dos filósofos, ou seja, um exercício solitário do pensamento ou da aplicação das idéias gerais a respeito de Deus e do mundo. Esses trabalhos eram feitos para pessoas que pertenciam ou poderiam pertencer aos grupos governantes e entre seus autores figuram Hobbes, Locke, Montesquieu ou Voltaire. Neste contexto, para explicar os eventos sociais, olhava-se primeiramente para os planos, os objetivos e os interesses dos líderes ou, no máximo, de alguns poucos grupos ou facções em posição de liderança.
23. Um dos principais fatores para o surgimento de uma ciência da sociedade foi a crescente consciência de que esse tipo de explicação não era suficiente. Marcadamente após a Revolução Francesa, o enigma peculiar da sociedade consistia na constatação de que o que acontecia era conseqüência dos planos e ações das pessoas, mas os efeitos tomavam um rumo próprio e, às vezes, imprevisto. As mudanças sociais aparentavam ser determinadas por forças anônimas, e não por pessoas conhecidas. Estas forças eram semelhantes às da natureza, mas possuíam características próprias, que não se podiam explicar com o mesmo tipo de raciocínio que dava conta das ações particulares dos indivíduos.
24. A sociedade não era percebida como tal até o século XVIII, sendo vista como um aglomerado de pessoas e ações, entre as quais as que mais importavam eram as dos líderes. A partir do século XIX, a sociedade se apresentava como uma ordem mais impessoal, cujo funcionamento não era necessariamente aquele pretendido pelos que a formavam. Entre as experiências que embalaram a ciência da sociedade está a percepção de que, embora as pessoas formassem o conjunto social e o mantivessem em marcha com suas ações e seus planos, tal conjunto seguia seu curso particular e, mesmo sendo dirigido pelos que o constituíam, também parecia dirigi-los. A tarefa da sociologia era descobrir e explicar essa ordem, suas regularidades, forças motrizes e direção para permitir usar o saber acumulado para mais facilmente atingirmos nossos objetivos, a exemplo do que já se fazia com o conhecimento a respeito da natureza.
25. Além de se motivarem por um intuito científico de descobrir e explicar a relação entre os eventos, os pioneiros da sociologia tinham outros objetivos
26. Nas pesquisas sociológicas, esses ideais sociais combinavam as funções de crença social com as de hipótese ou teoria, determinando o gênero de pergunta que se podia fazer, o tipo de dado considerado relevante e o modelo de explicação que se buscava. Eram tomados como algo absoluto, regras não sujeitas a correções e revisões à luz de testes controlados e novas observações e experiências. Elias (2006) destaca que a dupla função de suas formulações teóricas como um obstáculo destes teóricos. Neste contexto emergiu a crença de que a humanidade progredia inevitável e necessariamente. Qualquer que fosse o padrão de desenvolvimento, este era afetado por suas concepções prévias. Desenvolvimento social significava “mudança em direção a algo melhor”, ou seja, idêntico a progresso. Por outro lado, oo longo do século XIX também ouvia-se o oposto, os cientistas sociais que acreditavam na inevitabilidade da miséria humana ou na inalterável estupidez das massas. Elias (2006) destaca que a idéia de que a sociedade se desenvolvia raramente representou um papel importante entre os grupos para os quais o futuro não trazia uma recompensa emocional.
27. No século XIX e início do XX, o ímpeto emocional pela pesquisa científica a respeito do desenvolvimento a longo prazo da sociedade era mais forte entre aqueles em cujas crenças sociais a imagem do futuro, comparada com as imagens do presente e do passado, era o símbolo dos mais altos valores, um marco ainda longínquo, em direção ao qual se trabalhava, pelo qual se lutava, ou seja, um objetivo social que valia a pena. Os modelos de desenvolvimento da época correspondiam a esse esquema de valores. Comte, Marx e Spencer encontraram uma correspondência cada vez maior entre a noção de história como uma seqüência padronizada de mudanças não-recorrentes numa única direção e o conhecimento em ampliação, dos fatos históricos. Suas idéias sobre ordem e padrão ainda eram carregadas de metafísica, a história sempre se movia em linha reta, em direção ao objetivo de alguém, consistindo em um princípio quase tão estrito quanto as leis da natureza. Acreditava-se na inexorável lei do progresso.
