Com a abordagem do ciclo de comportamento privado-público-privado, Hirschman (1983) enfatiza a existência de oscilações nas sociedades ocidentais contemporâneas entre períodos de intensa preocupação com questões públicas e outros caracterizados pelo maior envolvimento com o bem-estar individual. A dicotomia público/privado pode ser entendida como uma competição permanente pelo tempo e atenção dos indivíduos, e tais oscilações seriam conseqüências da mudança de ênfase da vida pública para a vida privada[1].
A partir de uma análise micro-social, o autor rejeita a possibilidade de perda do espaço público, considerando que as mudanças coletivas são determinadas por fatores endógenos, ou seja, um ciclo se origina naquele que o antecede[2]. Na medida em que as ações na esfera privada fazem parte de um ciclo privado-público-privado, elas tendem a voltar a pender para as ações coletivistas, ainda que espasmódicas, o que a torna uma abordagem importante para entender as ações políticas na esfera do consumo.
As oscilações entre períodos de intensa preocupação com questões públicas e outros de quase total concentração no desenvolvimento e bem-estar individuais podem ser entendidas a partir das opções de afastamento (saída) ou manifestação (voz) de grandes massas de indivíduos que avaliam seus envolvimentos em uma das duas esferas. Desta forma, Hirschman (1983) constrói uma fenomenologia de engajamentos e decepções que considera tanto a dedicação aos atos de consumo privado quanto o envolvimento em questões públicas como práticas que geram satisfação e decepção.
Desta forma, o ciclo privado-público-privado de comportamento coletivo compreende duas mudanças fundamentais e cíclicas ao longo do tempo. A primeira é a passagem da dedicação às atividades privadas para a dedicação às atividades da esfera pública. As atitudes de afastamento e manifestação surgem como reações à decepção com a dedicação às atividades de consumo em busca da felicidade, que, frequentemente, desembocam em ações na esfera pública.
A segunda envolve a decepção com o processo de participação na vida pública na medida em que os indivíduos que se dedicam a atividades públicas não distinguem claramente entre lutas e conquistas, ou entre custos e benefícios, das ações coletivas. Desta forma, a própria luta pode ser vista como benefício da dedicação a uma atividade política quando esta é considerada agradável e realizadora do desenvolvimento individual.
Entretanto, Hirschman (1983) mostra como a dedicação em ações coletivas pode se tornar excessiva e frustrante, causando decepção, especialmente quando estas atividades tomam mais tempo do que um indivíduo esperava antes de se envolver com elas. Este erro de projeção dos indivíduos, entre a expectativa de uma atividade agradável e a experiência real, faz com que eles retornem à esfera privada, fechando o ciclo privado-público-privado.
O autor entende que as pessoas tendem a subestimar o tempo necessário para atingir objetivos em atividades públicas. Isso acontece por conta de ilusões, tais como as suposições de que as idéias de uma causa serão facilmente assimiladas e seus pontos de vista são os únicos a fazer sentido; assim como o estabelecimento de metas utópicas e a conseqüente perda de controle dos rumos previstos, com a descoberta de que uma atividade envolvente pode levar ao vício e provocar reações para se livrar desta dependência ao reordenar suas vontades de segunda ordem. Neste sentido, as mudanças da vida privada para a pública e seu retorno àquela são marcadas por expectativas exageradas, total fascinação e súbitas reviravoltas.
Hirschman (1983) assinala que a individualização corresponde a uma tendência de ocupação total da vida por atividades privadas, que não deixa espaço para as atividades de natureza pública, desestimulando, assim, o envolvimento dos indivíduos em assuntos públicos. Ao mesmo tempo, chama atenção para o papel das instituições políticas no sentido de impedir a manifestação da intensidade total dos sentimentos dos cidadãos.
Neste sentido, a instituição democrática do voto, parte necessária, integrante e central do processo democrático, também pode gerar decepção e despolitização. O voto garante a todos uma parcela mínima no processo de decisão pública e estabelece um teto máximo que não permite aos cidadãos registrarem as diferentes intensidades de percepção das suas convicções e opiniões políticas. Hirschman (1983) enfatiza a ambigüidade desta instituição que, se por um lado, é elemento essencial de uma estrutura institucional de defesa contra um estado excessivamente repressivo, por outro, serve como proteção contra uma coletividade excessivamente expressiva.
O autor acredita que a apatia política e a decepção com a ação política são socialmente induzidas quando as decisões políticas importantes são tomadas somente através do voto. A inadequação do voto como expressão de sentimentos políticos fica evidente com a ocorrência de outras formas de ação política, tais como greves, passeatas, atos e abaixo-assinados, toda vez que ressurgem sentimentos políticos mais exacerbados.
Partindo da idéia, desenvolvida por Adam Smith e boa parte do pensamento liberal, de que ganhos e satisfações privados contribuem para a felicidade pública, Hirschman (1983) entende que a atração da vida privada passa pela capacidade de tolerância que esta esfera possui em relação à incorporação de motivos públicos. Por outro lado, a hipocrisia da atividade pública torna o deslocamento em direção à esfera privada uma forma de contato com a realidade, a sinceridade e a humildade quando a busca de poder passa a ser percebida pelos indivíduos como meta exclusiva da atividade pública.
Assim, a separação entre privado e público surge, simultaneamente, como característica, problema e dilema das sociedades contemporâneas.
[1] A partir do século XIX, a luta por interesses materiais particulares tornou-se uma conduta humana legítima. Trata-se de uma opção frente ao intenso envolvimento em questões da esfera pública, que passou a ser vista como “uma arena privilegiada para as mais perigosas paixões do homem, como ambição, inveja e a irresponsável perseguição ao poder e à glória” (HIRSCHMAN, 1983, p.12).
[2] A ênfase de Hirschman (1983) em fatores endógenos não o leva a desconsiderar a importância da história e de fatores exógenos (grau/mudanças das pressões e repressões externas) para entender mudanças de comportamento coletivo.
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