Resumo:
Neste trabalho procuro entender como a noção de “rural” é trabalhada no livro Os jovens estão indo embora? Juventude rural e a construção de um ator político (Castro et ali, 2009). A análise se volta para este fim, sem pretensões de empreender uma análise pormenorizada da obra como um todo. Desta forma, inicialmente faço uma breve apresentação da temática abordada pelo livro, bem como das opções de pesquisa e unidades de análise adotadas pelas autoras. Em seguida, destaco a crítica efetuada por Martins (1986) acerca da dualidade nas análises sociológicas sobre o mundo rural com o intuito de configurar uma lente interpretativa. Feito isso, procuro mostrar que a noção de “rural” na obra escolhida não rompe com a dualidade urbano/rural, explicitando os aspectos do livro que me levaram a esta percepção.
Os jovens organizados em movimentos sociais rurais — de agricultura familiar, de trabalhadores rurais e de camponeses — formam o campo de análise do livro, que se baseia em uma pesquisa construída a partir da aplicação de questionários e diálogos com participantes de treze eventos, realizados entre 2006 e 2008. Estes participantes se autodenominavam “jovens”, sendo este o critério adotado na obra.
Se não interessa detalhar cada um dos eventos acompanhados por Castro et ali (2009), cabe relacionar os dois tipos principais que constituíram o contexto ou pano de fundo da pesquisa, em especial porque esse aspecto parece configurar um limite ou obstáculo epistemológico para pensar em uma “juventude rural”, ao menos no viés adotado no livro em questão.
Um dos tipos são os eventos[1] de juventude, sendo que nove deles foram organizados pelos movimentos sociais “rurais”:
(1) o II Acampamento da Juventude da Agricultura Familiar da Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar-Sul (Fetraf-Sul, Rio Grande do Sul, março de 2006);
(2) o Seminário Jovem Saber (realizado durante o Grito da Terra Brasil Contag, Brasília, maio de 2006);
(3) o I Seminário da Juventude da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), junho de 2006;
(4) o II Congresso Nacional da Pastoral da Juventude Rural (PJR, Brasília, julho de 2006);
(5) o II Seminário Nacional sobre Educação Básica de Nível Médio nas Áreas de Reforma Agrária – Luziânia, MST, setembro de 2006;
(6) o I Seminário do Coletivo Nacional da Juventude da Via Campesina Brasil (Guararema, novembro de 2006);
(7) o I Seminário da Juventude da Fetraf-Sul (Chapecó-SC, fevereiro de 2008);
(8) a Reunião da Comissão Nacional de Jovens da Contag (Brasília, abril de 2008);
(9) o I Encontro Nacional da Juventude do Campo e da Cidade (Via Campesina Brasil, Niterói, agosto de 2008).
Cabe destacar que dos nove eventos acima relacionados, os instrumentos quantitativos (questionários) foram aplicados apenas nos três primeiros, totalizando 1.577 entrevistas. Castro et ali (2009) denominaram esta etapa de 1ª fase da pesquisa.
Ainda entre os eventos de juventude acompanhados durante a pesquisa, dois deles não foram organizados por movimentos sociais, mas
(1) pelo Governo Federal, no caso dos debates no Congresso Nacional para formulação do Plano Nacional de Juventude;
(2) pelo setor empresarial, como a II Jornada de Juventude Rural (Instituto Souza Cruz, Luziânia, 2007).
Não foram aplicados questionários nestes eventos.
Por outro lado, na perspectiva adotada por Castro et ali (2009) os eventos nacionais organizados pelos movimentos sociais rurais constituem outro tipo de evento, sendo que dois deles foram acompanhados:
(1) o V Congresso Nacional do MST (realizado em Brasília-DF, em julho de 2007);
(2) a II Plenária Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais da Contag (realizada em Luziânia-GO, em outubro de 2007).
Foram aplicados 638 questionários nesta etapa, que foi denominada como 2ª fase da pesquisa.
