1. Costa (2003) enxerga a democracia como uma forma de dominação consentida, em que as decisões precisam se permanentemente fundamentadas e justificadas. Desta forma, a esfera pública assume um lugar central como sendo a arena do amálgama da vontade coletiva e de justificação das decisões políticas previamente acertadas. O consenso relativo ao papel desta esfera na ordem democrática não se mantém quando a questão é a avaliação acerca de processos recentes de transformação, com a existência de uma variedade de diagnósticos, constituindo um debate que o autor tenta sistematizar por meio da inserção dos mesmos em contextos teóricos e políticos mais abrangentes, que podem apresentar desdobramentos lógicos e empíricos.
2. MODELOS DE ESPAÇO PÚBLICO: VARIAÇÕES CONCEITUAIS: Benhabib (1993) identificou três modelos teóricos concorrentes de espaço público: (a) de inspiração republicana (Hannah Arendt); (b) liberal (Ackerman e o modelo discursivo); (c) discursivo (Habermas). Costa (2003) se diferencia desta autora ao adotar como critério de diferenciação as possibilidades e as características atribuídas à esfera pública, chegando a duas grandes linhas argumentativas: (I) centralidade dos meios de comunicação de massa e ênfase na impossibilidade factual de entendimento comunicativo dentro da esfera pública, tratando da disputa pelo controle do acervo de recursos simbólicos disponíveis; (II) atenção a todo conjunto de instâncias constitutivas da esfera pública, vislumbrando a possibilidade de formas discursivas de comunicação pública.
3. A ESFERA PÚBLICA COMO MERCADO: o espaço público conforma um palco para a encenação política, sem comunicação efetiva, configurando uma mera disputa de poder entre diferentes atores. O autor aponta como corrente majoritária. Neidhardt (1994:8): esfera pública como sistema de comunicação especializado na “reunião (input), processamento (throughput) e na transmissão de temas e opiniões (output)” às esferas de tomada de decisão política (teoria sistêmica, Luhmann). Neste sentido, a opinião pública somente se converte em decisões políticas conforme um modelo de dois níveis (policy process): (I) formulação pública e apresentação de posicionamentos acerca de determinado problema (formação da opinião pública); (II) assimilação da questão tematizada pelo sistema político, podendo se transformar em uma decisão concreta. Com isso, as perspectivas de que certo problema se torne um tema político depende menos do seu conteúdo e relevância do que de certos requisitos prático-estratégicos.
a) Nesta visão, o governo procura assumir o tratamento dos problemas cujas soluções encontrem a aceitação mais ampla possível, evitando questões controversas e se constituindo como destinatário e co-formador ativo da esfera pública.
b) Mesmo que a esfera pública seja um fórum aberto, tem-se uma diferenciação funcional rígida entre os porta-vozes de partidos, de grupos organizados e os meios de comunicação, ou seja, os atores da esfera pública, de um lado, e o público, mero destinatário das mensagens, sem voz pública, ou seja, a platéia, de outro. Nesta concepção, a esfera pública não incorpora o conjunto dos cidadãos, sendo que Neidhardt distingue entre opinião pública (opinião dominante entre aqueles que, de fato, têm voz ativa na esfera pública) e opinião da população (opinião reinante entre o público).
c) Movimentos sociais emergiram dentre deste hiato entre atores da esfera pública e o público. Neste sentido, as possibilidades dos movimentos sociais serem bem-sucedidos em sua tarefa de arregimentar atenção da mídia e do público para os temas que trazem à luz dependeria da sua habilidade em manipular recursos comunicativos. Trata-se de avaliar a capacidade dos movimentos de produzir, pela espetacularização de suas ações ou de um trabalho adequado de relações públicas, fatos com conteúdo noticiosos.
d) Este processo de esvaziamento das possibilidades discursivas da esfera pública é esboçado por Baringhorst (1996) que percebe os rainbow warriors, ou seja, “os novos heróis do engajamento humanitário, ecológico e pacifista” como mestres do jogo de imagens, que arregimentam, através de estratégia não verbal e promessa de participação em ações carregadas de emoção e grandes vivências, milhares de adeptos. Para a autora: “a esfera pública hoje é produzida antes por estratégias políticas persuasivas e de imagens que por estratégias políticas verbais e argumentativas” (p.22).
e) Costa (2003) entende que este tipo de diagnóstico das esferas públicas contemporâneas, em que forma e conteúdo, estetização e argumentação aparecem como variáveis opostas e mutuamente excludentes, é compartilhado majoritariamente pelos pesquisadores dos meios de comunicação de massa na América Latina.
f) Gárcia Canclini, Martin Barbero, Jose Brunner: partilham da influência marcante do pós-modernismo e da centralidade que conferem aos meios de comunicação, especialmente a televisão, para a constituição dos perfis contemporâneos das sociedades latino-americanas. Estes autores mostram que os desenvolvimentos históricos necessários para a transição á modernidade teriam faltado na América Latina. Por isso, a modernidade se dá tardiamente entre nós, caracterizando a constituição de um plasma cultural híbrido com as reminiscências de formas culturais tradicionais sucumbindo diante dos valores do individualismo e do “desejo de ser moderno” dos públicos educados, ao longo do processo de urbanização e fragmentação de identidades. Desta forma, as sociedades latino-americanas seriam caracterizadas pela inexistência histórica de um tal espaço comunicativo.
