Este trabalho constitui um mapeamento inicial sobre a construção da categoria “juventude rural” como campo analítico. A intenção é entender os “jovens rurais” como objeto de pesquisa a ser investigado no âmbito de meu projeto de doutorado no âmbito do CPDA/UFRRJ, que tem como título provisório Os usos da Internet entre os jovens rurais: um estudo etnográfico sobre cultura material, consumo e estilos de vida em Quissamã.
A partir dos conteúdos discutidos ao longo da disciplina, agrego perspectivas analíticas recentes sobre os “jovens rurais” a fim de mostrar possibilidades e limites de se trabalhar com a categoria “juventude rural”. Neste sentido, a relação da categoria “juventude” com as interseccionalidades (de classe, de gênero ou étnicas) são apenas tangenciadas neste trabalho, recorte este que pode ser justificado em função de meu interesse específico em pensar os “jovens rurais” como objeto de pesquisa ou a “juventude rural” como um campo analítico a ser pesquisado. Logo as representações sociais e relações de hierarquia poderão ser percebidas aqui, mesmo que de forma tímida, a partir da categoria “juventude”, mais especificamente da “juventude rural”[1].
Assim, inicialmente, aciono Bourdieu (2003) e Lenoir (1996) para marcar a distinção entre “problema social” e “problema sociológico”, enfatizando as possibilidades de superação de obstáculos inerentes às análises usualmente empreendidas sobre a “juventude” como “problema social”. Na seqüência, utilizo os caminhos de pesquisa adotados por Castro (2006) como fio condutor para apresentar diferentes perspectivas analíticas que podem ser associadas aos “jovens rurais” como objeto de pesquisa. Nas considerações finais, esboço caminhos a serem desenvolvidos durante o trabalho de campo etnográfico que empreenderei.
Nesta sessão, utilizo duas perspectivas para entender alguns dos obstáculos a serem superados para empreender uma análise da “juventude” enquanto problema sociológico de pesquisa. Começo, assim, com a contribuição de Bourdieu (2003), que assinala uma arbitariedade nas divisões entre idades ao considerar a fronteira entre “juventude” e “velhice” como objeto de disputas em todas as sociedades.
A divisão lógica entre os “jovens” e os “velhos” remete a uma discussão sobre “poder”, mais especificamente sobre a divisão dos poderes, na medida em que as classificações por idade impõem limites, produzindo uma ordem onde cada um deve se manter em seu lugar. Cada campo possui leis específicas de envelhecimento, o que confere certa complexidade às relações entre a idade social e a idade biológica. Os cortes em classes ou gerações variam e são manipulados já que “juventude” e “velhice” não constituem categorias dadas, mas construídas socialmente na luta entre os “jovens” e os “velhos”. Assim, a relação entre os “jovens” e os “velhos” se torna vazia, pois somos “sempre o jovem ou o velho de alguém” (Bourdieu, 2003, p. 152).
O recorte das gerações demanda um conhecimento sobre as leis específicas do funcionamento dos campos que se constituem mediante os objetos de luta e as divisões operadas por estas lutas no/do campo. Como a idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável, Bourdieu (2003) alerta que referenciar os “jovens” como uma unidade social ou um grupo constituído, dotado de interesses comuns, bem como relacionar esses interesses a uma idade definida biologicamente, constituem manipulações evidentes. Torna-se necessário, então, analisar as diferentes “juventudes”, mais do que definir “juventude” como uma categoria que conforma um campo homogêneo.
Cabe destacar a ênfase do autor no sistema escolar como um exercício explicativo de sua perspectiva. As “escolas do poder” colocam os “jovens” em recintos separados do mundo, como espaços monásticos onde eles levam uma vida à parte, fazem uma espécie de retiro na medida em que são retirados do mundo e ficam inteiramente ocupados em se preparar para as mais “altas funções”. Esta “retirada simbólica” torna-se importante pela manipulação das aspirações, que constitui um dos efeitos fundamentais da socialização efetuada pela ambiente escolar.
Portanto, além de ser um lugar onde se aprende coisas, saberes e técnicas, a escola configura uma instituição que concede títulos e direitos, conferindo aspirações. Bourdieu (2003) chama atenção para os efeitos do que denomina “inflação escolar”, destacando que se os títulos valem sempre o que valem seus detentores. Com isso, um título que se torna mais freqüente torna-se desvalorizado, perdendo mais valor quando se tornar acessível a pessoas sem “valor social”.
