sexta-feira, 25 de março de 2011

A ENTREVISTA EM PROFUNDIDADE

  1. Introdução:

  • Termo empregado pela primeira vez em 1869, em língua inglesa (interview), existente enquanto verbo (“ter um encontro pessoal”), desde 1548, com origem etimológica francesa (entrevue), com raízes nos termos latinos inter (“entre ver”) e videre (“ver mutuamente”), “ter um encontro cara a cara”.
  • Nas Ciências Sociais, uma forma especial de encontro: conversação com finalidade de coletar informações para uma pesquisa. Segundo Fideli e Marradi, é a técnica mais utilizada, com estimativas de 90% dos estudos empíricos se valendo de alguma forma delas.
  • Essas estimativas não são exageradas: análise dos resumos, dos métodos e técnicas utilizadas nas pesquisas mostram que 43% dos 117 mil trabalhos da Sociological Abstracts e 43% das enquetes e sondagens utilizam entrevistas, somam 86% dos estudos empíricos. Fora as observações participantes (3,9%) e as experiências (9,7%). Algum uso, e não uso exclusivo de entrevistas. Na observação de campo da tradição antropológica é vista como complemento. Na sociologia e outras ciências sociais, ocupam lugar central.
  • Como forma de conversação, a vida cotidiana e os processos de socialização podem constituir uma base para caracterização preliminar e aprendizado da entrevista (Valles e Alonso). A troca de informações e as competências para realizá-las, adquiridas com a socialização, através da linguagem e da fala, seguida por um conjunto de saberes que tornam possíveis tais interações verbais SÃO cruciais também na prática da entrevista de pesquisa social.
  • Existem, também na vida cotidiana, trocas mais formalizadas que podem ser definidas como entrevistas profissionais (consulta médica, entrevista psicoterápica, seleção de pessoal). A entrevista de pesquisa social é uma forma especial de conversação profissional que se diferencia das demais pelo seu objetivo primário de conhecer as atitudes e condutas do entrevistado. Essa finalidade cognitiva lhe confere um caráter acadêmico-científico.
  • Entrevista em profundidade (Alonso): forma especial de conversação entre duas pessoas (também existem formas de entrevista grupal), dirigida e registrada pelo pesquisador para favorecer a produção de um discurso contínuo e linear de argumentação do entrevistado sobre um tema de interesse definido por uma pesquisa.

  1. Tipos de entrevista:

  • Nas Ciências Sociais, existem diferentes tipos de entrevista e diferentes formas de classificá-las. Fideli e Marradi propõe uma tipologia baseada em dois critérios:
a)    a presença, ou não, de um contato visual direto entre entrevistador e entrevistado;
b)    o grau de liberdade concedido aos atores em situação de entrevista, seja para perguntar ou para responder (o mais utilizado na classificação da entrevista).
·         Burgess: afirma que a menor estruturação se dá nas conversas espontâneas que surgem como complemento da observação de campo. No outro extremo, estão as entrevistas estruturadas das enquetes e sondagens, que aplicam de modo uniforme um questionário fechado que contém as perguntas a realizar, numa dada ordem, e todas, ou quase todas, as opções possíveis de resposta.
·         Pode-se pensar um continuum entre esses dois pólos. Para simplificar (tabela, pág. 217), os autores apresentam uma tipologia em que o grau de espontaneidade da interação verbal (diretamente relacionado com o nível de estruturação prévia de perguntas e respostas) se limita a três pontos (baixo, médio e alto), dando lugar a formas estruturadas, semiestruturadas e não estruturadas de entrevista. Por outro lado, o critério do tipo de contato entrevistador-entrevistado limita-se a relação pessoal (face a face), contato telefônico e a interação virtual.
·         Na tabela, estão hachuradas as formas de entrevista que podem ser consideradas “em profundidade”. Como as versões telefônicas e virtuais encontram-se menos difundidas, os autores se concentraram nas entrevistas face a face. As formas estruturadas foram tratadas no capítulo anterior. Até agora se supôs uma relação entre um entrevistador e um entrevistado, apesar de existirem formas de entrevista grupal, como o grupo focal, que foi tratada no capítulo seguinte do livro.
·         Não existe na metodologia das Ciências Sociais uma terminologia única para entrevistas, utilizando-se diferentes expressões para o que os autores chamam de “entrevista em profundidade”. Especialmente no caso das menos estruturadas, se fala com freqüência de entrevista aberta, não dirigida, não estruturada, intensiva, qualitativa, hermenêutica. No caso de entrevistas não estruturadas, Combessie recorre à expressão “entrevista centrada”, enquanto Merton e Kendall propõem entrevista focalizada (um tipo semi-estruturado mediante recebimento pelos entrevistados de um estímulo específico – assistir um filme, ler um livro - ou participação em uma situação social cuja experiência subjetiva era objeto da entrevista).

