sábado, 5 de dezembro de 2009

Esfera pública, sociedade civil e politização da vida cotidiana (e do consumo)*

A associação entre o esgotamento das energias utópicas da sociedade do trabalho e a deterioração das relações de cooperação com base no trabalho abstrato é marcante na análise de Habermas (1987) sobre a crise do Estado social nas sociedades contemporâneas.

Com o deslocamento da utopia, do conceito de trabalho para o de comunicação, Habermas (1987) observa que uma consciência de atualidade funde continuamente os pensamentos históricos e utópicos e estimula a autoconfiança da modernidade ao desvendar algumas das ilusões sobre seu auto-entendimento, tais como (1) a simbiose entre o controle racional da natureza e a mobilização das energias sociais em projetos de vida racional; e (2) os projetos de totalidade concreta das possibilidades futuras de vida. Na medida em que, para o autor, o conteúdo utópico se reduz a uma formalidade intersubjetiva intacta, as condições de realização das possibilidades concretas de uma vida melhor e menos ameaçada se apresentam, apenas normativamente, de acordo com as necessidades, as idéias e as iniciativas de cada um dos próprios participantes.

Ao considerar que as sociedades modernas possuem recursos de poder, de dinheiro e de solidariedade para satisfazer suas necessidades no exercício do governo, o autor compreende a possibilidade de um novo equilíbrio através de um modelo constituído por estes três recursos em arenas sobrepostas.

Para Habermas (1987), estas arenas se caracterizam da seguinte forma: (1) na arena do poder, as elites políticas concretizam suas resoluções no aparelho estatal; (2) na do dinheiro, os grupos anônimos e atores coletivos se influenciam, formam coalizões, controlam o acesso aos meios de produção e de comunicação, além de delimitar um campo para resolver as questões políticas; e (3) na da sociedade civil organizada, baseada na solidariedade, os fluxos de comunicação determinam a forma de cultura política, rivalizando em torno da hegemonia cultural com o apoio de diferentes definições da realidade.

No modelo de Habermas (1987), a sociedade civil encontra-se na arena da solidariedade, sendo caracterizada por lutas, quase sempre latentes e desenvolvidas nos microdomínios da comunicação cotidiana, em torno da definição da integridade e da autonomia dos estilos de vida. O autor identifica a solidariedade como meio para a formação política de uma vontade que influencia na demarcação de fronteiras e no intercâmbio entre as áreas da vida comunicativamente estruturadas da sociedade civil, de um lado, e do Estado e da Economia, de outro.

Esta perspectiva permite que Habermas (1987) defenda a continuidade do Estado social por meio de uma combinação entre poder e autolimitação, mediada por esferas públicas autônomas, de uma forma que possibilite tornar os mecanismos de autorregulação do Estado e da economia sensíveis aos resultados orientados-a-fins do que seria, para ele, uma formação radicalmente democrática da vontade coletiva.

Neste sentido, Canclini (1995) parte das articulações e mudanças recentes da sociedade civil para explicar a queda da participação, o desinteresse das maiorias pelas formas tradicionais de representação e o reordenamento do público e do privado. Para ele, a esfera pública é reconstituída por meio da tensão entre a subordinação ao Estado e a dissolução na sociedade civil, pois consiste em um espaço heterodoxo de fortalecimento dos significados e tradições — papel do Estado — ao mesmo tempo em que novas forças podem associar diferentes significados aos mesmos conceitos — papel da sociedade civil.

O principal desafio passa pela revitalização do Estado como representante do interesse público, ou seja, árbitro e garantidor de que as necessidades coletivas de informação, recreação e inovação não sejam subordinadas à rentabilidade comercial (CANCLINI, 1995). O autor propõe uma redefinição internacional do público ao entender que a esfera pública não se esgota no campo das interações políticas, nem no âmbito nacional, mas abarca as atividades de um conjunto de atores nacionais e internacionais capazes de influenciar na organização do sentido coletivo e nas bases de desempenho dos cidadãos.

Torna-se interessante perceber que, mesmo apontando a convergência dos vários interesses e estratégias dos segmentos da sociedade civil em acusar o Estado pelas mazelas sociais, supondo que a situação melhoraria se este cedesse iniciativas e poder àqueles segmentos, Canclini (1995, p. 29-30) destaca a reestruturação dos vínculos entre consumo e cidadania como uma forma de explorar saídas para a crise da participação, das manifestações públicas e do voto popular:

"A sociedade civil, nova fonte de certezas neste tempo de incertezas, parece outro conceito totalizador destinado a negar o heterogêneo e desintegrado conjunto de vozes que circulam pelas nações. (...) A aproximação entre a cidadania, a comunicação de massas e o consumo tem, entre outros fins, reconhecer estes novos cenários de constituição do público e mostrar que para viver em sociedades democráticas é indispensável reconhecer que o mercado de opiniões cidadãs inclui tanta variedade e dissonância como os mercados de roupa e entretenimento".

Entretanto, Canclini (1995) levanta dúvidas sobre a efetividade da sociedade civil, pelo fato de os partidos, sindicatos e movimentos sociais preferirem, cada vez mais, a negociação ao enfrentamento e, ainda, soluções setoriais e individuais à democratização política e redistribuição dos bens materiais e simbólicos. Para o autor, as alianças com forças corruptas, como o narcotráfico e as máfias, também contribuem para o fracasso dos movimentos populares e a aceitação resignada da exploração primitiva nos mercados informais.

