quinta-feira, 29 de outubro de 2009

"Ensaio teórico sobre as relações entre estabelecidos-outsiders" (Norbert Elias), fichamento

1. Comunidade de periferia urbana, com clara divisão entre um grupo estabelecido desde longa data e um grupo mais novo de residentes, tratados pelo primeiro como outsiders, por lhes faltar o carismo grupal distintivo, que o grupo principal atribuía a si mesmo. Elias (2000) destaca que naquela pequena comunidade encontrou um tema humano universal em miniatura na medida em que podemos observar que os membros dos grupos mais poderosos que outros grupos interdependentes se pensam a si mesmos (auto-representam) como humanamente superiores.

2. Elias (2000) levanta as seguintes questões: Como se processa isso? De que modo os membros de um grupo mantém entre si a crença de que são não apenas mais poderosos, mas também seres humanos melhores do que o outro? Que meios utilizam eles para impor a crença em sua superioridade humana aos que são menos poderosos? Os moradores mais antigos recusavam-se a manter qualquer contato social com os vizinhos mais recentes, exceto o exigido por suas atividades profissionais, tratavam os recém-chegados como “os de fora”, enquanto esses pareciam aceitar, com resignação e perplexidade, a idéia de pertencerem a um grupo de menor virtude e respeitabilidade, justificado apenas em poucos casos. Nessa pequena comunidade deparava-se com o que parece ser uma constante universal em qualquer figuração de estabelecidos-outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus membros características humanas superiores; excluía todos os membros do outro grupo do contato social não profissional com seus próprios membros; e o tabu em torno desses contatos era mantido através de meios de controle social como a fofoca elogiosa (no caso dos que observavam) e a ameaça de fofocas depreciativas (contra os sujeitos de transgressão).

3. Apesar das reconhecer as limitações, Elias (2000) destaca vantagens no estudo de uma figuração universal em uma pequena comunidade pelas possibilidades (I) de explorar minuciosamente os problemas (microscopicamente); (II) de construir um modelo explicativo, em pequena escala, da figuração que se acredita ser universal (para ser testado, ampliado e revisto). Desta forma, este modelo pode funcionar como um “paradigma empírico” para compreender características comuns de configurações mais complexas, bem como razões para desenvolvimentos diferentes.

4. A única diferença entre as duas partes da comunidade estudada consistia no fato de um grupo ser composto de antigos residentes, instalados na região há duas ou três gerações, e o outro formado por recém-chegados. Novas questões são colocadas: Que é que induzia as pessoas que formavam o primeiro grupo a se colocarem como uma ordem melhor e superior de seres humanos? Que recursos de poder lhes permitiam afirmar sua superioridade e lançar um estigma sobre os outros, como pessoas de estirpe inferior?

5. Elias (2000) destaca que, neste estudo, podia expor as limitações das teorias que explicam os diferenciais de poder somente (I) em termos da posse monopolista de objetos não humanos (armas, meios de produção), (II) que desconsidere os aspectos figuracionais dos diferenciais de poder, para dever puramente a diferenças no grau de organização dos seres humanos implicados. Neste sentido, o autor destaca o papel decisivo da coesão interna e do controle comunitário na relação de forças entre um grupo e outro na medida em que os recém-chegados eram estranhos para os antigos residentes e entre si. Deste modo, os antigos residentes conseguiam reservar para as pessoas de seu tipo os cargos importantes das organizações locais. A exclusão e estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para preservação de sua identidade e afirmação de sua superioridade, mantendo os outros em seu lugar.

6. Figuração estabelecidos-outsiders: um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração diferencial permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, reforçando sua coesão e excluindo dessas posições os membros dos outros grupos. Neste sentido, o conceito de uma relação entre estabelecidos e outsiders preencheu uma lacuna que impedia de perceber a unidade estrutural comum e as variações desse tipo de relação, bem como explicá-las.

7. O grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características “ruins” de sua porção pior, de sua minoria anômica enquanto a auto-imagem do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar, mais “nômico” ou normativo, na minoria de seus “melhores” membros. Essa distorção em direções opostas faculta ao grupo estabelecido provar suas afirmações a si mesmo e aos outros. Elias (2000) procura estabelecer uma sociodinâmica da estigmatização ao entender as condições em que um grupo consegue lançar um estigma sobre outro como função de uma figuração específica que os dois grupos formavam entre si. Neste sentido, o autor destaca a tendência de se encarar o preconceito social como um categoria individual, quando acredita que só pode ser encontrada ao considerar a figuração formada pelos dois ou mais grupos implicados ou a natureza de sua interdependência. A peça central dessa figuração é um equilíbrio instável de poder e as tensões que lhe são inerentes. Por isso, um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído. Neste caso, o estigma social imposto pelo grupo social mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último, enfraquecendo-o e desarmando-o. Da mesma forma, tão logo diminuem as disparidades de força ou a desigualdade do equilíbrio de poder, os antigos grupos outsiders tendem a retaliar (contra-estigmatização).