Este breve síntese da análise do autor sobre o sistema escolar remete à constatação de que as aspirações das sucessivas gerações, de pais e filhos, são constituídas em relação a estados diferentes da estrutura da distribuição de bens e de oportunidades de acesso aos diferentes bens. Assim, o que era um privilégio extraordinário para os pais pode se tornar estatisticamente banal para seus filhos. Neste sentido, muitos conflitos de geração são conflitos entre sistemas de aspirações constituídos em épocas diferentes: quando o “sentido dos limites” se perde, aparecem conflitos acerca dos limites de idade e dos limites entre as idades, que têm como objeto de disputa a transmissão do poder e dos privilégios entre as gerações.
No entanto, se nem todos os “velhos” são “anti-jovens”, como pode parecer em uma análise apressada e/ou simplista, Bourdieu (1983) mostra que a “velhice” constitui uma forma de declínio social ou de perda de poder. Com isso, a relação dos “velhos” com os “jovens” pode ser entendida como uma característica de classes[2] em declínio. Assim , os “velhos” podem muito bem ser “anti-jovens”, mas também “anti-artistas”, “anti-intelectuais”, “anti-contestação”, ou seja, eles são contra tudo aquilo que muda e se move porque deixaram o futuro para trás, enquanto os “jovens” podem ser vistos como aqueles que têm futuro e que definem o futuro.
Torna-se interessante, neste ponto, trazer a contribuição de Lenoir (1996), que chama atenção para o fato do sociólogo (mas também os antropólogos e cientistas sociais de modo geral) estar frequentemente diante de representações preestabelecidas dos seus objetos de pesquisa, que induzem à apreensão, definição e concepção destes objetos. Isso traz uma dificuldade à análise sociológica na medida em que essas pré-noções são fortalecidas pelo seu fundamento e função social, pois são produzidas pela experiência banal, harmonizando as ações das pessoas com o mundo que as cerca. As representações, então, são formadas pela e para a prática, configurando uma espécie de ajustamento prático.
O autor entende que as representações de “problemas sociais”[3] configuram um obstáculo difícil de ser superado pelo sociólogo, pois são instituídas como instrumentos que participam da formação da visão corrente do mundo social, tais como os organismos e as regulamentações, bem como as categorias de percepção e pensamento correspondentes a cada um desses instrumentos. Assim, o mesmo “problema social” pode ser constituído por vários motivos, como no caso da “velhice”[4] e da “juventude”, que aparentemente são categorias “naturais” e “evidentes”.
Lenoir (1996) chama atenção para os princípios de classificação do mundo social, como, por exemplo, as particularidades biológicas, como sexo e idade, que servem como critérios de classificação dos indivíduos no espaço social. Se, de um lado, a elaboração destes critérios associa-se ao aparecimento de instituições e agentes especializados, cuja força-motriz e fundamento de atividade encontram-se nessas classificações; de outro, os princípios de classificação têm origem em um trabalho social de produção das “populações” por diferentes instituições — como o sistema escolar, o sistema médico, os sistemas de proteção social, o mercado de trabalho, entre outros.
Desta forma, a idade não é um dado natural e, enquanto instrumento de medição não pode dar corpo àquilo que mede. Trata-se, assim, de uma noção social estabelecida por comparação com os diversos membros de um determinado grupo. A noção de idade, designada em número de anos, configura, assim, um produto de determinada prática social, ou seja, uma medida abstrata cujo grau de precisão pode ser explicado pelas necessidades da prática administrativa.
As categorias que a idade permite distinguir não chegam a formar grupos sociais. Halbwalchs (1972 apud Lenoir, 1996) observa que tais grupos não podem ter consistência já que os indivíduos não se limitam a passar por essas fases, impossibilitando uma definição de tais grupos em termos de idade. Assim, “juventude”, “idade adulta” e “velhice” são categorias definidas de forma bastante diferente, pois a definição social das idades se modifica segundo a composição da população, dependendo da composição numérica das gerações. Logo, não seria possível tratar a idade dos indivíduos como característica independente do contexto no qual ela toma sentido. Da mesma forma que Bourdieu (2003), o autor entende que a fixação de uma idade é produto de uma luta que envolve diferentes gerações.
