sexta-feira, 25 de março de 2011

A ENTREVISTA EM PROFUNDIDADE

  1. Introdução:

  • Termo empregado pela primeira vez em 1869, em língua inglesa (interview), existente enquanto verbo (“ter um encontro pessoal”), desde 1548, com origem etimológica francesa (entrevue), com raízes nos termos latinos inter (“entre ver”) e videre (“ver mutuamente”), “ter um encontro cara a cara”.
  • Nas Ciências Sociais, uma forma especial de encontro: conversação com finalidade de coletar informações para uma pesquisa. Segundo Fideli e Marradi, é a técnica mais utilizada, com estimativas de 90% dos estudos empíricos se valendo de alguma forma delas.
  • Essas estimativas não são exageradas: análise dos resumos, dos métodos e técnicas utilizadas nas pesquisas mostram que 43% dos 117 mil trabalhos da Sociological Abstracts e 43% das enquetes e sondagens utilizam entrevistas, somam 86% dos estudos empíricos. Fora as observações participantes (3,9%) e as experiências (9,7%). Algum uso, e não uso exclusivo de entrevistas. Na observação de campo da tradição antropológica é vista como complemento. Na sociologia e outras ciências sociais, ocupam lugar central.
  • Como forma de conversação, a vida cotidiana e os processos de socialização podem constituir uma base para caracterização preliminar e aprendizado da entrevista (Valles e Alonso). A troca de informações e as competências para realizá-las, adquiridas com a socialização, através da linguagem e da fala, seguida por um conjunto de saberes que tornam possíveis tais interações verbais SÃO cruciais também na prática da entrevista de pesquisa social.
  • Existem, também na vida cotidiana, trocas mais formalizadas que podem ser definidas como entrevistas profissionais (consulta médica, entrevista psicoterápica, seleção de pessoal). A entrevista de pesquisa social é uma forma especial de conversação profissional que se diferencia das demais pelo seu objetivo primário de conhecer as atitudes e condutas do entrevistado. Essa finalidade cognitiva lhe confere um caráter acadêmico-científico.
  • Entrevista em profundidade (Alonso): forma especial de conversação entre duas pessoas (também existem formas de entrevista grupal), dirigida e registrada pelo pesquisador para favorecer a produção de um discurso contínuo e linear de argumentação do entrevistado sobre um tema de interesse definido por uma pesquisa.

  1. Tipos de entrevista:

  • Nas Ciências Sociais, existem diferentes tipos de entrevista e diferentes formas de classificá-las. Fideli e Marradi propõe uma tipologia baseada em dois critérios:
a)    a presença, ou não, de um contato visual direto entre entrevistador e entrevistado;
b)    o grau de liberdade concedido aos atores em situação de entrevista, seja para perguntar ou para responder (o mais utilizado na classificação da entrevista).
·         Burgess: afirma que a menor estruturação se dá nas conversas espontâneas que surgem como complemento da observação de campo. No outro extremo, estão as entrevistas estruturadas das enquetes e sondagens, que aplicam de modo uniforme um questionário fechado que contém as perguntas a realizar, numa dada ordem, e todas, ou quase todas, as opções possíveis de resposta.
·         Pode-se pensar um continuum entre esses dois pólos. Para simplificar (tabela, pág. 217), os autores apresentam uma tipologia em que o grau de espontaneidade da interação verbal (diretamente relacionado com o nível de estruturação prévia de perguntas e respostas) se limita a três pontos (baixo, médio e alto), dando lugar a formas estruturadas, semiestruturadas e não estruturadas de entrevista. Por outro lado, o critério do tipo de contato entrevistador-entrevistado limita-se a relação pessoal (face a face), contato telefônico e a interação virtual.
·         Na tabela, estão hachuradas as formas de entrevista que podem ser consideradas “em profundidade”. Como as versões telefônicas e virtuais encontram-se menos difundidas, os autores se concentraram nas entrevistas face a face. As formas estruturadas foram tratadas no capítulo anterior. Até agora se supôs uma relação entre um entrevistador e um entrevistado, apesar de existirem formas de entrevista grupal, como o grupo focal, que foi tratada no capítulo seguinte do livro.
·         Não existe na metodologia das Ciências Sociais uma terminologia única para entrevistas, utilizando-se diferentes expressões para o que os autores chamam de “entrevista em profundidade”. Especialmente no caso das menos estruturadas, se fala com freqüência de entrevista aberta, não dirigida, não estruturada, intensiva, qualitativa, hermenêutica. No caso de entrevistas não estruturadas, Combessie recorre à expressão “entrevista centrada”, enquanto Merton e Kendall propõem entrevista focalizada (um tipo semi-estruturado mediante recebimento pelos entrevistados de um estímulo específico – assistir um filme, ler um livro - ou participação em uma situação social cuja experiência subjetiva era objeto da entrevista).