No geral, o livro assinala uma centralidade da prática política dessa geração de jovens no contexto do desenvolvimento rural atual, marcado por intensa disputa quanto aos seus rumos. Castro (2005) observa que a juventude rural está identificada com o problema social da migração do campo para a cidade em função da imagem de desinteresse e distanciamento do mundo rural por parte dos jovens. Entretanto, Castro et ali (2009) entendem que esta observação é contraditória pelo fato de existirem ações organizativas no interior dos movimentos sociais rurais que são identificadas como “de juventude”, em especial a partir do ano 2000. Daí, a justificativa para empreender a pesquisa na qual se baseia o livro analisado neste trabalho.
A unidade de análise adotada por Castro et ali (2009) compreende os jovens que se organizam nos movimentos sociais rurais, especificamente aqueles que participam de eventos de juventude e eventos nacionais dos movimentos sociais[2], tendo a permanência no “campo” como bandeira de luta. Desta forma, a pesquisa tinha como objetivo entender o que faz o jovem lutar para ficar no “meio rural”, bem como as questões que colaboram para que haja movimentos de juventude distintos. Para tal, as autoras procuraram vivenciar esse processo identitário no âmbito dos movimentos sociais rurais, com ênfase nos encontros nacionais destes movimentos e de juventude.
A partir da consideração de estudos que apontam, nos dias atuais, a tendência da saída de jovens do campo rumo às cidades, Castro et ali (2009) incorporam o consenso em relação às dificuldades enfrentadas pelos jovens no “campo”, sendo que as principais são: o acesso à escola e ao trabalho, bem como a atração do jovem pelo estilo de vida urbano. Como contraponto a este jovem desinteressado pelo campo e atraído pela cidade, a pesquisa se voltou para as iniciativas organizativas que constituem identidade juventude nos movimentos sociais rurais.
No entanto, uma questão parece “aberta” no livro: que a noção de “rural” Castro et ali (2009) adotam na construção da categoria “juventude rural”?
Antes de prosseguir na resposta, torna-se necessário resgatar uma discussão ocorrida no começo da disciplina Rural e ruralidade na sociedade contemporânea. Trata-se de uma breve síntese do artigo As coisas no lugar, do sociólogo José de Souza Martins, que servirá como uma espécie de guia para a análise a ser empreendida na parte final deste trabalho.
2. Da ambigüidade à dualidade: a relação cidade-campo (ou urbano-rural)
Ao analisar a constituição da sociologia rural, Martins (1986) compreende que a noção de “rural” é elaborada a partir de determinadas condições e circunstâncias sociais, envolvendo a construção da realidade no âmbito do conhecimento sociológico. O autor assinala uma ambigüidade de origem da sociologia, que se manifesta pela convergência de duas óticas antagônicas[3]: a procedência pré-capitalista (comunidade/solidariedade) e a procedência capitalista (cientificismo coisificador). Para Martins (1986), esta ambigüidade não pode ser resolvida no plano estrito do conhecimento, mas no confronto entre este conhecimento e as necessidades de auto-explicação da sociedade que este conhecimento pretende atender.
Na medida em que o campo do conhecimento sociológico envereda pela análise de dicotomias, esta ambigüidade de origem se desdobra em dualidades, onde cada termo desta construção não carrega ambigüidade[4]. Desta maneira, na interpretação da vida social, o mundo — ou seja, cada termo da dualidade, como na dicotomia urbano-rural — passa a parecer ambíguo.
Por isso, o autor entende que a ambigüidade deve configurar como um aspecto fundamental para diagnosticar as descontinuidades da vida social, ao invés da contradição entre os termos dicotômicos. Neste sentido, Martins (1986) entende o “rural” como um objeto socialmente construído.
Ao considerar as conseqüências do uso da sociologia rural para entender uma dada realidade, o autor aponta que o “rural” está sujeito a um processo de superação intencional de natureza técnica, que se traduz na preocupação com a modernização e a difusão de inovações. Isso faz com que o autor considere a sociologia rural como uma expressão da dominação da cidade (“urbano”) sobre o campo (“rural”).
Martins (1986) também critica a concepção evolucionista deste subcampo do conhecimento na medida em que estabelece a superação do rural pelo urbano como uma tendência das transformações sociais, ou seja, um resultado que nega o seu próprio objeto, estabelecendo uma relação tensa com o mesmo. Deste modo, a tensão presente na ambigüidade de origem da sociologia é artificialmente suprimida, apesar de renascer no plano da interferência na realidade, pois entre o objeto construído e o conhecimento que o toma como referência há uma relação de negação.