28. Desta forma, o conceito de desenvolvimento tornava-se um duplo instrumento voltado para a análise científica e a sinopse: por um lado, crenças sociais axiomáticas produziam grande resistência nos fiéis à percepção das evidências e à compreensão dos argumentos que não se encaixavam no esquema de suas expectativas preconcebidas para o futuro; por outro lado, aguçavam a percepção de dados e padrões na história da humanidade que se apoiavam em elementos factuais, servindo para corroborar suas convicções sobre o porvir. Elias (2006) enfatiza neste ponto as conexões entre as nascentes ciências sociais e as transformações específicas sofridas pela sociedade. Um dos dínamos dos estudos empreendidos pelos primeiros sociólogos era o desejo de contribuir para o esclarecimento dos objetivos, dos programas de ação e das bandeiras pelos quais os diferentes setores sociais marchavam e travavam suas disputas. Neste sentido, a sociologia foi filha de uma era de partidos populares e movimentos de massa. Elias (2006) destaca a alteração na distribuição do poder como a transformação básica para o surgimento da sociologia, classificando este percurso como uma trajetória unidirecional rumo à democratização. O aumento do poder potencial de estratos cada vez mais amplos, até que nenhum grupo permanecesse fraco socialmente a ponto de ser desconsiderado. Com isso, todos os segmentos tinham que ser levados em conta no planejamento das estratégias de cada parcela da sociedade.
29. Elias (2006) destaca que a direção geral dos países que “romperam com a tradição” foi a mesma. De forma complexa, a democratização e a industrialização conectavam-se, como tendências, à transformação mais geral da sociedade. Neste sentido, houve uma redução do diferencial de poder entre as várias partes da sociedade, sendo que, paralelamente, houve uma passagem de uma etapa em que os mecanismos de controle eram relativamente unilaterais para outra em que o controle tornou-se mais multilateral e recíproco.
30. O crescente poder das massas nas sociedades européias em desenvolvimento podia ser observado pelo aumento do descontentamento e nas ameaças de violência e subelevação contra os setores governantes caso não houvesse canais institucionais para sua expressão (urnas ou greves organizadas, ações dos partidos e movimentos de massa). Era cada vez mais difícil governar efetivamente sem levar em conta os grupos de interesse da sociedade como um todo. O poder se tornava mais amplamente distribuído, com a crescente especialização e a interdependência mútua de todas as atividades sociais, nenhum estrato era simples objeto passivo, desprovido de qualquer força no processo de tomada de decisões.
31. Naquela época, era difícil apreender, conceituar e expressar em termos facilmente compreensíveis o fato de que as características das configurações de pessoas não podiam ser deduzidas da observação dirigida individualmente às pessoas. Como ciência configuracional, a sociologia ascendia. Neste sentido, os primeiros sociólogos agiram como exploradores e observadores em um terreno desconhecido, fazendo da sociedade seu objeto de estudo, construindo novos conceitos. Falavam de “leis do desenvolvimento social”, de “forças sociais” ou “relações de produção”. Os sociólogos, mais que os economistas, reconheciam na sociedade uma ordem específica de eventos e procuravam esclarecê-la. Estavam mais conscientes da dinâmica das configurações, das propensões autopropulsoras das configurações das pessoas, mesmo que fosse um obstáculo o problema das relações entre as propriedades de tais configurações e as das pessoas que as formavam.
32. Os primeiros sociólogos não eram simples observadores, mas também participantes. Como observadores e pesquisadores, abordaram com certo grau de distanciamento os fenômenos resultantes da maior distribuição de poder, da maior autonomia dos eventos sociais em relação aos planos específicos dos indivíduos ou dos grupos. Como participantes, ao estudar a sociedade, ajudaram a forjar, de forma mais ou menos consciente, armas intelectuais para as lutas entre diferentes ideais e sistemas de valores. Neste sentido, a dupla função de suas idéias não era acidental nem derivada de características individuais, mas sim a contrapartida da tarefa social que esses sociólogos viam diante de si, refletindo o duplo papel que desempenharam como observadores distanciados e participantes envolvidos.
33. Elias (2006) trata a sociologia como uma disciplina científica que tem como uma das tarefas desenvolver uma teoria básica sobre a sociedade. Não se pode explicar a ascensão da sociologia como a ciência cujos representantes têm, entre outras, a função de desenvolver uma teoria central, sujeita a testes, sobre a sociedade, concentrando-se a atenção apenas em engenhosos homens que inventaram e propagaram um nome específico para a ciência da sociedade. Uma abordagem da gênese da sociologia deve responder a questão: que aspectos do desenvolvimento das sociedades humanas tornou possível reconhecer estruturas não-planejadas subjacentes à miríade de atividades humanas entrelaçadas e, ao mesmo tempo resultantes delas, e, ademais, criar modelos teóricos de tais estruturas, de configurações de pessoas e de suas transformações?
REFERÊNCIA:
ELIAS, Norbert. Escritos & ensaios 1: Estado, processo, opinião pública. (Org.
F.Neiburg e L.Waizbort), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Eds., 2006 (Cap. 6).
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