  1. Caracterização da entrevista em profundidade:

  • Rosenblum: estrutura paradoxal de uma interação explicitamente instrumental e muito circunscrita no tempo - entre pessoas que são relativamente estranhas – exigindo a intimidade e impessoalidade, profissionalismo em um marco de sociabilidade.
  • Alonso: se trata fundamentalmente de um processo comunicativo pelo qual o pesquisador extrai uma informação de uma pessoa. Mas não qualquer tipo de informação, sim aquela que está contida na biografia do entrevistado, aquela que se refere ao conjunto de representações associadas a acontecimentos vividos pelo entrevistado. Nesse sentido, a informação que interessa ao investigador foi experimentada e interpretada pelo entrevistado, parte do seu mundo da vida que agora passa a ocupar o centro da reflexão, sendo problematizado e narrado.
  • Guber: a entrevista é um processo que se põe em jogo uma relação social entre dois atores, o entrevistador e o entrevistado, com muitos sentidos assimétricos, onde o entrevistador deve ser capaz de refletir sobre seu papel, suas escolhas e a direção e o sentido de sua pesquisa.
  • Montesperelli: o entrevistador deve ter uma persistente atitude de abertura e estar disposto a encontrar aquilo que não esperava, movendo-se constantemente entre a observação e a conceitualização.
  • Papel estratégico do entrevistador: 1) não direcionar as respostas; 2) assumir que o entrevistado é o verdadeiro conhecedor do tema da entrevista e que este consegue explicitar seu próprio conhecimento; 3) limitar-se a estimular a fala do entrevistado através da conversação. Não é tão simples: deve ser consciente dos problemas implicados na conversação e deve comunicar com naturalidade e sensibilidade. Sua função principal é escutar.
  • Entrevista em profundidade se caracteriza pelo alto grau de subjetividade (principal traço e maior limitação).
  • Alonso: hipersubjetividade >> entrevistado é um ser que relata histórias mediadas pela sua memória e interpretação pessoal: informação não deve ser apreciada como verdadeira ou falsa, mas como produto de um indivíduo em sociedade, cujos relatos devem ser contextualizados e contrastados.
  • Alonso: não se expressa simplesmente uma sucessão de acontecimentos vividos sem a verbalização de uma apropriação individual da vida coletiva; não se trata de registrar eventos ou datas, mas um jogo de estratégias comunicativas a partir da qual se registra um “dizer sobre o fazer”.
  • A relevância do resultado desse jogo comunicativo depende das capacidades, perspicácia e personalidade do entrevistador.
  • A viabilidade do jogo se baseia no estabelecimento de um contrato comunicativo que envolve um conjunto de SABERES IMPLÍCITOS (códigos lingüísticos, culturais e regras sociais que fazem possível a comunicação interpessoal em um dado contexto) E EXPLÍCITOS (tema do objeto de conversação e os fins da investigação: quem? Para quem? Por que?) compartilhados pelo entrevistador e pelo entrevistado, que tornam possível o funcionamento da entrevista.
  • A entrevista se funda numa interação verbal e requer uma abertura à comunicação e a aceitação de suas regras.

  1. Usos da entrevista nas Ciências Sociais: vantagens e limitações:

  • Usada, em geral, quando se deseja saber sobre a perspectiva dos atores, conhecer como eles interpretam suas experiências nos seus próprios termos.
  • Montesperelli: destaca virtudes para investigar o mundo da vida cotidiana.
  • Alonso: aplicável quando o objetivo é reconstruir ações passadas; estudar representações sociais personalizadas; analisar relações entre o conteúdo psicológico pessoal e a conduta social; ou explorar campos semânticos, discursos arquétipos de grupos e coletividades.
  • Valles: sistematização dialética das vantagens e limitações.

Vantagens:
1) permite obter de maneira flexível uma informação rica e profunda, nas próprias palavras dos atores;
2) proporciona a oportunidade de clarificação de uma forma mais dinâmica e espontânea que as entrevistas estruturadas de uma enquete;
3) nas fases iniciais de um estudo: realizar as primeiras aproximações com o tema;
4) nas fases finais: enriquecer os resultados de indagações quantitativas ou qualitativas, através de contraponto ou compreensão mais aprofundada das questões;
5) comparada com a observação participante, a entrevista tem a capacidade de permitir acesso a informações difíceis de conhecer sem a mediação do entrevistador;
6) possibilidade de conhecer, pelos relatos dos atores, situações que não são diretamente observáveis, entre elas o passado: recentemente, uso para estudo do passado próximo e formas de apropriação individual e coletiva (memória);
7) maior intimidade que nas entrevistas grupais.