8. Uma investigação da estrutura global da relação vigente entre os dois grupos principais requer um desprendimento ou distanciamento de ambos os grupos. O problema consiste em saber que características estruturais da comunidade em desenvolvimento ligavam os dois grupos de tal maneira que os membros de um deles sentiam-se impelidos a tratar os de outro, coletivamente, com certo desprezo. Elias (2000) identifica a diferença acentuada de coesão dos dois grupos como a expressão sociológica desse fato: um integrado, outro não.

9. Grupo de antigos residentes estabelecera um estilo de vida comum e um conjunto de normas, observaram certos padrões e se orgulhavam disso. O afluxo de recém-chegados era sentido como uma ameaça. Para o grupo nuclear da parte antiga, o sentimento de status de cada um e da inclusão na coletividade estava ligado à vida e às tradições comunitárias: para preservar isso, cerravam fileiras contra os recém-chegados, protegendo sua identidade grupal e afirmando sua superioridade. Essa situação mostra a complementaridade do valor humano superior (carisma) atribuído a si mesmo pelo grupo estabelecido e das características “ruins” (desonra grupal) que atribuía aos outsiders. Esta complementaridade é um dos aspectos significativos da relação estabelecidos-outsiders na medida em que fornece um indício da barreira emocional erguida pelos estabelecidos, que responde pela rigidez da atitude e pela perpetuação do tabu contra um contato mais estreito.

10. Elias (2000) compreende a mecânica da estigmatização a partir do papel desempenhado pela imagem que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros e de seu próprio status como membro desse grupo. Os que “estão inseridos” participam desse carisma, mas pagam um preço: a participação na superioridade de um grupo e em seu carisma grupal singular é a recompensa pela submissão às normas específicas do grupo. Trata-se de um preço pago individualmente através da sujeição de sua conduta a padrões específico de controle dos afetos (orgulho ligado à disposição). Os membros do grupo estigmatizado são tidos como não observantes destas normas e restrições, sendo vistos, coletiva e individualmente, como anômicos que põe em risco as defesas do grupo estabelecido, gerando um “medo da poluição”. O contato com outsiders ameaça o “inserido” de ter seu status rebaixado dentro do grupo estabelecido, podendo perder a consideração dos membros deste.

11. Os conceitos que os grupos estabelecidos fazem uso como meio de estigmatização podem variar conforme as características sociais e a tradição de cada grupo. A estigmatização pode surtir um efeito paralisante nos grupos de menor poder. Neste sentido, nada é mais característico do equilíbrio de poder extremamente desigual do que a impossibilidade de os grupos outisiders retaliarem com termos estigmatizantes equivalentes para se referirem ao grupo estabelecido. Um grupo de outsiders não tem como envergonhar os membros de um grupo estabelecido, pois quando começam a ser insultuosos é sinal de que a relação de forças está mudando.

12. A anomia é a censura mais freqüente: os outsiders são vistos pelo grupo estabelecido como indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros. Entretanto, os sintomas de inferioridade humana costumam ser gerados nos membros do grupo inferior pelas próprias condições de sua posição de outsiders e pela humilhação e opressão, sendo iguais no mundo inteiro: pobreza, exposição constante aos caprichos das decisões e ordens dos superiores, humilhação de ser excluído das fileiras deles, atitudes de deferência instiladas no grupo “inferior”. Costumeiramente, se os grupos estabelecidos vêem seu poder superior como um sinal de valor humano mais elevado, quando o diferencial de poder é grande e a submissão inelutável, os grupos outsiders vivenciam afetivamente sua inferioridade de poder como um sinal de inferioridade humana.

13. Além de vivenciarem os grupos outsider como desordeiros que desrespeitam leis e normas, os grupos estabelecidos que dispõem de uma grande margem de poder também consideram que os outsiders não são particularmente limpos, ou seja, sujos e quase inumanos (no caso de diferenciais de poder muito grandes e de uma opressão muito acentuada).