Lenoir (1996) entende que a idade de um indivíduo resulta de fatores como (1) o metabolismo demográfico, decorrente das variações de taxas de fecundidade e mortalidade, que contribuem para definir o estado da concorrência entre as gerações para a ocupação das posições de poder; (2) a relação de força entre pais e filhos na família e no seio da linhagem; e (3) a capacidade dos “jovens” para colocarem “a opinião pública a seu favor”, demonstrando que detêm qualidades socialmente exigidas para passar de uma para outra faixa etária.
Neste sentido, o autor assinala que o que está em jogo, por exemplo, nas faixas etárias é a definição dos poderes associados aos diferentes momentos do ciclo de vida, sendo que a amplitude e o fundamento do poder variam segundo a natureza das implicações da luta entre gerações. Para o sociólogo, portanto, o objeto de pesquisa consiste, de fato, em uma análise dos agentes que travam essas lutas, das armas utilizadas e das estratégias praticadas, considerando tanto as relações de força entre as gerações e entre as classes sociais, quanto às representações dominantes das práticas legítimas associadas à definição de uma faixa etária.
Se a determinação da idade constitui um pretexto da luta entre as gerações, Lenoir (1996) suscita a seguinte questão: uma sociologia da velhice (mas também da juventude) não aniquila antecipadamente o seu objeto de estudo quando considera como resolvido o que deveria ser explicado?
Desta forma, o objeto de pesquisa de uma sociologia da velhice (ou da juventude) passa pela descrição dos processos pelos quais os indivíduos são socialmente designados como “jovens” ou “velhos”. No entanto, deve-se considerar que a idade cronológica possui uma realidade social, constituindo uma espécie de padrão abstrato, ou seja, um referente que permite fazer comparações, uma norma oficial que é levada em consideração pelos agentes. Torna-se importante, portanto, firmar que “velhice” e “juventude” não são características substanciais definidas pela idade, mas categorias que resultam do estado variável das relações de força entre as classes e, em cada classe, das relações entre as gerações, ou seja, da distribuição do poder e privilégios entre classes e gerações.
Lenoir (1996) entende a “realidade social” como resultado de lutas que se manifestam sob diferentes formas, tais como o estado de direitos, os equipamentos coletivos, as categorias de pensamento, os movimentos sociais, entre outros. O estudo da emergência de um “problema social”, com isso, deve revelar uma “construção social da realidade”, pois condensa todos os aspectos desse processo.
Neste sentido, quando se trata de um “problema social”, como parece ser o caso do tratamento usualmente dado à categoria “juventude rural” que abordo na sessão seguinte, o objeto de pesquisa do sociólogo consiste em analisar o processo pelo qual se constrói e se institucionaliza o que é constituído como tal. O obstáculo encontra-se nas condições em que se processa seu estudo, ou seja, o próprio campo (agentes da gestão da velhice/juventude) do qual ele participa. A superação desse obstáculo envolve revelar as implicações das definições e classificações elaboradas pelos agentes interessados pelo tratamento e gestão da velhice/juventude.
Com isso, Lenoir (1996) entende que um problema social não é apenas resultado do mau funcionamento da sociedade, mas de um “trabalho social” que compreende duas etapas essenciais: o reconhecimento, que torna visível uma situação particular, tornando-a digna de atenção e pressupondo a ação de grupos socialmente interessados em produzir uma nova categoria de percepção do mundo para agirem nele; e a legitimação, uma operação que promove a inserção do “problema social” no campo das preocupações do momento. O autor ainda acrescenta uma terceira etapa que envolve um trabalho específico de enunciação e formulação públicas, ou seja, uma operação de mobilização.
O sociólogo deve contar, portanto, com representações coletivas enquanto realidades parcialmente autônomas que atuam sobre a realidade por meio de ações de explicação, formulação e informação. Trata-se, então, de empreender uma dupla abordagem, rompendo com as definições socialmente admitidas do fenômeno que estuda: de um lado, deve observar as diferenças entre os grupos sociais em relação ao seu objeto; de outro, precisa recolocar essas diferenças em conjuntos mais gerais que podem ser designados por “contexto”.