g) Neste cenário de obliteração das possibilidades efetivamente comunicativas das esferas públicas latino-americanas, Canclini (1995) vê as possibilidades da política e das ações coletivas contemporâneas relacionadas com a ocupação do papel de cidadão pelo de consumidor; o consumo estaria conseguindo instituir direitos (organiza-se, protesta, boicota, faz valer seus interesses) e neste plano estariam situadas oportunidades promissoras para operação de transformações sociais e novas formas de ação política. Entretanto, Costa (2003) destaca o crescimento do nível de exigência do consumidor como contraparte da tendência contemporânea de expansão capitalista. Assim, ao transformar esta tendência em virtude política, Canclini estaria confundindo níveis analíticos e ignorando processos históricos importantes.
h) O autor compreende que a cidadania moderna nasce duplamente determinada, econômica e politicamente. Assim, o sistema de necessidades, governado por interesses individuais e conflitantes (espaço do consumo), minaria os laços de solidariedade e cooperação social que seriam reconstruídos em outras esferas da vida social. Para Costa (2003), nestas outras esferas é que devem ser buscadas as práticas capazes de restaurar as relações solidárias, encontrando-se as fontes de renovação normativa da política moderna (cap. 2).
4. O MÉRITO DISCURSIVO DA ESFERA PÚBLICA: para além do espaço público transformado em mercado, o autor destaca a persistência de um leque diversificado de estruturas comunicativas e uma gama correspondente de processos sociais de recepção e reelaboração das mensagens recebidas e de interpenetração entre os diferentes microcampos da esfera pública, conferindo consistência ressonância e sentido ao “espetáculo político”.
a) Cohen e Arato (1992): dois planos de questões, (I) combatem a visão sistêmica por se fazer cega a fenômenos importantes da política atual, como a emergência de novos tipos de organização política com a pluralidade de públicos alternativos, afetando a discussão pública nos parlamentos e convenções partidárias, mesmo que o núcleo da esfera pública política mantenha-se fechado; (II) argumentos em torno das conseqüências dos meios de comunicação de massa dentro da esfera pública, ao lado do crescimento incontrolado da grande mídia e da penetração da cultura pelas lógicas do dinheiro e do poder, verifica-se um processo simultâneo de modernização do mundo da vida por meio da desprovincialização, expansão e criação de “novos públicos” e novos loci de realização de formas críticas de comunicação.
b) Formulações mais recentes de Habermas são convergentes, evidenciando o enquadramento de Cohen e Arato no marco analítico de uma teoria discursiva da democracia. Habermas (1990) mostra que espaço público continua estabelecendo, como órbita insubstituível de constituição democrática da opinião e vontade coletivas, a mediação necessária entre a sociedade civil, de um lado, e o Estado e o sistema político, por outro. Costa (2003) destaca três momentos importantes derivados de Habermas: (I) relativização da tese linear de que os cidadãos na sociedade de massas teriam se transformado de politicamente ativos em privatistas, de atores da cultura em consumidores de entretenimento: não se deve subestimar o potencial de crítica e de seleção de um público capaz de preservar suas diferenciações internas e sua pluralidade, a despeito da pressão cultural e politicamente homogeneizadora da mídia; (II) a partir de um modelo que diferencia entre sistema e mundo da vida os níveis da sociedade, mostra que a força sociointegrativa das interações comunicativas voltadas para o entendimento, que têm lugar no mundo da vida, não migram imediatamente para o plano político: a fonte da legitimidade política é o resultado do processo comunicativo de formação da opinião e da vontade coletiva, sendo que este processo estabelece a mediação entre o mundo da vida e o sistema político; (III) percebe a ambivalência constitutiva da esfera pública, onde desembocam os fluxos comunicativos originados no mundo da vida e os esforços de utilização dos meios de comunicação para a produção de lealdade política e para influenciar as preferências de consumo.
c) Habermas procura detalhar o papel de uma esfera pública “politicamente influente” em sua concepção comunicativa de democracia, detalhando os procedimentos legais e políticos institucionalizados que, nos contextos democráticos, asseguram que os processos espontâneos de formação de opinião sejam considerados nas instâncias decisórias. A força sociointegrativa da solidariedade dos impulsos comunicativos do mundo da vida, contrabalançaria os outros dois recursos que suprem a “carência de integração e coordenação” das sociedades modernas: o dinheiro e o poder.
d) Crítica de Habermas à Rosseau (p. 25-6)
e) Visão republicana (política como esfera constitutiva do processo de socialização como um todo, membros de uma comunidade internalizam compromissos de reciprocidade se constituindo como cidadãos. Assim, o espaço público se transforma na arena de auto-organização da sociedade como comunidade política de iguais. Não há diferenciação normativa e analítica entre os planos da vida social e da vida política) X modelo comunicativo (o poder conferido à sociedade civil não deve estar associado à idéia de um povo concreto que tem no Estado sua corporificação institucional. Deve se manter a distinção entre esfera societária e esfera política e o Estado para que a influência da sociedade civil se concretize de forma anônima e difusa por meio da existência de uma esfera pública transparente e porosa, permeável às questões originadas no mundo da vida).