14. Elias (2000) destaca que adjetivos como “racial” ou “étnico” são sintomáticos de um ato ideológico de evitação, cujo emprego chama atenção para um aspecto periférico dessas relações, desviando do aspecto central, que é o fato de estarem ligados de um modo que confere a um recursos de poder muito maiores do que os do outro e permite que esse grupo barre o acesso dos membros do outro ao centro dos recursos de poder e ao contato mais estreito com seus próprios membros, relegando-os a uma posição de outsiders. Desta forma, o autor destaca que a sociodinâmica da relação é determinada por sua forma de vinculação e não por qualquer característica que os grupos tenham, independentemente dela.

15. As tensões e conflitos de grupos inerentes a essa forma de relação podem manter-se latentes (quando os diferenciais de poder são muito grandes) ou aparecer abertamente sob a forma de conflitos contínuos (quando a relação de poder se alterar em favor dos outsiders). O autor destaca que só se apreende a força irresistível desse tipo de vínculo ou o singular desamparo de pessoas ligadas entre si dessa maneira quando de discerne com clareza que estão aprisionadas num vínculo duplo, que não pode se tornar operante quando a dependência é quase inteiramente unilateral e o diferencial de poder entre estabelecidos e outsiders é muito grande. Esse vínculo opera quando os grupos outsiders são necessários de algum modo aos grupos estabelecidos, quando têm alguma função para estes.

16. Elias (2000) destaca que a superioridade de poder confere vantagens aos grupos que a possuem, seja materiais ou econômicas, que sob a influência de Marx despertaram atenção, mas não são as únicas vantagens auferidas pelo grupo estabelecido e muito poderoso em relação a um grupo outsider e de poder relativamente pequeno. As questões passam a ser: que outras vantagens incitam os grupos estabelecidos a lutar ferozmente pela manutenção de sua superioridade? Que outras privações sofrem os grupos outsiders, afora as privações econômicas? O autor destaca que a supremacia dos aspectos econômicos tem acentuação máxima quando o equilíbrio de poder entre os contendores é mais desigual. Quando os grupos outsiders têm que viver no nível de subsistência, o montante de sua receita prepondera sobre todas as suas outras necessidades. Quanto mais se colocam acima do nível de subsistência, mais a sua própria renda serve de meio para atender a outras aspirações humanas que são a satisfação das necessidades animais ou materiais mais elementares, e mais agudamente os grupos nessa situação tendem a sentir a inferioridade social (do poder e do status de que sofrem). Nesta situação, a luta entre estabelecidos e outsiders deixa de ser uma simples luta para aplacar a fome e obter meios de subsistência física e se transforma numa luta para satisfazer também outras aspirações humanas. O autor destaca que a natureza dessas aspirações ainda é obscurecida pelos efeitos da grande descoberta de Marx, ou seja, pela tendência a ver nela o ponto de chegada das indagações sobre as sociedades humanas, quando remete mais à manifestação de um começo. Ao tentar explicar e entender a dinâmica das relações entre estabelecidos e outsiders, Elias (2000) destaca que elas desempenham um papel muito real nos choques entre os grupos humanos interligados desta forma, pois a principal privação sofrida pelo grupo outsider não é a privação de alimento, mas de valor, de amor próprio e de auto-respeito.

17. A estigmatização é um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders que se associa a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido, que reflete e justifica a aversão (preconceito), transformada em um estigma material (coisificação). Desta forma, surge uma coisa objetiva, implantada nos outsiders pela natureza ou pelos deuses, pela qual o grupo estigmatizador é eximido da responsabilidade. Neste caso, se enquadram a referência à cor diferente da pele e outras características inatas ou biológicas.

18. A abordagem de umas figuração estabelecidos-outsiders como uma relação estática não passa de uma etapa preparatória na medida em que os problemas só se tornam evidentes ao considerarmos que o equilíbrio de poder entre esses grupos é mutável, compondo um modelo que mostra os problemas humanos inerentes a essas mudanças. O autor destaca que ainda é obscura a polifonia do movimento de ascensão e declínio ao longo do tempo, bem como o rumo dessas mudanças no longo prazo. Por isso, se surpreende com a inexistência de uma teoria geral das mudanças nos diferenciais de poder e dos problemas humanos associados a elas num período em que se multiplicam os movimentos de antigos grupos de outsiders rumo a posições de poder, com o eixo central de tensão no nível global situando-se entre unidades estatais que nunca foram tão amplas. O autor destaca que a preocupação com os problemas existentes no curto prazo e a concepção de desenvolvimento das sociedades no longo prazo como prelúdio não estruturado do presente continuam a bloquear a compreensão das longas seqüências de desenvolvimento das sociedades e de seu caráter direcional. A herança do antigo Iluminismo, com seu ideal da racionalidade, continua a barras o acesso à estrutura e à dinâmica das figurações estabelecidos-outsiders. Um reflexo disso são as fantasias grupais, proto-históricas, que continuam a escapar pelas malhas de nossa rede conceitual. Isso também surpreende, pois a construção de fanstasias enaltecedoras e depreciativas desempenha um papel óbvio e vital na condução das questões humanas em todos os níveis das relações de poder pelo seu caráter diacrônico e de desenvolvimento.