Desta forma, as categorias que servem de base para a construção da realidade social se apresentam diante do sociólogo como o resultado de lutas que podem assumir diversas formas. Neste sentido, uma dessas formas torna-se interessante para a análise desenvolvida neste trabalho. Trata-se da categoria “juventude rural”, para a qual me volto na sessão seguinte.
A “juventude rural” como campo analítico: aportes e desafios
A “juventude rural” pode ser entendida como uma categoria chave para a reprodução social do campo, em especial da produção familiar na medida em que contribuiria para o “esvaziamento” do meio rural, o inchaço de cidades de pequeno e médio porte, representando uma sinalização em direção ao “fim” do mundo rural. Castro (2006) entende que esta percepção associa a categoria “jovem” a um “problema social”, sendo recorrente nas análises das ciências sociais brasileiras, e, assim, naturalizam o uso de termos como “jovem”, “juventude rural” e “jovem rural” de uma forma auto-evidente.
Ao acompanhar as redes sociais que se configuram em um assentamento rural, a autora percebe que a construção da categoria “juventude rural” aponta para identidades que são permeadas pela circulação dos jovens em diferentes espaços, percebidos como “urbanos” e “rurais”, bem como por relações de autoridade e hierarquia na família e nas esferas coletivas de organização do assentamento. A “juventude” surge, assim, como uma categoria marcada por disputas de classificação que têm nas relações de autoridade paterna uma característica recorrente.
Partindo da auto-percepção e formação de identidades daqueles que são definidos como “jovens” no contexto pesquisado, Castro (2006) busca romper com a substantivação e adjetivação que permeiam definições genéricas e associam esta categoria a problemas e expectativas. O desafio em pauta é “desubstancializar” categorias como “jovem rural”, “jovem da roça” e “jovem do campo”, bem como a construção da categoria “juventude rural”, procurando uma compreensão em seus múltiplos significados.
A autora assinala três movimentos/momentos constituintes de um processo de transformação da categoria “juventude”, partindo de (1) uma definição que considera relevantes os elementos físicos/psicológicos (faixa etária, mudanças físico-biológicas e/ou comportamentais); passando por (2) uma definição substancializada da categoria; e destacando (3) a crítica a esses recortes e busca de outros vieses. Neste sentido, o campo analítico constituído pela categoria “juventude” aparece frequentemente associada tanto a determinados problemas sociológicos, quanto a agentes privilegiados de transformação social. Na seqüência procuro abordar brevemente cada uma dessas abordagens.
O tratamento da “juventude” como uma categoria auto-evidente ou auto-explicativa, tendo a idade ou o comportamento como definições metodológicas, é retomado nos anos 1990. Weisheimer (2004 apud Castro, 2006) entende que o recorte desta categoria a partir de uma faixa etária específica se pauta pela definição de “juventude” como período de transição entre a adolescência e o mundo adulto. Castro (2006) ressalta que a idade como classificadora é transitória, remetendo à Bourdieu (2003), ao relacionar as idades biológica e social de forma indissociável, pois entende que a idade é socialmente construída e varia em cada sociedade, nos diferentes momentos históricos e a partir de distinções de idade, gênero e classe.
Outra abordagem parte da idade como construção social com base em conceitos de geração (Mannheim, 1982 apud Castro, 2006): duas gerações convivem em dado contexto histórico, sendo que a “juventude” é vista como um momento no ciclo de vida de todo indivíduo, em oposição à condição “adulta”. Novamente, Castro (2006) recorre à Bourdieu (2003), para apontar que a noção de geração é construída relacionalmente — por oposição, mais que por aproximação — para questionar o uso de termos como “jovem”, “juventude” e “velho” como dados a priori.
Diferentemente, uma substantivação dos termos “jovem” e “juventude” pode levar a generalizações arriscadas, como a procedida por Margulis (1996, p. 9 apud Castro, 2006, p. 8), que qualifica juventude como uma vanguarda transformadora dos códigos de cultura, capaz de incorporar as mudanças de costumes e significados, que foram objetos de luta na geração anterior, realçando “sua sensibilidade, percepção, visão de mundo, atitudes, estética, concepção de tempo, valores, velocidades e ritmos indicam uma comodidade de ser-no-mundo”. Castro (2006) alerta para o fato de que esse olhar heróico da juventude como agente de transformações sociais, tendo o jovem como um ator privilegiado, desconsidera o tratamento da construção nativa dessa categoria ou dos múltiplos significados que ela carrega, reforçando a característica transformadora inerente ao jovem.