f) Críticas à Habermas: de inspiração feminista (Fraser), existência de esfera pública X multiplicidade de problemas, temas e contextos em que se verificam as “formas críticas” de comunicação que forçariam o reconhecimento da existência de vários públicos e counter publics.
g) Costa (2003) aponta como principal problema da crítica de Fraser o fato de que a esfera publica, que na concepção de Habermas se apresenta porosa e ubíqua, perpassaria todos os níveis da sociedade e incorpora todos os discursos, visões de mundo e interpretações que adquirem visibilidade e expressão política. Na esfera pública, os diferentes grupos constitutivos de uma sociedade múltipla e diversa partilham argumentos, formulam consensos e constroem problemas e soluções comuns, conformando o contesto público comunicativo, onde os membros de uma comunidade política plural constituem as condições de possibilidade da convivência e da tolerância mútua, além dos acordos em torno das regras que devem reger a vida comum.
5. USOS DO CONCEITO DE ESPAÇO PÚBLICO NO BRASIL: tema historicamente tratado a partir de sua inexistência, sendo que a partir dos anos 80, o processo de construção de um espaço público no Brasil parece ter se generalizado. A idéia de uma esfera pública que constitui estritamente um mercado de opiniões controlado pelos atores mais poderosos da sociedade é compartilhada por autores de orientações teóricas e políticas diversas. Trata-se de visão predominante na área de comunicação social (esfera pública como simulacro, política como comércio de imagens esvaziadas de conteúdo), mas também entre cientistas políticos influenciados pelo pluralismo (Reis: espaço público como arena de disputa e afirmação de interesses sociais particulares). O recurso a este modelo também aparece em trabalhos que preconizam a transformação da legitimidade dos atores da sociedade civil em performance participativo-institucional no sentido de promover, através de mudanças das configurações institucionais, do poder relativo dos atores designados como corporativos, incluindo as associações voluntárias e movimentos sociais (participação neocorporativa).
6. Costa (2003) encara o espaço público como um lugar ambivalente da topografia social, no qual as relações de poder são reproduzidas, de um lado, e inovações sociais são legitimadas, de outro. Neste vertente, os trabalhos enfatizam o caráter público/publicista presente na idéia de esfera pública, com destaque para a emergência de novos atores sócias que buscariam a redefinição do espaço público e o espaço privado, mas que às vezes se aproximam da visão republicana, que apresenta um risco de que uma “esfera pública não estatal”, sendo garantida e patrocinada pelo Estado (Tarso Genro), se transforme em uma esfera pública paraestatal, mais uma arena institucional vulnerável à instrumentalização pelo Estado, partidos e políticos.
7. Costa (2003) também destaca os reflexos da crítica de Fraser no Brasil referenciando o trabalho de Hanchard (1995), que, ao estudar as relações raciais, insiste na necessidade de constituir uma “esfera pública negra”. O autor destaca como conseqüências da construção de esferas públicas particulares para a convivência democrática: o auto-referenciamento, a fragmentação social e a intolerância recíproca.
8. CONCEPÇÕES DE ESFERA PÚBLICA E A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA: transformações no campo dos meios de comunicação de massa, constatando um processo de construção efetiva de um espaço público no Brasil: (I) relativa porosidade da mídia para absorver e processar os temas trazidos pelos atores da sociedade civil; (II) difusão de um estilo investigativo de jornalismo; (III) preservação do espaço de afirmação da autonomia dos que produzem o material divulgado. Por outro lado, o papel dos movimentos sociais e associações voluntárias na introdução de novos temas e questões na agenda política e ampliação do espaço público brasileiro representam desenvolvimentos destes atores com uma natureza e formas de ação diferentes dos grupos corporativos. O poder políticos dos movimentos sociais e demais associações da sociedade civil é resultado do mérito normativo de suas bandeiras, de sua possibilidade de catalização da anuência e do respaldo social. Desta forma, o espaço público deve ser representado como arena que medeia os processos de articulação de consensos normativos e de reconstrução reflexiva dos valores e das disposições morais que orientam a convivência social.
9. Costa (2003) critica a visão republicana por estimular uma estatização da ação coletiva pela sua dificuldade de visualizar as diferenciações entre processos socioculturais e político-institucionais, cuja mediação é estabelecida, em parte, pelos atores da sociedade civil. Para o autor, as contribuições democratizantes das associações da sociedade civil não podem ser enxergadas unicamente a partir das instâncias institucionais, pois residem em seu “enraizamento” em esferas sociais que são, do ponto de vista institucional, pré-políticas. Nestas órbitas e na articulação que os movimentos estabelecem entre estas e as arenas institucionais que podem emergir os impulsos mais promissores para a renovação da democracia.
REFERÊNCIA:
COSTA, Sérgio. As cores de Ercília. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003
(Cap. 1).
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