  1. Caracterização da entrevista em profundidade:

  • Rosenblum: estrutura paradoxal de uma interação explicitamente instrumental e muito circunscrita no tempo - entre pessoas que são relativamente estranhas – exigindo a intimidade e impessoalidade, profissionalismo em um marco de sociabilidade.
  • Alonso: se trata fundamentalmente de um processo comunicativo pelo qual o pesquisador extrai uma informação de uma pessoa. Mas não qualquer tipo de informação, sim aquela que está contida na biografia do entrevistado, aquela que se refere ao conjunto de representações associadas a acontecimentos vividos pelo entrevistado. Nesse sentido, a informação que interessa ao investigador foi experimentada e interpretada pelo entrevistado, parte do seu mundo da vida que agora passa a ocupar o centro da reflexão, sendo problematizado e narrado.
  • Guber: a entrevista é um processo que se põe em jogo uma relação social entre dois atores, o entrevistador e o entrevistado, com muitos sentidos assimétricos, onde o entrevistador deve ser capaz de refletir sobre seu papel, suas escolhas e a direção e o sentido de sua pesquisa.
  • Montesperelli: o entrevistador deve ter uma persistente atitude de abertura e estar disposto a encontrar aquilo que não esperava, movendo-se constantemente entre a observação e a conceitualização.
  • Papel estratégico do entrevistador: 1) não direcionar as respostas; 2) assumir que o entrevistado é o verdadeiro conhecedor do tema da entrevista e que este consegue explicitar seu próprio conhecimento; 3) limitar-se a estimular a fala do entrevistado através da conversação. Não é tão simples: deve ser consciente dos problemas implicados na conversação e deve comunicar com naturalidade e sensibilidade. Sua função principal é escutar.
  • Entrevista em profundidade se caracteriza pelo alto grau de subjetividade (principal traço e maior limitação).
  • Alonso: hipersubjetividade >> entrevistado é um ser que relata histórias mediadas pela sua memória e interpretação pessoal: informação não deve ser apreciada como verdadeira ou falsa, mas como produto de um indivíduo em sociedade, cujos relatos devem ser contextualizados e contrastados.
  • Alonso: não se expressa simplesmente uma sucessão de acontecimentos vividos sem a verbalização de uma apropriação individual da vida coletiva; não se trata de registrar eventos ou datas, mas um jogo de estratégias comunicativas a partir da qual se registra um “dizer sobre o fazer”.
  • A relevância do resultado desse jogo comunicativo depende das capacidades, perspicácia e personalidade do entrevistador.
  • A viabilidade do jogo se baseia no estabelecimento de um contrato comunicativo que envolve um conjunto de SABERES IMPLÍCITOS (códigos lingüísticos, culturais e regras sociais que fazem possível a comunicação interpessoal em um dado contexto) E EXPLÍCITOS (tema do objeto de conversação e os fins da investigação: quem? Para quem? Por que?) compartilhados pelo entrevistador e pelo entrevistado, que tornam possível o funcionamento da entrevista.
  • A entrevista se funda numa interação verbal e requer uma abertura à comunicação e a aceitação de suas regras.