Uma visão que inverte esse olhar associa o jovem à delinqüência, retratando determinados indivíduos que teriam em comum a idade e uma forma de comportamento. Já definições como “jovens em situações de risco” configuram a base de programas sociais que pretendem reintroduzir na sociedade esses “excluídos”. Castro (2006) entende que estas duas perspectivas apontam os “jovens” como dotados de características que definem determinados indivíduos a priori.
Na análise das percepções sobre “juventude rural”, a autora observa similitudes com as abordagens sobre “juventude” ou “juventude urbana”. Neste caso, a “juventude” deveria ser impedida de completar seu destino: a migração do campo para a cidade e o conseqüente fim do mundo rural, em especial do trabalho familiar. Desta maneira, a “juventude” pode ser o agente de uma transformação social que resgate o campo, o que se reflete na existência de programas sociais que visam “manter o jovem no campo” e “empoderá-los” de capacidade de liderança.
Assim, a categoria “juventude” aparece associada a determinados substantivos e adjetivos, como “vanguarda”, “transformadora”, “questionadora” (Margulis, 1996 apud Castro, 2006), em uma adjetivação que subentende papéis sociais privilegiados para estes atores. No entanto, “jovem” também é adjetivado como “em formação”, “inexperiente”, “sensível”, bem como associado à delinqüência, violência, “comportamento desviante”, ou seja, visto como um agente que precisa ser formado e direcionado para assumir seu “papel social” e que pode se desviar, precisando, assim, ser controlado (Bernstein, 1977 apud Castro, 2006).
A autora entende que estes adjetivos se aproximam, pois partem da visão do “jovem” como um ator social com certas características e atributos, cujo ponto de partida é uma categoria genérica, ou como Bourdieu (1989 apud Castro, 2006) e Lenoir (1996) chamam atenção: uma categoria “pré-construída”, partindo de formulações que pressupõem um consenso sobre a existência de um “jovem” e de uma “juventude” em uma perspectiva que homogeneíza a categoria na busca de construção de um objeto, de um conceito que possa ser paradigma. Por isso, a pouca precisão — que pode ser percebida pela alternância entre termos como “jovem”, “juvenil”, “juventude”, “adolescente” — aponta para uma percepção sobre “juventude” como um momento de transição para o mundo adulto, que é incapaz de produzir uma “cultura” própria, limitando-a enquanto campo analítico.
Neste sentido, Castro (2006) reforça a necessidade de buscar novos caminhos para dessubstancializar essa categoria, que não se constitui somente porque certo campo do conhecimento define que todos são “jovens” ou mesmo por uma apropriação do senso comum reproduzido no cotidiano que sugere quem é “jovem” e quem não é. Desta forma, esta é uma marca deste campo temático se mostra passível de problematização em uma análise sociológica.
No assentamento rural pesquisado pela autora, por exemplo, os usos do termo “jovem” apontam para um sentido genérico e naturalizado, ou mesmo associado a problemas e expectativas. Daí, o esforço de Castro (2006) consiste em observar de quem se está falando quando esses termos eram usados, bem como quais são os significados e as interações que conferem um conteúdo a essa categoria.
Desta forma, pensar “jovem” em uma determinada realidade implica propor como caminho investigativo uma análise das disputas sobre representações sociais da categoria “jovem” em um dado universo, o que, no caso da “juventude rural”, também envolve uma disputa “dentro” e “fora” dos significados do “rural”. As diferentes construções do que é “ser jovem” para esses indivíduos variam nos espaços por onde transitam e de acordo com as posições sociais que ocupam. No assentamento rural pesquisado pela autora, “ser jovem” carrega a marca da pouca confiabilidade na hierarquia das relações familiares, mesmo quando assume posição de destaque nos discursos sobre a continuidade do assentamento.
Com isso, no debate sobre a categoria “juventude rural”, em sintonia com Lenoir (1996), Castro (2006) coloca o desafio de aproximação das duas formulações, colocando a "aventura antropológica" como condição para aprofundar a compreensão dos processos de construção da categoria. Se diversas matrizes apontam esta categoria como socialmente construída, permeada por diferentes interesses, realidades e, assim, multifacetada, ao mesmo tempo, a reflexão sobre as propostas e projetos de políticas públicas e as diversas formas de auto-expressão e auto-organização reforçam e sustentam que essa categoria se constrói e se reconstrói enquanto ator social.
