terça-feira, 15 de março de 2011

Reflexividade Social e Crise Ambiental: o renascimento não-institucional do político

A teoria da reflexividade social, na perspectiva desenvolvida por autores como Ülrich Beck e Antony Giddens — associada aos conceitos de globalização e destradicionalização, políticas de vida e subpolíticas — também pode fornecer um suporte analítico útil para a compreensão da incorporação de valores nas tomadas de decisão cotidianas.

Giddens (1997) explica as mudanças na ação política de nossos dias, incorporando a categoria “reflexividade”. Desta forma, a crise ambiental parece evidenciar diversos dilemas e oportunidades de recuperação de valores positivos, como a autonomia, a solidariedade e a busca da felicidade e do bem-estar, especialmente quando passa a ser percebida e associada às práticas da vida cotidiana. Neste sentido, o consumo político pode ser compreendido como um novo ativismo, fundamental para a renovação da ação e do escopo da política.

A perspectiva deste autor ajuda a entender o crescimento da importância do papel político dos consumidores como conseqüência de diversos fatores que têm transformado a sociedade nas últimas cinco décadas, como a globalização, a destradicionalização e a reflexividade social (PORTILHO, 2005). Estes acontecimentos são particularmente importantes nos países industrializados (STOLLE et ali, 2005), mas têm um impacto cada vez mais mundial.

Além de um fenômeno econômico, a globalização pode ser entendida também como uma transformação do espaço e do tempo, que está ligada a mudanças nos contextos locais e nas experiências sociais na medida em que "nossas atividades cotidianas são cada vez mais influenciadas por eventos que acontecem do outro lado do mundo. De modo oposto, hábitos dos estilos de vida locais tornaram-se globalmente determinantes. Dessa forma, minha decisão de comprar um determinado artigo de vestuário tem implicações não só para a divisão internacional do trabalho, mas também para os ecossistemas terrestres" (GIDDENS, 1997, p. 13).

Como resultado direto da globalização, Giddens (1997) vislumbra a emergência de uma ordem social pós-tradicional, caracterizada por uma natureza transformada pela intervenção humana em socialização da natureza na medida em que uma intensificação da especialização descentralizada radicaliza os mecanismos de desincorporificação. Além disso, a perda de autoridade da ciência provoca conseqüências libertadoras e perturbadoras, pois a compulsividade torna-se uma confiança congelada, ou seja, um compromisso sem objeto e uma simples urgência repetitiva.

A especialização substitui a tradição e a reflexividade social da modernidade subverte a razão. Giddens (1991, p. 40) enxerga um “mundo que é inteiramente constituído através de conhecimento reflexivamente aplicado, mas onde, ao mesmo tempo, não podemos nunca estar seguros de que qualquer elemento dado deste conhecimento não será revisado”. Se antes, as tradições não precisavam ser justificadas, pois continham sua própria verdade, sendo afirmadas como correta por todos que nela acreditavam, numa sociedade globalizada, ao contrário, as tradições são “descobertas”, sendo necessário oferecer-lhes razões ou justificativas e não simplesmente aceitá-las como dadas.

Estas mudanças refletem o caráter experimental e reflexivo da vida cotidiana. Os indivíduos cada vez mais têm que aprender a refletir e filtrar as informações sobre distintos aspectos rotineiros da vida privada, tomando decisões com base nessas reflexões e não mais na segurança da tradição. As ações cotidianas passam, portanto, a ser monitoradas reflexivamente por conhecimentos especialistas distribuídos na sociedade.

Giddens (1997) aponta uma tendência de mudança da participação política, da esfera pública para a privada, com a constituição de uma nova cultura política. Tal mudança relaciona-se a uma substituição dos canais de participação e influência coletiva por canais individuais.