  1. Usos da entrevista nas Ciências Sociais: vantagens e limitações:

  • Usada, em geral, quando se deseja saber sobre a perspectiva dos atores, conhecer como eles interpretam suas experiências nos seus próprios termos.
  • Montesperelli: destaca virtudes para investigar o mundo da vida cotidiana.
  • Alonso: aplicável quando o objetivo é reconstruir ações passadas; estudar representações sociais personalizadas; analisar relações entre o conteúdo psicológico pessoal e a conduta social; ou explorar campos semânticos, discursos arquétipos de grupos e coletividades.
  • Valles: sistematização dialética das vantagens e limitações.

Vantagens:
1) permite obter de maneira flexível uma informação rica e profunda, nas próprias palavras dos atores;
2) proporciona a oportunidade de clarificação de uma forma mais dinâmica e espontânea que as entrevistas estruturadas de uma enquete;
3) nas fases iniciais de um estudo: realizar as primeiras aproximações com o tema;
4) nas fases finais: enriquecer os resultados de indagações quantitativas ou qualitativas, através de contraponto ou compreensão mais aprofundada das questões;
5) comparada com a observação participante, a entrevista tem a capacidade de permitir acesso a informações difíceis de conhecer sem a mediação do entrevistador;
6) possibilidade de conhecer, pelos relatos dos atores, situações que não são diretamente observáveis, entre elas o passado: recentemente, uso para estudo do passado próximo e formas de apropriação individual e coletiva (memória);
7) maior intimidade que nas entrevistas grupais.

Limitações:
1) em relação à enquête, desvantagem em termos de tempo;
2) menor capacidade de captar fenômenos com grande dispersão territorial e/ou tipológica,
3) menor capacidade de generalizar os resultados;
4) Maior complexidade do registro, processamento e análise;
5) problemas potenciais de reatividade, confiabilidade e validade;
6) comparada com a observação participante, tem como restrição a impossibilidade de observar os fenômenos no seu ambiente natural: validade ecológica (Cicourel).

  • Apesar da utilidade para acessar o universo das significações dos atores (sistemas de representações, crenças, normas, valores, noções), reconhece-se que a efetiva realização das vantagens da entrevista e a minimização de suas desvantagens está condicionada pela capacidade de empatia do entrevistador e sua habilidade para criar um clima que favoreça a comunicação. Nisso influenciam as características pessoais do entrevistador: gênero, idade, classe social, etnia, entre outras; são questões que podem potencializar as vantagens ou desvantagens da entrevista em profundidade.