Com isso, a noção de “rural” configura o produto necessário de um modo de construir a realidade social. Trata-se de um ponto de partida, que não pode ser, ao mesmo tempo, o ponto de chegada. Desta forma, Martins (1986) defende uma sociologia voltada para os processos sociais, remetendo à relação que cada homem trava com os outros e consigo mesmo através da alteração contínua das suas condições de existência e, consequentemente, da alteração contínua das suas relações sociais como produto alienado da sua própria atividade.
A sessão anterior possibilitou a configuração de uma lente interpretativa pela qual o “rural” pode ser entendido como um objeto socialmente construído pela ambigüidade característica da sociologia. Nesta sessão, apresento os elementos que sustentam a seguinte percepção: o livro Os jovens estão indo embora? Juventude rural e a construção de um ator político (Castro et ali, 2009) não supera a dualidade urbano/rural, objeto da crítica de Martins (1986), no que se refere ao uso da noção de “rural”.
Neste sentido, o livro analisado reforça a a noção de “rural” como um dos pares dicotômicos da oposição entre “urbano” e “rural” (Redfield, 1989) ou, com menor intensidade, como parte de um continuum rural/urbano (Pahl, 1966). Além disso, a noção de “rural” é subutilizada e, assim, funciona praticamente como um mero adjetivo da categoria “jovem” na obra em questão, principalmente devido à ausência de contextualização dos sujeitos pesquisados em relação aos seus ambientes de vida.
Uma primeira evidência da naturalização do “rural” como par oposto do “urbano” nesta obra pode ser percebida, por exemplo, pela comparação dos resultados quantitativos derivados dos questionários utilizados como instrumentos de pesquisa em relação à Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios – Pnad (2006 apud Castro et ali, 2009).
O perfil derivado dos questionários evidencia uma juventude que luta por trabalho, renda, terra, educação, lazer e cultura em um “campo” sem acesso a bens e serviços. Se apoiando nos dados da Pnad, as autoras apontam a diferença de condições entre quem vive no “meio rural brasileiro” e quem vive nas cidades. Desta forma, há um reforço da dicotomia/dualidade campo/cidade.
Abramovay (2000) critica a produção de estatísticas no Brasil por conta da associação do meio rural a uma idéia pejorativa de que nele permanecem aqueles que não conseguem se aventurar em direção às cidades, sendo que o declínio dessas regiões é questão de tempo. Neste sentido, o autor identifica um vício de raciocínio na forma de definição das áreas rurais, citando como exemplo a natureza residual da definição de “rural” pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, que corresponde aos remanescentes que ainda não foram atingidos pelas cidades, cuja emancipação passa a ser vista como “urbanização do campo”.
Castro et ali (2009) consideram a classificação oficial de “rural” como um parâmetro da análise dos dados derivados da pesquisa que realizaram sem qualquer problematização sobre o fato de que esta classificação oficial é definida em uma relação de oposição ao “urbano”. Mais além, se essa definição se dá a partir das ausências do “rural” em relação ao “urbano”, acarretando problemas de inconsistência metodológica, as autoras acabam por reforçar a dualidade rural/urbano.
Além da comparação dos dados produzidos pela pesquisa com as estatísticas oficiais, importa aqui destacar que a noção de “rural” como par dicotômico em oposição ao “urbano” fica mais evidente na referência feita ao “duplo enquadramento” dos sujeitos pesquisados como “jovens” e “rurais”, conforme proposto por Wanderley (2007 apud Castro et ali, 2009, p. 39).
Adotando esta perspectiva, as autoras destacam que os “jovens rurais” sofrem com as imagens pejorativas sobre o “mundo rural”, bem como com as conseqüências da desvantagem do “mundo rural” no espaço urbano, em função da associação do imaginário sobre “o mundo rural” ao atraso e da identificação destes jovens como “roceiros”, “peões”, “aqueles que moram mal”. De outro lado, estes jovens sofrem no próprio “meio rural”, na medida em que são deslegitimados por seus pais e adultos em geral.