Neste ponto, passo a destacar alguns aportes recentes que pensam as categorias “juventude” e/ou “juventude rural” nas ciências sociais brasileiras. A seqüência abaixo considerou duas obras recentes: Retratos da juventude brasileira (Abramo & Branco, 2005) e Juventude rural em perspectiva (Carneiro & Castro, 2007). Devo destacar que não tive a pretensão de me aprofundar na análise de cada um dos artigos que compõem esses livros, mas tão somente pontuar as possibilidades analíticas inerentes ao campo da “juventude rural”.
Neste sentido, começo por Abramo (2005), que considera uma dupla dimensão na análise da categoria “juventude”. A primeira é “condição juvenil”, ou seja, o modo pelo qual uma determinada sociedade constitui e atribui significado a este momento do ciclo de vida, constituindo uma dimensão histórico-geracional. Outra dimensão é a “situação juvenil”, que reflete a forma que tal condição é vivida a partir das diferenças sociais.
Neste sentido, a pesquisa realizada pelo Instituto Cidadania, de caráter quantitativo, serviu de base para a elaboração do livro Retratos da juventude brasileira (Abramo & Branco, 2005). Por mais limitado que seja se falar de uma “juventude brasileira”, as análises que compõem a obra enfatizam diferentes possibilidades de olhar a categoria “juventude”, partindo de dados obtidos por métodos quantitativos.
Com isso procura a compreensão da condição juvenil no Brasil passa por aspectos como os processos de institucionalização e socialização inerentes à relação entre juventude e escola (Sposito); o trabalho no imaginário da juventude (Guimarães); o lazer e o tempo livre dos jovens brasileiros (Brenner et al); as percepções destes jovens acerca de questões envolvendo a sexualidade e a saúde reprodutiva (Calazans); a religiosidade (Novaes); a questão do negro (Santos et al); o uso de drogas (Carlini-Marlatt); e a cultura política e a participação democrática (Krischke). O campo analítico da categoria “juventude”, portanto, perpassa diferentes campos de análise da sociologia, abrindo vastas perspectivas de pesquisa.
Este livro traz um capítulo específico sobre “juventude rural”. Com ênfase nos projetos e valores em jogo, Carneiro (2005) destaca (1) o pouco investimento de pesquisa em torno dos “jovens rurais”, quando comparado à produção que busca compreender a população “jovem” dos grandes centros; (2) o caráter fluido, impreciso, variável e heterogêneo da categoria “juventude rural”, ainda extremamente relacionada com o trabalho, o que invisibiliza a participação dos “jovens” nas demais esferas da vida social (Durston, 1994 apud Carneiro, 2005); e (3) as imprecisões relativas ao entendimento do “rural”, acentuadas pela intensificação da comunicação entre os universos sociais do campo e da cidade.
Carneiro (2005) levanta questões importantes, tais como: (1) as semelhanças entre os “jovens” do “campo” e da “cidade” que, mesmo com o reconhecimento da heterogeneidade das maneiras de viver e dos valores da “juventude” em diferentes contextos, são afetados por uma mesma ordem de problemas de uma sociedade globalizada e “subdesenvolvida” como a brasileira; (2) a ambigüidade de valores inerentes aos “jovens rurais”, entre manter uma identidade afetiva ao modo de vida local e familiar, de um lado, e uma auto-imagem refletida na cultura “urbana”, “moderna”, que aparece como referência para suas elaborações de projeto para o futuro; (3) a necessidade de ampliar os espaços de inclusão social — especialmente em relação ao mercado de trabalho e as opções de educação e lazer — como condição para a permanência da “juventude rural” em seus universos de origem; (4) a possibilidade de encarar a combinação da atividade agrícola e não-agrícola como saída para aumento do rendimento familiar e individual, bem como espaços valorizados de inserção econômica e social da mulher; sendo que (5) a dimensão de gênero deve ser levada em conta pela relação com questões como a herança, a hierarquia entre gêneros no interior da família e as condições de reprodução social da agricultura familiar.