Neste sentido, muitos problemas coletivos têm sido enfrentados na esfera individual por meio das políticas de vida , que surgem como reações e engajamentos em relação a um mundo em que a tradição deixou de ser tradicional e que a natureza não é mais natural. Elas tratam dos desafios que a humanidade coletiva enfrenta e não apenas das formas que os indivíduos tomam suas decisões frente à variedade de opções que antes não existia. As questões ambientais, por exemplo, "não podem ser entendidas como relacionadas apenas ao meio ambiente. Elas são um sinal e uma expressão da centralidade dos problemas da política de vida. Propõem, com especial vigor, as questões que devemos enfrentar no momento em que o “progresso” se tornou bastante ambíguo, temos novas responsabilidades em relação às futuras gerações e existem dilemas éticos que os mecanismos de crescimento econômico constante nos fazem colocar de lado ou reprimir" (GIDDENS, 1996, p. 108).

A politização do consumo parece estar associada às políticas de vida, sendo que “comprar alimentos orgânicos, por exemplo, pode ou não ter um significado político, que depende da motivação para isso, bem como dos efeitos deste ato” (STOLLE et ali, 2005, p. 254). De certa forma, os indivíduos que se engajam nestas ações estão provavelmente mais bem preparados para as tarefas e responsabilidades mais amplas da cidadania (GIDDENS, 1997). Com isso, a cultura do consumo constitui um campo privilegiado na medida em que nele se situam as reivindicações do sujeito (CAMPBELL, 2006).

Nesta perspectiva, não existem soluções naturalizadas para os problemas sociais. Apesar de uma tendência de naturalização da sociedade, a interdependência global e a socialização da natureza devem ser cada vez mais consideradas na resolução dos problemas sociais. O signo positivo dos riscos de grandes conseqüências encontra-se relacionado com o fato de que complicações reflexivas apenas confirmam que as dificuldades de uma civilização científico-tecnológica não podem mais se resolver pela introdução de mais ciência e tecnologia. Apesar disso, os debates ambientais contemporâneos ainda se baseiam em uma lógica de natureza controlada, denotando um potencial revelador dos problemas ecológicos sobre a confiança da civilização moderna no que se refere ao controle e ao progresso econômico enquanto formas de repressão dos dilemas existenciais básicos da vida.

Giddens (1996) interpreta as questões ecológicas pela lente da modernização reflexiva em um contexto que compreende globalização, destradicionalização, destruição da natureza, avanço da ciência e crescimento econômico. Assim, os problemas morais, que antes estavam ocultos na naturalidade da natureza, hoje afloram em riscos associados à incerteza artificial, comprometendo uma orientação para o controle da modernidade simples.

Assim, a “política ecológica é uma política de perdas — a perda da natureza e da tradição —, mas também é uma política de recuperação” (GIDDENS, 1996, p. 257), pois, individualmente, uma humanidade coletiva pode remoralizar as vidas por meio de uma aceitação positiva da incerteza artificial. Como expressão material dos limites da modernidade, a política ambiental torna-se fundamental para a renovação política, pois a restauração do ambiente danificado não pode mais ser entendida como um fim em si mesmo.

O mundo pode ser percebido como um sistema de auto-ameaças ambiental-industriais que transforma a moralidade, a religião, o fundamentalismo, a desesperança, a tragédia, o suicídio e a morte em um drama universal, caracterizando um teatro da vida real, com a presença de ingredientes como a salvação e a ajuda. Assim, Beck (2002) destaca que, em uma sociedade de risco global, os desafios produzidos pela civilização não podem ser delimitados socialmente.

Os problemas ambientais são inerentes à sociedade e não ao meio ambiente ou ao mundo que nos rodeia. Com isso, Beck (2002) procura superar o dualismo entre sociedade e natureza ao enfatizar a incerteza fabricada — por meio de noções como risco, perigo, efeitos colaterais, seguridade, individualização e globalização — como contraponto às idéias de natureza, de ecologia e de meio ambiente.

A escala e a urgência da crise ambiental podem variar de acordo com percepções e avaliações intra/interculturais na medida em que os perigos só se convertem em questões políticas se as pessoas passam a ter consciência deles, ou seja, são construções sociais que se definem, se ocultam ou se dramatizam estrategicamente na esfera pública. com ajuda de materiais científicos providos pela definição, ocultamento ou dramatização destes perigos. Desta forma, a crise ambiental aparece como um discurso de auto-confrontação que exige a reconsideração das práticas institucionais que o produziram.