Desta forma, Castro et ali (2009) trabalham com a idéia de um “jovem rural” genérico, que carrega o peso de uma posição hierárquica de subalteridade. De forma geral — e problemática, no que diz respeito à noção de “rural” —, os “jovens” configuram uma categoria que é percebida como inferior nas relações de hierarquia estabelecidas na família, bem como na sociedade, em um contexto de difíceis condições econômicas e sociais para a pequena produção familiar.
Ainda de acordo com Wanderley (2006 apud Castro et ali, 2009, p. 57) — principal referência das autoras no que diz respeito ao “rural” — o “campo”, antes associado à “lugar parado”, “isolado”, passa a ser valorizado como “espaço de vida”, de moradia, não exclusivamente de trabalho, em oposição à cidade grande e à violência. Nota-se mais uma vez o reforço ao par antagônico urbano/rural, que desconsidera a ambigüidade sociológica assinalada por Martins (1986).
Neste sentido, a definição de “jovem rural” adotada no livro remete àqueles que vivem o momento do ciclo de vida caracterizado pela transição entre infância e idade adulta, no mesmo contexto histórico de outros jovens, mas que possuem a especificidade de terem o meio rural como seu espaço de vida, como marca de sua situação juvenil, embora transitem por espaços urbanos (Wanderley, 2006 apud Castro, 2009).
A questão da especificidade destacada por Wanderley (2006 apud Castro, 2009) merece atenção. A pesquisa na qual o livro se baseia produziu dados derivados de um acompanhamento de eventos nacionais de movimentos sociais “rurais” e de juventude, que, em sua maioria, foram realizados em capitais ou cidades de regiões metropolitanas, ambientes tidos como “urbanos”. Neste sentido, Castro et ali (2009) não explicitaram qualquer preocupação em coletar e/ou apresentar as origens dos jovens pesquisados ou mesmo as especificidades do “meio rural” em que estes jovens se situam, o que até seria possível mediante os instrumentos de pesquisa utilizados — sejam os questionários ou as entrevistas e diálogos que foram empreendidos.
A principal implicação da ausência de informações e dados sobre as origens dos jovens pesquisados e, consequentemente, das especificidades do “meio rural” em que estes jovens se situam, é a impossibilidade de uma contextualização dos ambientes (Ingold, 1992), que foram tratados como “meio rural”, pelos quais os jovens pesquisados se organizam e lutam para permanecer nele.
Neste sentido, a indefinição sobre qual/quais “rural”/“rurais” está/estão sendo tratado/tratados promove uma espécie de generalização das conclusões das autoras, de forma que parece haver um “rural brasileiro” que remete a um todo homogêneo, o que paradoxalmente reforça aquilo que Castro et ali (2009) procuram denunciar, ou seja, a imagem pejorativa do “rural” em relação de oposição ao “urbano”.
A ausência de contextualização do “rural”, presente no livro como um todo, fica evidente quando as autoras explicitam os objetivos da pesquisa, particularmente quando optam por efetuar uma observação do “jovem” em uma determinada realidade — que poderia ser o “rural” (ou, mais adequadamente, os “rurais”). No entanto, a realidade investigada pela pesquisa foi definida como “uma organização de movimento social”, mais especificamente os seus eventos nacionais, implicando como “caminho investigativo uma análise que se debruça sobre a disputa das representações sociais da categoria ‘jovem’” (Castro et ali, 2009, p. 40).
Neste caso, cabe questionar sobre as motivações de se usar a categoria “juventude rural”, tendo em vista que o “rural” funciona como um mero adjetivo genérico em uma análise da juventude atuante em movimentos sociais “rurais”. De outra forma: considerando o interesse do livro em “debater visibilidade e invisibilidade dessa categoria” (idem) — o “jovem” — pode-se questionar até mesmo o sentido de utilizar o adjetivo “rural” junto a essa categoria.
Castro et ali (2009, p. 44) destacam que a “juventude rural brasileira é pouco conhecida”, em especial porque aqueles identificados como tal são “percebidos como uma população específica, uma minoria da população ‘jovem’ do país”. O argumento prossegue com a apresentação de alguns dados oficiais (Pnad, 2006), bem como uma breve citação de dois estudos anteriores. Arensberg e Kimball (1968 apud Castro et ali, 2009) abordam a “juventude” e o “ser jovem” em uma comunidade rural na Irlanda, enfatizando as relações hierárquicas que envolvem a definição de velho e novo, sendo que os “jovens” só se tornam adultos e respeitados quando assumem a pequena propriedade da família. Por outro lado, o mapeamento de Weisheimer (2005 apud Castro et ali, 2009) sobre a temática “juventude rural” aponta a migração e a invisibilidade como fatores principais dos estudos do tema.