No que se refere à situação juvenil, Abramovay et ali (1998 apud Martins, 2008) entende a migração e a continuidade da profissão de agricultor e do meio rural como parte do debate atual sobre os jovens rurais. Ao partir de uma etnografia dos jovens de um assentamento rural na Baixada Fluminense, Castro (2005) relaciona o dilema “ficar e sair”, bem como a questão da herança e da sucessão, à compreensão de “jovem rural” como uma categoria social pressionada pelas mudanças e crises da realidade “deste” campo. Este dilema envolve determinantes objetivos e subjetivos, como, por exemplo, o significado que os “jovens rurais” atribuem ao meio rural.
Com isso, a noção de “ruralidade” em um contexto de intensificação das trocas entre “campo” e “cidade” pode contribuir para pensar o "rural" e o "urbano" do ponto de vista dos agentes sociais que realizam esta interação. Neste sentido, Carneiro (1998, p. 59) procura romper com a dualidade entre estas categorias ao apontar a inutilidade da distinção urbano/rural como questão sociológica, pois “cada espaço contém em si contradições e conflitos resultantes da relação entre sistemas de valores e interesses distintos, quer sejam eles tidos como de origem ‘urbana’ ou ‘rural’”.
Desta forma, uma ruralidade pode ser pensada como um estilo de vida, pois compreende um “processo dinâmico de constante reestruturação dos elementos da cultura local com base na incorporação de novos valores, hábitos e técnicas” (Carneiro, 1998, p. 61). Trata-se de um movimento duplo, envolvendo “a reapropriação de elementos da cultura local a partir de uma releitura possibilitada pela emergência de novos códigos” e “a apropriação pela cultura urbana de bens culturais e naturais do mundo rural”.
Para Wanderley & Lourenço (1994, p. 25 apud Carneiro, 1998, p. 61), “não se trata mais de englobar um microcosmo, relativamente autônomo, em um macrocosmo socioeconômico, mas de ultrapassar as fronteiras entre o 'local' e o 'global', pela experiência de uma cidadania concreta vivida". Ao pesquisar os “jovens” de municípios rurais em Pernambuco, Wanderley (2007) sugere que a especificidade da “juventude rural” encontra-se na dinâmica de trocas entre os espaços rurais e urbanos. Com isso, ao invés de distintos e superpostos, ou diluídos, passam a ser compreendidos como espaços de vida da “juventude rural”.
Enfim, Wanderley (2007) define os jovens rurais como aqueles que vivem o momento do ciclo de vida caracterizado pela transição entre infância e a idade adulta no mesmo contexto histórico de outros jovens, mas com a especificidade de terem o meio rural como espaço de vida, uma marca de sua situação juvenil. Além disso, Martins (2008, p. 20) aponta que estes jovens vivenciam uma “mobilidade, espacial e simbólica, entre universos rurais e urbanos, expressa tanto na dinâmica cotidiana, como nas identidades e formulações de projetos de vida”.
Por fim, cabe também apontar alguns dos recortes analíticos presentes no livro Juventude rural em perspectiva (Carneiro & Castro, 2007) que remetem a proposta de pesquisa que desenvolverei. Considerando uma perspectiva pós-moderna para analisar os motivos dos “jovens” sobre sua decisão de sair do campo, ressaltando as representações negativas destes “jovens” sobre a atividade agrícola, bem como a sucessão geracional dos estabelecimentos agrícolas, Brumer (2007) sugere dois eixos de pesquisa: (1) entender os motivos da permanência dos jovens no meio rural, conhecendo efetivamente a instalação dos “jovens”, suas condições de vida e trabalho, bem como suas representações com base na realidade em que vivem; e (2) examinar os aspectos que favorecem a instalação dos “jovens” como agricultores e os motivos de fracasso na sucessão geracional dos estabelecimentos familiares.
Ao tentar reconhecer os “jovens” em relação às novas mentalidades no cenário rural, Carneiro (2007) considera o “rural” como espaço de vida e pluriatividade. Assim, a permanência dos “jovens” cada vez mais parece se relacionar com suas demandas por um contexto que concretize “o melhor dos dois mundos”, “urbano” e “rural”. Esta síntese constitui uma nova ruralidade, relacionada com o desejo destes jovens “de vencer o isolamento, integrando, efetivamente, o meio rural à sociedade brasileira” (Wanderley, 2007, p. 33).