A forma direta com que as pessoas falam da natureza e da sua destruição na vida cotidiana parece esconder uma estratégia paradoxal de construção da desconstrução, na medida em que se destrói reflexiva e poderosamente a impressão de que este discurso foi construído, produzindo-se uma aparência de realidade em si. Ao invés de tratar de “problemas do meio ambiente”, Beck (2002) opta por tratar de uma profunda crise institucional da primeira fase da modernidade industrial.

Neste sentido, o advento da crise ambiental e a consciência em relação a uma sociedade de risco global abrem os objetivos da política, que são expandidos, repensados e recompostos. A incompletude do conhecimento e o fato de que o acúmulo de conhecimento apenas supõe mais incerteza caracterizam a tomada de decisões nas atuais condições de incerteza fabricada. Estes aspectos evidenciam uma inter-relação entre os conflitos e as lógicas de distribuição dos bens e dos males produzidos pela sociedade do risco, superando os fundamentos do cálculo de risco .

A sociedade de risco global é, portanto, autocrítica e política e necessita reinventar o diálogo transnacional da política, da democracia e da sociologia para discutir as questões emergentes das sociedades contemporâneas. Beck (2002) descreve uma sociedade individualista e moralista, a partir do momento em que a ética da auto-realização e do sucesso individual se tornou a corrente mais poderosa para escolher, decidir e configurar os indivíduos que desejam ser autores de sua vida e criadores de suas identidades.

Este processo surge, então, como possibilidade de reinvenção da política, caracterizando uma condição universal fundamental da existência humana no período de modernização reflexiva. Em uma era de incerteza e ambivalência, a ameaça constante de desastres de novas magnitudes pode reinventar as instituições políticas e inventar novas formas de ação política em lugares sociais que eram considerados apolíticos. Com isso, a destruição e o protesto passam a ser simbolicamente mediados pela “crise ambiental”, gerando uma nova consciência cultural e uma atuação contra a destruição ambiental que faz com que todo mundo seja seu próprio inimigo.

Beck (2002) identifica a emergência de subpolíticas, à margem e além das instituições políticas dos Estados-Nação, compreendendo políticas diretas, que envolvem a participação individual nas decisões políticas, muitas vezes sem uma proteção jurídica como a que é oferecida por partidos políticos e sindicatos. Com isso, as práticas de compra, entre outras, podem fazer parte de um sentido de participação global que se estabelece na medida em que a política se converte em parte integral da atividade cotidiana e, ao mesmo tempo, se mostra ativamente integrada em uma ordem-desordem cosmopolita.

Assim, em contraposição ao esvaziamento político das instituições tradicionais, assistimos a um renascimento não institucional do político que “permite que os agentes ‘externos’ ao sistema político ou corporativo apareçam no cenário do planejamento social”, uma vez que “não somente os agentes sociais e coletivos, mas também os indivíduos, competem com este último e um com o outro pelo poder de conformação emergente do político” (BECK, 1997, p.34).

Referências bibliográficas:

BECK, Ülrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony. et ali. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997, pp. 11-71.

____. La sociedad del risco global. Madrid: Sieglo XXI de Espana Editores S.A., 2002.

CAMPBELL, C. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro, Rocco, 2001.

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

______. Para além da esquerda e da direita: o futuro da política radical. São Paulo: UNESP, 1996.

______. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, Anthony. et. alii. Modernização reflexivel: politica, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997.

PORTILHO, Fátima. Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania. São Paulo, Ed. Cortez, 2005.

STOLLE, Dietlind; HOOGHE, Marc & MICHELETTI, Michele. Politics in the supermarket: political consumerism as a form of political participation. International Political Science Review. Vol. 26 (3): 245-269, 2005.


O texto acima foi retirado do seguinte trabalho:

CASTAÑEDA DE ARAUJO, Marcelo. Ambientalização e politização do consumo e da vida cotidiana: uma etnografia das práticas de compra de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ. Dissertação de mestrado. CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro, 2010.

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