Neste ponto, as autoras assinalam a necessidade de buscar novos caminhos para “dessubstancializar” a categoria “juventude rural”. Cabe destacar a seguinte passagem: “um importante recorte analítico consiste em aprofundar o debate teórico e metodológico sobre diversidade, informado por um olhar que privilegie a interseccionalidade” (Stolcke, 2006 apud Castro et ali, 2009, p. 45).
Fica claro na parte destacada que a opção do livro é de se voltar para a categoria “juventude”, abordando as questões de interseccionalidade, fazendo do “rural” algo dado genericamente em oposição ao “urbano”. Isso não afeta os resultados do estudo, desde que sejam relativizados quanto aos problemas do uso da noção de “rural” e que se considere apenas a unidade de análise proposta pelas autoras, pelo fato de não haver uma contextualização do “rural” (ou dos “rurais”) que justifique seu uso.
Uma evidência a mais pode ser apresentada na continuação da construção textual proposta pelas autoras nesta parte específica do livro, quando falam em
desconstruir a categoria juventude, demonstrando como ela é socialmente representada, e perceber em que medida as diferentes visões sobre os jovens demarcam seus lugares sociais, a maneira como estão situados na família e na sociedade, sem desconsiderar a dimensão histórica e estrutural que a categoria comporta (Castro et ali, 2009, p.45).
Castro et ali (2009) acenam para a dificuldade de ir além do referencial urbano acerca do tema “juventude rural”[5]. Neste sentido, assinalam que antigas maneiras de denominar populações não-urbanas — não-pensadas/classificadas originalmente como urbanas — levam a uma reflexão sobre as repartições existentes no senso comum e no meio acadêmico acerca da juventude rural. Desta forma, as autoras chamam atenção para a necessidade de perceber as transformações da juventude a fim de obter um melhor entendimento de práticas e significados distintos do que seja “ser jovem” em diferentes contextos e grupos.
Trata-se de um desafio na construção de análises e pesquisas que optem por descrever e indicar um panorama mais complexo e variado do que possa ser entendido como “juventude rural” ou “jovem rural”. Entretanto, este desafio não foi superado por Castro et ali (2009) na medida em que naturalizaram a noção de “rural”, como mostrado anteriormente.
No entanto, destaco a contribuição das autoras no que diz respeito à análise de um processo social específico relacionado com o “rural”, mas que não pode ser analisado como pertinente à categoria “juventude rural”. Trata-se do engajamento político de jovens que atuam nos movimentos sociais “rurais”, em particular daqueles que participam de eventos nacionais de movimentos sociais ou de juventude.
Castro et ali (2009) chamam atenção para a necessidade de considerar as modificações e transformações nos processos de luta política e conquista de direitos ao acesso a terra. No que diz respeito ao entendimento do papel dos jovens em muitos espaços de atuação política, como os eventos pesquisados no livro, as autoras parecem ter conseguido um avanço significativo em decorrência da pesquisa.
Daí, outro ponto problemático a salientar, ainda em decorrência da frágil contextualização do “rural” neste livro, remete ao uso das categorias “jovem” e “jovem rural” de forma indiscriminada. Em muitas passagens do livro, Castro et ali (2009) constroem a categoria “juventude rural” de forma que fica parecendo — gerando ambigüidade na interpretação — que os “jovens rurais” são aqueles engajados em movimentos sociais rurais, participantes dos eventos que foram pesquisados e analisados.
Cabe destacar, também como ponto “positivo”, que o tema da participação política dos jovens nos movimentos sociais é abordado a partir do resgate do conceito de geração em Mannheim (1993 apud Castro et ali, 2009), tendo a geração como fio condutor. Neste sentido, não se trata de trabalhar com juventude como corte etário a priori, e sim de que forma as percepções sobre geração contribuem para entendermos a construção da identidade juventude nos movimentos sociais rurais no Brasil.