19. As tensões e conflitos entre estabelecidos e outsiders são lutas para modificar o equilíbrio de poder (desde cabos-de-guerra silenciosos até lutas francas pela mudança do quadro institucional). Enquanto permanentemente intimidados, os grupos outsiders exercem pressões tácitas ou agem abertamente no sentido de reduzir os diferencias de poder responsáveis por sua situação inferior, ao passo que os grupos estabelecidos fazem a mesma coisa em prol da preservação ou aumento desses diferenciais. Evidenciado o problema da distribuição das chances de poder, surge um problema subjacente, que costuma passar desapercebido: se os grupos ligados entre si sob a forma de uma configuração de estabelecidos-outsiders são compostos de seres humanos individuais, o problema é saber como e por que os indivíduos percebem uns aos outros como pertencentes a um mesmo grupo e se incluem mutuamente dentro das fronteiras grupais que estabelecem ao dizer “nós”, enquanto, ao mesmo tempo, excluem outros seres humanos a quem percebem como pertencentes a outro grupo e a quem se referem coletivamente como “eles”. Neste sentido, Elias (2000) evidencia o papel decisivo que a dimensão temporal ou o desenvolvimento de um grupo com um passado comum desempenha como determinante de sua estrutura e suas características. O grupo de estabelecidos tinha atravessado um processo grupal (do passado para o futuro através do presente) que lhes dera um estoque de lembranças, apegos e aversões comuns, uma dimensão grupal diacrônica fundamental para compreender a lógica e o sentido do “nós” que eles usavam para se referir umas às outras. Eles possuíam uma coesão, tinha sua própria hierarquia interna e sua ordem de precedência, que só eram conhecidos no nível da prática social (nível baixo de abstração) e não no nível alto de abstração de termos como “posição social das famílias” ou “ordem hierárquica interna de um grupo”. O grupo de estabelecidos se ligava por laços de intimidade emocional que incluíam antigas amizades e velhas aversões, ou seja, vínculos emocionais de um tipo desenvolvido entre seres humanos que vivenciam juntos um processo grupal de certa duração que só pode ser explicado em termos de seus sentimentos imediatos, sua sensação de pertencer a uma parte superior da vizinhança, com atividades de lazer, instituições religiosas e uma vida política local que eram apreciadas por todos, e não queriam misturar-se em sua vida particular com pessoas de áreas inferiores da localidade, a quem viam como menos respeitáveis e menos cumpridoras das normas do que eles.

20. A opinião interna de qualquer grupo com alto grau de coesão tem uma profunda influência em seus membros, como força reguladora de seus sentimentos e sua conduta. Em um grupo estabelecido, com reserva monopolística para seus membros do acesso recompensador aos instrumentos de poder e carisma coletivo, o efeito é pronunciado devido ao fato do diferencial de poder de um membro diminuir quando seu comportamento e seus sentimentos contrariam a opinião grupal, fazendo-a voltar contra ele. O rebaixamento da posição de um membro dentro da ordem hierárquica interna do grupo reduz sua capacidade de se manter firme na competição interna pelo poder e pelo status. Desta forma, a aprovação da opinião grupal requer a obediência às normas grupais, sendo a punição a perda de poder, acompanhada do rebaixamento de status.

21. O impacto da opinião interna do grupo em cada um de seus membros tem a função e o caráter de consciência da própria pessoa na medida em que a auto-imagem e a auto-estima de um indivíduo estão ligadas ao que os outros membros do grupo pensam dele. Apesar de variável e elástica, a ligação entre a auto-regulação de sua conduta e seus sentimentos com a opinião normativa interna deste ou daquele de seu “nós” só se rompe com a perda da sanidade mental. Neste sentido, a autonomia relativa de cada pessoa, o grau em que sua conduta e seus sentimentos, seu auto-respeito e sua consciência relacionam-se funcionalmente com a opinião interna dos grupos a que ela se refere como “nós” está sujeito a grandes variações.