Tangenciando o projeto de pesquisa que irei desenvolver, parece que a inclusão digital e virtual propiciada pelo uso do computador e da Internet está cada vez mais presente nas demandas dos jovens rurais, configurando uma possibilidade de “abrir as janelas do mundo rural para um universo desconhecido e ilimitado” (Carneiro, 2007, p. 63).
Neste sentido, Stropasolas (2007, p. 284) analisa a inserção social do jovem em um marco reflexivo e assinala que a “inclusão digital e o acesso à informação e à comunicação interpessoal, cada vez mais demandados por estes jovens (...) muda a maneira de estar no mundo porque muda o tamanho do mundo”. Assim, os usos da Internet podem abrir uma possibilidade de alargamento do mundo cultural no imaginário destes jovens e de suas demandas, o que poderá vir a ser percebido ao longo da pesquisa a ser desenvolvida.
Considerações finais:
A partir do mapeamento inicial empreendido neste trabalho, pude perceber que a categoria “juventude rural” pode oferecer ricas perspectivas analíticas. Para tal, três pontos configuram procedimentos fundamentais:
· O mapeamento das “juventudes” em um contexto de pesquisa envolve perceber os conflitos de geração que surgem quando o sentido dos limites entre “jovens” e “velhos” se perde, instaurando disputas pela transmissão do poder e dos privilégios entre as gerações. Trata-se de empreender uma dupla abordagem, compreendendo, de um lado, observar as diferenças entre os grupos sociais em relação ao seu objeto; e, de outro, recolocar essas diferenças em conjuntos gerais que podem ser designados por “contexto”.
· A “juventude rural” configura um campo analítico a partir de uma análise dos “jovens rurais” como agentes que travam as lutas geracionais, bem como as armas que utilizam e as estratégias que praticam nestas lutas. Isso envolve perceber as relações de força entre as gerações e classes sociais, bem como as representações dominantes das práticas que definem os “velhos” e os “novos” no contexto pesquisado. Assim, a “velhice” e a “juventude” são categorias que resultam do estado variável das relações de força entre as classes e, em cada classe, e das relações entre as gerações, ou seja, da distribuição do poder e privilégios entre classes e gerações.
· O desafio de se trabalhar com os “jovens rurais” como objeto de pesquisa é “desubstancializar” categorias como “jovem rural”, “jovem da roça” e “jovem do campo”, procurando uma compreensão em seus múltiplos significados. Isso envolve observar de quem se está falando quando esses termos são usados no contexto pesquisado, bem como quais os significados e as interações que conferem conteúdo a essa categoria. O caminho investigativo compreende, portanto, uma análise das disputas sobre representações sociais da categoria “jovem” em um universo, o que, no caso do campo analítico da “juventude rural”, também envolve uma disputa “dentro” e “fora” dos significados que o “rural” pode assumir.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
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[1] Entendo que as dimensões interseccionais apresentadas ao longo da disciplina podem contribuir para pensar o trabalho de campo que será empreendido. No entanto, neste exercício, procuro apenas entender o campo analítico formado pela categoria “juventude rural”, o que se torna fundamental, a meu ver, neste estágio inicial da pesquisa. Neste sentido, entendo que a perspectiva das interseccionalidades será de grande valia para remodelar meu projeto de entrada no doutorado do CPDA/UFRRJ, com vistas ao “Seminário de Tese”, disciplina a ser cursada no primeiro semestre de 2011.
[2] O termo aqui remete à noção de classe de Thompson (1963), ou seja, uma relação histórica que precisa ser encarnada em pessoas e contextos reais. Assim, a noção de classe é dada pelos homens (e mulheres também) a partir de suas experiências comuns, na medida em que sentem e articulam a identidade dos seus interesses entre si e contra outros homens (e mulheres) cujos interesses divergem e, geralmente, se opõem.
[3] Lenoir (1996) entende que uma das particularidades dos problemas sociais é que se encarnam nas “populações” que apresentam “problemas” a serem solucionados. O autor destaca que a constituição de “problemas sociais” varia conforme as épocas e regiões, podendo desaparecer quando subsistem os fenômenos designados por eles (como é o caso da pobreza e do racismo).
[4] Cabe destacar que Lenoir (1996) se volta para uma análise da “velhice”, sendo que tento aqui efetuar paralelismos possíveis com a categoria “juventude”, tendo em vista o que Bourdieu (2003) chama atenção acerca das lutas entre “velhos” e “novos”.
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