Por fim, na conclusão do livro, a idéia de um continuum urbano-rural aparece quando Castro et ali (2009, p.191) destacam um “meio rural que se aproxima espacialmente da cidade, mas que enfrenta a hierarquia entre campo e cidade, que permanece reproduzida na sociedade brasileira”. Nesta parte, as autoras reforçam a idéia presente no discurso do desenvolvimento rural — e da sociologia rural, objeto da crítica de Martins (1986) — no sentido de valorizar o “urbano” em detrimento do “rural” na medida em que assinalam uma hierarquia que é vivenciada na diferença de acesso a bens e serviços, expressada também em práticas que estigmatizam o “ser do campo”.
Entretanto, a idéia de dualidade, materializando “urbano” e “rural” como pares opostos, permanece como predominante na primeira das três conclusões[6] de Castro et ali (2009), no que diz respeito às identidades rurais e de juventude dos jovens pesquisados. Os principais aspectos envolvidos na descrição das autoras, e que reforçam a dicotomia urbano/rural, são os seguintes:
· A singularidade dos jovens rurais está na identificação do local de moradia e/ou atividade.
· A distância dos espaços escolares.
· A ausência de distinção em relação ao jovem urbano no que diz respeito à corporalidade e caracterização de padrões estéticos, acarretando uma dupla discriminação: na cidade, por serem vistos como “rurais”, e no campo, por serem vistos como “urbanos”.
· Uma recente singularização da juventude no “meio rural”, em um contexto que a caracteriza como “problemática” por conta do tema da migração para a cidade. O paradoxo apontado por (Castro et ali, 2009, p. 192) envolve o fortalecimento dos elementos identitários que reforçam laços com o espaço rural como lugar de vida, de trabalho, de relação com a natureza: “um espaço distinto da cidade, que seria melhor se tivesse acesso a bens e serviços que, atualmente, ainda estão restritos ao espaço urbano”.
Dessa forma, na conclusão do livro que é mais se aproxima com o que este trabalho se propõe analisar, “a identidade rural é construída de forma constrativa em relação ao urbano, sem representar ruptura com a cidade” (Castro et ali, 2009, p. 192). Novamente, se reforça a dualidade urbano/rural.
4. Considerações finais
Nesta parte apenas ressalto, de forma resumida, os principais pontos abordados no desenvolvimento deste trabalho, cujo objetivo foi analisar a noção de “rural” trabalhada no livro Os jovens estão indo embora? Juventude rural e a construção de um ator político (Castro et ali, 2009). A análise se deu a partir da lente interpretativa desenvolvida a partir de Martins (1986), que compreende o “rural” como um objeto socialmente construído pela ambigüidade característica da sociologia.
No livro analisado, a noção de “rural” não é contextualizada, funcionando como adjetivo da categoria “juventude”, que configura o campo analítico da obra em questão. Esta é a principal ausência do livro no que diz respeito aos objetivos deste trabalho, que acaba por comprometer algumas de suas conclusões e análises. Assim, Castro et ali (2009) reforçam a dualidade urbano/rural, criticada por Martins (1986), bem como, com menos intensidade, um continuum rural-urbano. As principais evidências para tal afirmação podem ser encontradas:
1) Na comparação dos resultados quantitativos aferidos pela pesquisa com os parâmetros oficiais sem problematizar a construção da noção de “rural” nas estatísticas oficiais (no caso, a Pnad, 2006). Desta forma, reforça-se a idéia de um “rural” que é construído a partir das ausências em relação ao “urbano”, acarretando problemas metodológicos que afetam a análise das autoras.
2) Nas referências feitas a Wanderley (2006 e 2007 apud Castro et ali, 2009) para tentar caracterizar os “jovens rurais”, reforçando os pares antagônicos da dualidade urbano-rural na medida em que Castro et ali (2009) desconsideram a especificidade dos variados ambientes “rurais” em que vivem os jovens participantes dos eventos nacionais de movimentos sociais “rurais” e de juventude, fazendo com que se tenha a falsa idéia de um “rural brasileiro” homogêneo.