22. Pode se observar uma ordem estabelecida central que preservava a virtude e a respeitabilidade especiais contra uma ordem estabelecida de nível inferior, e podia ser mantida através da participação gratificante no valor humano superior do grupo e da correspondente acentuação do amor-próprio e auto-respeito dos indivíduos, reforçados pela aprovação contínua da opinião interna do grupo e, ao mesmo tempo, pelas restrições impostas por cada membro a si mesmo. O autocontrole individual e a opinião grupal estão articulados entre si. Se Freud formulou a concepção das funções de autocontrole dos seres humanos como autonomia absoluta dos indivíduos, Elias (2000) mostra que as camadas da estrutura de personalidade ligadas mais direta e estreitamente aos processos grupais de que as pessoas participam, como a imagem do nós e o ideal de nós, ficaram fora do horizonte de Freud, cujo conceito de homem continuou a ser de um indivíduo isolado na medida em que as pessoas pareciam estruturadas e as sociedades formadas por pessoas interdependentes afiguravam-se um pano de fundo, uma “realidade” não-estruturada, cuja dinâmica não exercia nenhuma influência no ser humano individual. Para Elias (2000), a imagem do nós e o ideal de nós de uma pessoa fazem parte de sua auto-imagem e seu ideal do eu tanto quanto a imagem e o ideal do eu da pessoa singular a quem ela se refere como “eu”.

23. Elias (2000) destaca, em nossa época, a imagem e o ideal de nós de nações anteriormente poderosas, cuja superioridade em relação a outras sofreu um declínio: seus membros podem sofrer durante séculos porque o ideal do nós carismático, coletivo, moldado numa auto-imagem idealizada dos tempos de grandeza, permanece por muitas gerações como um modelo ao qual eles crêem dever conformar-se sem ter a possibilidade de fazê-lo. Se por algum tempo, o escudo fantasioso de seu carisma imaginário como grupo estabelecido e dominante pode dar a uma nação em declínio forças para seguir em frente, a discrepância entre a situação real e a situação imaginária do grupo pode acarretar uma avaliação errônea dos instrumentos de poder de que ele dispõe e sugerir uma estratégia coletiva de busca de uma imagem fantasiosa da própria grandeza, que é capaz de levar à autodestruição e à destruição de outros grupos interdependentes.

24. Conceitos como carisma grupal e ideal do nós fazem parte de uma teoria da figuração estabelecidos-outsiders e contribuem para uma avaliação mais adequada dessas relações grupais. Elias (2000) destaca que quanto maior a consciência da equação emotiva entre grande poder e grande valor humano, maior a probabilidade de uma avaliação crítica e de uma mudança. Por isso, os padrões tradicionais de continência e as normas de conduta que distinguem um antigo grupo superior tendem a se fragilizar ou se desarticular quando vacila o amor-próprio recompensador, a crença no carisma especial do grupo antes poderoso, em função do declínio de sua grande superioridade de poder. Esse processo leva tempo. A rejeição e a estigmatização dos outsiders constituem seu contra-ataque, com a circulação de fofocas depreciativas e a auto-imagem maculada dos outsiders como traços constituintes desse tipo de figuração.

25. O autor destaca que a exclusão dos processos grupais de longo prazo tende a distorcer o problema, dando como exemplo a discussão sobre os problemas “raciais”, quando se afirma que as pessoas percebem as outras como pertencentes a outro grupo porque a cor da sua pele é diferente, quando seria mais pertinente indagar como foi que surgiu no mundo o hábito de perceber as pessoas com outra cor de pele como pertencentes a um grupo diferente. Para Elias (2000), foi em decorrência de um longo processo de interpenetração que grupos com diferentes características físicas tornaram-se interdependentes, ocupando posições com grandes diferencias de poder. Por isso, a necessidade de reconstituir o caráter temporal dos grupos e suas relações com processos na seqüência temporal para entender as fronteiras que as pessoas traçam ao estabelecer uma distinção entre grupos a que se referem como “nós” e grupos a que se referem como “eles”.

26. No caso em pauta, os estabelecidos vêem os outsiders como uma ameaça a sua posição, sua virtude e graça especiais e, por isso, revidaram contundentemente ao se sentirem expostos a um ataque tríplice contra o monopólio das fontes de poder, o carisma coletivo e suas normas grupais. Cerraram suas fileiras contra os recém-chegados, excluindo-os e humilhando-os. Os outsiders dificilmente teriam a intenção de agredir os antigos residentes, mas foram colocados em uma situação infausta e, muitas vezes, humilhante.

REFERÊNCIA:
ELIAS, Norbert. Estabelecidos e outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000 (Introdução: pp.19-50)

3 comentários:

Carls disse...

muito bom! me ajudou muito num trabalho de Sociologia Jurídica!

Ana Júlia disse...

muito bom! me ajudou muito, obrigada!

Juliana disse...

Muito Obrigada! Ótimo fichamento, bem esclarecedor!