sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Sociedade pós-tradicional: destruição da natureza e destradicionalização *

O final do século XX representa um período de transição para a emergência de uma sociedade pós-tradicional que seria uma extensão das instituições modernas e dos processos de mudança intencional, em um contexto de radicalização da modernidade. Com isso, Giddens (1997) destaca que a escolha possível passa a ser a de decidir como ser e agir, de forma que as escolhas ativas levariam à autonomia.

Uma sociedade pós-tradicional caracteriza-se por uma natureza transfigurada pela intervenção humana, transformada em socialização da natureza por mecanismos de desincorporificação derivados de uma intensificação da especialização descentralizada. Outra característica é a perda de autoridade da ciência, com conseqüências libertadoras e perturbadoras na medida em que a compulsividade torna-se uma confiança congelada, ou seja, um compromisso sem objeto e uma simples urgência repetitiva.

Desta forma, a especialização substitui a tradição e a reflexividade social da modernidade subverte a razão. Giddens (1991, p. 40) enxerga um “mundo que é inteiramente constituído através de conhecimento reflexivamente aplicado, mas onde, ao mesmo tempo, não podemos nunca estar seguros de que qualquer elemento dado deste conhecimento não será revisado”.

Giddens (1996) observa uma transformação da intimidade associada à reflexividade da modernidade, entendida como uma relação dialética e complexa entre tendências globalizantes e eventos localizados na esfera cotidiana, que implica na construção do sujeito como um projeto reflexivo, pelo qual os indivíduos encontram suas identidades entre as estratégias e as opções dos sistemas abstratos.

Em contextos personalizados, a auto-realização fundamentada em confiança básica só se estabelece com uma abertura do eu para o outro. Deste modo, a formação de laços pessoais e eróticos em relacionamentos passa a ser orientada por uma reciprocidade entre a auto-revelação e a preocupação com auto-satisfação, que é parte de uma apropriação positiva da invasão da vida cotidiana por influências globalizadas.

O autor entende que as condições atuais da modernidade provocam ativismo — ao invés de privatismo — ao considerar a reflexividade e as oportunidades abertas para a organização coletiva nos Estados-Nação modernos em uma ordem globalizante.

"Imprevisibilidade, incerteza artificial, fragmentação: estas formam apenas um lado da moeda da ordem globalizante. No outro lado, estão os valores compartilhados que advêm de uma situação de interdependência global, organizada pela aceitação cosmopolita da diferença. Um mundo sem outros é um mundo no qual – por uma questão de princípio – todos nós partilhamos de interesses comuns, da mesma forma que defrontamos com riscos comuns (...) Uma ética de uma sociedade pós-tradicional globalizante implica o reconhecimento da santidade da vida humana e o direito universal à felicidade e à auto-realização – ligado à obrigação de promover a solidariedade cosmopolita e a uma postura de respeito perante ações e seres não-humanos, atuais e futuros. Longe de vivermos o desaparecimento de valores universais, talvez esta seja a primeira vez na história da humanidade em que esses valores apresentam um verdadeiro ponto de apoio" (GIDDENS, 1996, p. 286).

Nesta perspectiva, não existem soluções naturalizadas para os problemas sociais, apesar de uma tendência de naturalização da sociedade, pois a interdependência global e a socialização da natureza devem ser cada vez mais consideradas na resolução dos problemas sociais. Giddens (1996) percebe o signo positivo de um caráter distópico dos riscos de grandes conseqüências na medida em que complicações reflexivas apenas confirmam que as dificuldades de uma civilização científico-tecnológica não podem mais se resolver pela introdução de mais ciência e tecnologia.

Apesar disso, os debates ambientais contemporâneos se baseiam em uma lógica de natureza controlada, denotando um potencial revelador dos problemas ecológicos sobre a confiança da civilização moderna no que se refere ao controle e ao progresso econômico enquanto formas de repressão dos dilemas existenciais básicos da vida.

Diferentemente, Giddens (1996) interpreta as questões ecológicas pelas lentes da modernização reflexiva em um contexto de globalização, destradicionalização, destruição da natureza, avanço da ciência e crescimento econômico que coloca problemas morais, antes ocultos, na naturalidade da natureza e que hoje afloram em riscos associados à incerteza artificial, comprometendo uma orientação para o controle da modernidade simples.

Assim, a “política ecológica é uma política de perdas – a perda da natureza e da tradição –, mas também é uma política de recuperação” (GIDDENS, 1996, p. 257), pois o autor acredita que, individualmente, uma humanidade coletiva pode remoralizar as vidas por meio de uma aceitação positiva da incerteza artificial. Como expressão material dos limites da modernidade, a política ambiental torna-se fundamental para a renovação política, pois a restauração do ambiente danificado não pode mais ser entendida como um fim em si mesmo.

Considerando a situação do indivíduo enquanto sujeito e corpo de uma natureza que esmorece, Giddens (1996) destaca a exigência de construção contínua do sujeito em uma sociedade pós-tradicional. Neste sentido, as escolhas alimentares, por exemplo, objeto deste estudo, passam a se relacionar com a organização de um futuro pessoal com base em um conhecimento médico e dietético reflexivamente disponível. Quando o sujeito e o corpo deixam de ser “natureza”, os indivíduos precisam negociar suas condições de vida no contexto de novas formas de informação disponíveis.

Por fim, cabe destacar que este autor contribui para uma análise da esfera do consumo wm relação com a questão ambiental contemporânea por meio de suas considerações sobre a construção contínua do sujeito em uma sociedade pós-tradicional e sobre o papel da política ambiental para a renovação política. Desta forma, o consumo de alimentos orgânicos como forma de ação política torna-se um objeto que permite entender a possibilidade de ativismo apontada por Giddens (1996) no âmbito da vida cotidiana dos Estados-Nação em um contexto de reflexividade de uma ordem global.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GIDDENS, A. Para além da esquerda e da direita: o futuro da política radical. São Paulo: UNESP, 1996.

___. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, A. et. alii. Modernização reflexivel: politica, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997.

* Este texto é parte integrante de: CASTAÑEDA, Marcelo. Ambientalização e politização da vida cotidiana: uma etnografia do engajamento em práticas de consumo de alimentos orgânicos. Projeto de mestrado, Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, qualificado em maio, 2009.

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