O autor destaca que a história recente da América Latina parece apresentar um desejo de comunidade que se deposita cada vez menos em entidades macrossociais, como a nação ou as classes, se dirigindo a grupos religiosos e étnicos, conglomerados desportivos, solidariedades geracionais e interesses midiáticos, entre outros.

Uma “característica comum destas ‘comunidades’ atomizadas é que se concentram em torno de consumos simbólicos mais que em relação aos processos produtivos” (CANCLINI, 1995, p. 196). Com isso, as sociedades civis são cada vez menos comunidades nacionais, unidades territoriais, lingüísticas e políticas, e, por outro lado, se tornam, cada vez mais, comunidades hermenêuticas de consumidores, ou seja, um conjunto de pessoas que compartilham gostos e acordos de leitura de certos bens gastronômicos, esportivos e musicais, entre outros, que fornecem identidades compartilhadas.

Da mesma forma que as conseqüências de uma crescente participação através do consumo sobre a cidadania não são generalizáveis, as críticas apocalípticas ao consumismo que assinalam uma tendência para a organização individualista dos consumos, que aliena os cidadãos das suas condições comuns de desigualdade e da solidariedade coletiva, também não encontram eco. Para Canclini (1995, p. 196), “a expansão das comunicações e do consumo geram associações de consumidores e lutas sociais, ainda marginais, mas melhor informados sobre as condições nacionais e internacionais”.

Neste sentido, a expansão das Sociedades de Consumo apresenta uma ambigüidade entre a dissolução, morte ou declínio da política e a emergência de uma nova cultura política (PORTILHO, 2005). Esta autora mostra, por exemplo, que o deslocamento da questão ambiental para a esfera do consumo tem sido analisado de duas formas diferentes: de um lado, a despolitização ou uma redução do cidadão à condição de consumidor , de outro, a politização ou uma possibilidade de retorno do consumidor à esfera da cidadania.

Desta forma, de um lado, a autora entende o deslocamento como fortalecimento dos mecanismos de desintegração social e declínio da dimensão política e do espaço público, reduzindo os vínculos de solidariedade e participação na esfera pública, bem como as bases de sustentação física do planeta. Trata-se de um mecanismo de despolitização da questão ambiental que transfere a responsabilidade do Estado e do setor produtivo para a esfera privada.

De outro, Portilho (2005) compreende uma oportunidade de politização das práticas de consumo, entendido como extensão de novas práticas políticas que surgem no seio da radicalização da modernidade. Logo, o deslocamento pode ser interpretado também como possibilidade agregadora/emancipatória, fortalecendo o interesse e a participação individual e coletiva nos dilemas e decisões políticas cotidianos ao trazer a questão ambiental para a agenda privada.

No caso da sociedade civil brasileira, vale destacar a análise de Costa (2002), que a entende como um contexto de ação para um amplo conjunto de atores que não querem ser assimilados ao aparelho de Estado ou às estruturas partidárias. As associações da sociedade civil constituem uma força propulsora de transformações permanentes da estrutura institucional, atenuando as inevitáveis tensões entre a lei e a ordem.

Desta forma, na esfera pública brasileira, o termo sociedade civil remete “ao contexto na topografia social, marcado por relações de solidariedade e cooperação e não se restringe assim a um somatório de organizações, trata-se de uma teia de interações” na qual as organizações da sociedade civil consistem nos “nódulos nesse contexto de interações que se distinguem dos grupos de interesse que atuam na esfera política e econômica” (COSTA, 2002, p. 62). O autor observa um condicionamento mútuo entre a sociedade civil e o espaço público, onde a construção e a consolidação da sociedade civil dependem da vigência de direitos civis básicos e da existência de um espaço público minimamente poroso.

Para Costa (2002, p. 63), esta condição se relaciona com a vitalidade e a possibilidade de influência da sociedade civil no Brasil, especialmente porque “este espaço representa a arena privilegiada de atuação política dos atores da sociedade civil, constituindo, ainda, a arena de difusão dos conteúdos simbólicos e das visões de mundo diferenciadas que alimentam as identidades de tais atores. Assim, sociedade civil e espaço público se condicionam mutuamente”.

Neste ponto, a análise de Hirschman (1983) sobre os ciclos de comportamento coletivo configura um aporte teórico interessante para entender a dinâmica que este autor propõe para caracterizar os movimentos coletivos entre as esferas pública e privada, bem como iniciar uma espécie de fundação dos alicerces da ponte entre consumo e cidadania, que será abordada adiante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CANCLINI, N. G. Consumidores y ciudadanos - conflictos multiculturales de la globalización. México: Editorial Grijalbo, 1995.
COSTA, S. As cores de Ercília — esfera pública, democracia, configurações pós-nacionais. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002.
HABERMAS, J. A nova intransparência – a crise do Estado de Bem-Estar Social e o esgotamento das energias utópicas. In: Novos Estudos CEBRAP. n.18, set./1987.
HIRSCHMAN, A. De consumidor a cidadão: atividades privadas e participação na vida pública. São Paulo, Brasiliense, 1983.
PORTILHO, F. Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania. São Paulo, Ed. Cortez, 2005.

* Este texto é parte integrante de: CASTAÑEDA, Marcelo. Ambientalização e politização da vida cotidiana: uma etnografia do engajamento em práticas de consumo de alimentos orgânicos. Projeto de mestrado, Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, qualificado em maio, 2009.

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