Limitações:
1) em relação à enquête, desvantagem em termos de tempo;
2) menor capacidade de captar fenômenos com grande dispersão territorial e/ou tipológica,
3) menor capacidade de generalizar os resultados;
4) Maior complexidade do registro, processamento e análise;
5) problemas potenciais de reatividade, confiabilidade e validade;
6) comparada com a observação participante, tem como restrição a impossibilidade de observar os fenômenos no seu ambiente natural: validade ecológica (Cicourel).

  • Apesar da utilidade para acessar o universo das significações dos atores (sistemas de representações, crenças, normas, valores, noções), reconhece-se que a efetiva realização das vantagens da entrevista e a minimização de suas desvantagens está condicionada pela capacidade de empatia do entrevistador e sua habilidade para criar um clima que favoreça a comunicação. Nisso influenciam as características pessoais do entrevistador: gênero, idade, classe social, etnia, entre outras; são questões que podem potencializar as vantagens ou desvantagens da entrevista em profundidade.

  1. Preparação e planejamento da entrevista:

  • Não tem regras fixas, para muitos autores é uma prática artesanal, que depende muito do conhecimento pessoal e sensibilidade do entrevistador.
  • Combessie: arte da entrevista, cada entrevistador tem um estilo próprio de conduzir, derivado de um saber prático acumulado e das características singulares da relação entrevistador-entrevistado.
  • Alonso: entrevista refrata qualquer critério científico de definição da ferramenta metodológica.
  • Não se trata de prática totalmente anárquica, havendo questões que podem ser planejadas, reconhecendo diferentes graus de realização possível das decisões anteriores à prática. Esse planejamento, ou reflexão sistemática prévia, contribui para potencializar as capacidades artesanais do pesquisador.
  • PRIMEIRA QUESTÃO: seleção dos sujeitos a entrevistar.
  • Critérios diferem das sondagens, por dois motivos importantes:
a)    as entrevistas em profundidade se empregam normalmente nos casos nas pesquisas “sem padrão”, que não têm como objetivo principal a generalização estatística de seus resultados.
b)    pelas características da entrevista, a quantidade que se pode levar a cabo em um estudo é reduzida, muito inferior aos levantamentos aleatórios quantitativos.
·         Não existe um critério único, alternativo à aleatorialidade. Valles, seguindo Gorden, propõe uma série de perguntas-guia, consecutivas, para reduzir, gradualmente, o foco dos potenciais entrevistados:
1)    Quem tem informação relevante para a pesquisa?
2)    Desses, quem são os mais acessíveis física e socialmente?
3)    Quais dentre eles estão mais dispostos a cooperar, fornecendo informações ao investigador?
4)    Cumprindo todos os requisitos anteriores, quais são os mais capazes de comunicar a informação de interesse com precisão?
·         Para responder as perguntas-guia e tomar as decisões de seleção, recorre-se a uma série de estratégias diferentes que podem ser empregadas separadamente ou combinar-se em uma pesquisa:
a)    Amostra intencional: mais conhecida, o pesquisador seleciona os entrevistados de acordo com um conjunto de critérios relevantes, que podem mudar de uma pesquisa para outra. Frequentemente são considerados quatro aspectos:
i)  homogeneidade / heterogeneidade da população de referência a partir do ponto de vista do estudo;
ii) tipicidade / marginalidade / representatividade dos sujeitos;
iii)    as variáveis sociodemográficas (sexo, idade, escolaridade, nível socioeconômico);
iv)   outras questões que permitam diferenciar as pessoas em função do fenômeno de interesse.
Considerando um ou mais aspectos combinados, é freqüente segmentar a população, formando subgrupos dos quais se selecionará um ou mais entrevistados a fim de ter um panorama amplo de diferentes experiências e discursos.
b)    Bola de Neve: quando os entrevistados não são facilmente identificáveis pelo investigador. A partir de um ou uns poucos contatos iniciais, valendo-se das redes de contatos pessoais dos entrevistados, busca-se ampliar progressivamente o grupo de potenciais entrevistados que tenham as características que os fazem pouco visíveis e acessíveis.
c)    Amostra Oportunista: selecionam-se aqueles sujeitos propensos a colaborar no estudo, aos quais o pesquisador tenha acesso garantido.
·         Questão importante: número de entrevistas que devem ser feitas em uma pesquisa >> seguir o critério de SATURAÇÃO: deve-se seguir realizando entrevistas até que se alcance a certeza prática de que novos contatos não aportam elementos desconhecidos acerca da pesquisa ou não emergem aspectos que não tenham sido já tratados.