3) Na inadequação do uso da categoria “juventude rural” mediante o empreendimento de pesquisa que foi realizado. O universo pesquisado permite, adequadamente, uma análise dos jovens participantes de encontros nacionais de movimentos sociais “rurais” e de juventude, mas não uma generalização acerca da “juventude rural” como um todo — ou mesmo como ator político, tendo em vista que a participação em movimentos sociais e em encontros, como os que foram pesquisados, não configura a única forma de ação política da “juventude rural”. Assim, as autoras tomam a parte como todo e não justificam, portanto a utilização da noção de “rural”, presente, por exemplo, no título do livro.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:
ABRAMOVAY, R. Funções e medidas da ruralidade no desenvolvimento contemporâneo. Texto para discussão n.702. IPEA, 2000.
CASTRO, E.G. Entre ficar e sair: uma etnografia da construção social da categoria jovem rural. Tese de doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: PPGAS/MN/UFRJ, 2005.
CASTRO, E.G.; MARTINS, M.; ALMEIDA, S.L.F.; RODRIGUES, M.E.B. & CARVALHO, J.G. Os jovens estão indo embora?: juventude rural e a construção de um ator político. Rio de Janeiro: MAUAD X; Seropédica, RJ: EDUR, 2009.
INGOLD, T. Culture and perception of the environment. In: CROLL, E & PARKIN, D (orgs) Culture, environment and development. Londres: Routledge, 1992, pp. 39-56.
MARTINS, José de Souza. As coisas no lugar. In: MARTINS, José de Souza (org.). Introdução Crítica à Sociologia Rural. São Paulo: Hucitec, 1981.
PAHL, P. The rural-urban continuum. Sociologia Ruralis, vol VI, n. 3-4, 1966.
REDFIELD, R. The little community and peasant society and culture. Chicago : Midway Reprint, 1989.
[1] Castro et ali (2009) assinalam, ainda, o acompanhamento de reuniões das coordenações de juventude dos movimentos sociais.
[2] Neste trabalho, tratarei estes eventos como “eventos nacionais dos movimentos sociais ‘rurais’ e de juventude”, com algumas variações textuais.
[3] Com base na sociologia de Durkheim, Martins (1986) destaca a ambigüidade de origem da sociologia como sendo aquela estabelecida entre, de um lado, os postulados supra-empiricos, secularizados, que definem a concepção de sociedade em torno da noção de solidariedade e da idéia de comunidade; e, de outro, percebe uma forma de ver as situações e os fenômenos sociais que permite tratar a realidade como objetivamente dada, coisificada.
[4] Tomando como referência a sociologia rural, Martins (1986) entende que esta ambigüidade no plano da instrumentalização do conhecimento faz como que a valoração do urbano e a constituição desta disciplina apareçam como resultados de uma crise, diagnosticada a partir de outra ambigüidade que expressa outra crise, para ele “verdadeira”: aquela que cria um conhecimento especial, a sociologia rural, com uma proposta implícita que compreende a urbanização e a superação do rural. Desta forma, a sociologia rural “produz” a crise que lhe dá origem e se propõe como meio de superação dessa crise. O autor mostra como, no plano do conhecimento, a solução da ambigüidade de origem da sociologia preserva a identidade interna no objeto construído, fazendo com que, em cada termo da realidade dual construída não haja qualquer ambigüidade.
[5] Castro et ali (2009) destacam que a categoria juventude rural está associada a uma determinada população rural no Brasil: pequenos produtores pauperizados e sem-terra (agricultura familiar), assentados da reforma agrária, camponeses e trabalhadores rurais assalariados. Neste sentido, ficam “de fora”: filhos de grandes proprietários rurais, bem como outras categorias como indígenas, ribeirinhos, quebradeiras-de-coco, seringueiros e, mais recentemente, jovens quilombolas.
[6] O livro apresenta mais duas conclusões, que não cabem no escopo deste trabalho, a saber: a revelação do perfil de uma juventude que se organiza nos movimentos sociais rurais do Brasil e a configuração da juventude como categoria social e política.
* trabalho produzido como parte da avaliação da disciplina Rural e ruralidade na sociedade contemporânea ministrada por Maria José Carneiro no primeiro semestre de 2010 no CPDA/UFRRJ.
Nenhum comentário:
Postar um comentário