·         Outro preparativo-chave: um roteiro de entrevista, antecipando as formas de abordar o problema central e as questões secundárias >> perguntas de espectro mais amplo no início, assim como uma série de questões e argumentos que sirvam para passar de um assunto a outro ou para motivar o entrevistado. O nível de detalhe pode variar, originando entrevistas mais ou menos estruturadas.
·         Em geral, existe uma relação direta entre o grau de familiaridade com o tema e a capacidade de pensar de antemão um roteiro de entrevista.
·         Mesmo com um roteiro detalhado em mãos, deve-se lembrar que a entrevista não deve se transformar em um interrogatório. O roteiro deve funcionar como um lembrete, uma ajuda instrumental que permita cobrir os temas relevantes de acordo com os objetivos da investigação, sem impor uma ordem determinada nem limitar de modo rígido as questões a tratar.
·         Combessie: a entrevista deve seguir sua própria dinâmica.
·         É comum que o roteiro se construa ao longo de um processo que o investigador vai ganhando familiaridade com o tema e os entrevistados, a partir de leituras específicas e pesquisas exploratórias que permitam completar, modificar e refinar o roteiro, até alcançar convicção de que ele cobre todos os aspectos relevantes. 
·         Alguns aspectos relativos ao pesquisador-entrevistador, já que algumas características (gênero, idade, classe social, etnia, aparência, entre outras) exercem influência decisiva nos discursos que podem surgir ao longo de uma conversação. Algumas dessas questões não são controláveis / manipuláveis, e, no caso em que são consideradas decisivas (quanto a um impacto negativo nos resultados), deve-se levar em consideração a possibilidade de outro membro da equipe realizar a entrevista.
·         Algumas questões podem ser pensadas de antemão: roupas, tipo de linguagem a ser empregada, as formas de realizar o contato e a apresentação. É responsabilidade do entrevistador adaptar-se aos códigos do entrevistado, devendo pensar nisso na fase de preparação da entrevista.
·         Outros preparativos: seleção do lugar (aspecto menor, mas os discursos podem estar condicionados pelo contexto em que são produzidos) e a forma de registro da entrevista (gravador, com consentimento do entrevistado, não deixa que se percam detalhes e permite que o entrevistador se concentre na conversação).
·         Ferrarotti: não existem somente as palavras, mas também os gestos, as expressões faciais, os movimentos das mãos, a luz dos olhos. O gravador permite que se atente para essas expressões corporais.
·         Argumentos de que o gravador gera certa aversão por parte do entrevistado X uma pessoa que escreve tudo que o entrevistado fala (com desvantagem de perder outros detalhes da interação e interromper a fluidez da conversação). Tecnologias de gravação digital: dispositivos se tornam imperceptíveis logo após o início da entrevista.
·         Apesar de todas as possibilidades de preparativos, a situação de entrevista é de imprevisibilidade.
·         Ferrarotti: relação verdadeiramente humana, dramática, sem resultados assegurados.
·         Valles: chave do êxito repousa nas formas de interação verbal que estão em táticas do entrevistador, que são conhecimentos que formam parte do seu trabalho e habilidade, e que improvisa durante a realização da entrevista, segundo o curso da interação verbal.
·         Alonso: essa interação se estabelece a partir da intervenção do pesquisador, por meio de intervenções e comentários, atos de fala, classificados como declarações, interrogações e reiterações.
·         Combessie: a repetição, entrevistador, de uma palavra ou passagem que acaba de ouvir do entrevistado, que põe em evidência a atenção do entrevistador pelo relato do entrevistado.
·         Valles: silêncio como tática do entrevistador, assim como a animação e reelaboração, a reafirmação e a repetição, a recapitulação, a aclaração e a troca do tema.
·         Pós-entrevista: prolongamento da conversação logo que esta tenha se encerrado formalmente >> coleta de informações que o entrevistado não explicitou durante a entrevista formal.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
PIOVANI, Juan Ignacio. “La entrevista em profundidad” in MARRADI, Alberto; ARCHENTI, Nélida & PIOVANI, Juan Ignacio. Metodología de las ciências sociales. Buenos Aires: Emecé Editores, 2007.



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