  1. Preparação e planejamento da entrevista:

  • Não tem regras fixas, para muitos autores é uma prática artesanal, que depende muito do conhecimento pessoal e sensibilidade do entrevistador.
  • Combessie: arte da entrevista, cada entrevistador tem um estilo próprio de conduzir, derivado de um saber prático acumulado e das características singulares da relação entrevistador-entrevistado.
  • Alonso: entrevista refrata qualquer critério científico de definição da ferramenta metodológica.
  • Não se trata de prática totalmente anárquica, havendo questões que podem ser planejadas, reconhecendo diferentes graus de realização possível das decisões anteriores à prática. Esse planejamento, ou reflexão sistemática prévia, contribui para potencializar as capacidades artesanais do pesquisador.
  • PRIMEIRA QUESTÃO: seleção dos sujeitos a entrevistar.
  • Critérios diferem das sondagens, por dois motivos importantes:
a)    as entrevistas em profundidade se empregam normalmente nos casos nas pesquisas “sem padrão”, que não têm como objetivo principal a generalização estatística de seus resultados.
b)    pelas características da entrevista, a quantidade que se pode levar a cabo em um estudo é reduzida, muito inferior aos levantamentos aleatórios quantitativos.
·         Não existe um critério único, alternativo à aleatorialidade. Valles, seguindo Gorden, propõe uma série de perguntas-guia, consecutivas, para reduzir, gradualmente, o foco dos potenciais entrevistados:
1)    Quem tem informação relevante para a pesquisa?
2)    Desses, quem são os mais acessíveis física e socialmente?
3)    Quais dentre eles estão mais dispostos a cooperar, fornecendo informações ao investigador?
4)    Cumprindo todos os requisitos anteriores, quais são os mais capazes de comunicar a informação de interesse com precisão?
·         Para responder as perguntas-guia e tomar as decisões de seleção, recorre-se a uma série de estratégias diferentes que podem ser empregadas separadamente ou combinar-se em uma pesquisa:
a)    Amostra intencional: mais conhecida, o pesquisador seleciona os entrevistados de acordo com um conjunto de critérios relevantes, que podem mudar de uma pesquisa para outra. Frequentemente são considerados quatro aspectos:
i)  homogeneidade / heterogeneidade da população de referência a partir do ponto de vista do estudo;
ii) tipicidade / marginalidade / representatividade dos sujeitos;
iii)    as variáveis sociodemográficas (sexo, idade, escolaridade, nível socioeconômico);
iv)   outras questões que permitam diferenciar as pessoas em função do fenômeno de interesse.
Considerando um ou mais aspectos combinados, é freqüente segmentar a população, formando subgrupos dos quais se selecionará um ou mais entrevistados a fim de ter um panorama amplo de diferentes experiências e discursos.
b)    Bola de Neve: quando os entrevistados não são facilmente identificáveis pelo investigador. A partir de um ou uns poucos contatos iniciais, valendo-se das redes de contatos pessoais dos entrevistados, busca-se ampliar progressivamente o grupo de potenciais entrevistados que tenham as características que os fazem pouco visíveis e acessíveis.
c)    Amostra Oportunista: selecionam-se aqueles sujeitos propensos a colaborar no estudo, aos quais o pesquisador tenha acesso garantido.
·         Questão importante: número de entrevistas que devem ser feitas em uma pesquisa >> seguir o critério de SATURAÇÃO: deve-se seguir realizando entrevistas até que se alcance a certeza prática de que novos contatos não aportam elementos desconhecidos acerca da pesquisa ou não emergem aspectos que não tenham sido já tratados.
·         Outro preparativo-chave: um roteiro de entrevista, antecipando as formas de abordar o problema central e as questões secundárias >> perguntas de espectro mais amplo no início, assim como uma série de questões e argumentos que sirvam para passar de um assunto a outro ou para motivar o entrevistado. O nível de detalhe pode variar, originando entrevistas mais ou menos estruturadas.
·         Em geral, existe uma relação direta entre o grau de familiaridade com o tema e a capacidade de pensar de antemão um roteiro de entrevista.
·         Mesmo com um roteiro detalhado em mãos, deve-se lembrar que a entrevista não deve se transformar em um interrogatório. O roteiro deve funcionar como um lembrete, uma ajuda instrumental que permita cobrir os temas relevantes de acordo com os objetivos da investigação, sem impor uma ordem determinada nem limitar de modo rígido as questões a tratar.
·         Combessie: a entrevista deve seguir sua própria dinâmica.
·         É comum que o roteiro se construa ao longo de um processo que o investigador vai ganhando familiaridade com o tema e os entrevistados, a partir de leituras específicas e pesquisas exploratórias que permitam completar, modificar e refinar o roteiro, até alcançar convicção de que ele cobre todos os aspectos relevantes. 
·         Alguns aspectos relativos ao pesquisador-entrevistador, já que algumas características (gênero, idade, classe social, etnia, aparência, entre outras) exercem influência decisiva nos discursos que podem surgir ao longo de uma conversação. Algumas dessas questões não são controláveis / manipuláveis, e, no caso em que são consideradas decisivas (quanto a um impacto negativo nos resultados), deve-se levar em consideração a possibilidade de outro membro da equipe realizar a entrevista.
·         Algumas questões podem ser pensadas de antemão: roupas, tipo de linguagem a ser empregada, as formas de realizar o contato e a apresentação. É responsabilidade do entrevistador adaptar-se aos códigos do entrevistado, devendo pensar nisso na fase de preparação da entrevista.
·         Outros preparativos: seleção do lugar (aspecto menor, mas os discursos podem estar condicionados pelo contexto em que são produzidos) e a forma de registro da entrevista (gravador, com consentimento do entrevistado, não deixa que se percam detalhes e permite que o entrevistador se concentre na conversação).
·         Ferrarotti: não existem somente as palavras, mas também os gestos, as expressões faciais, os movimentos das mãos, a luz dos olhos. O gravador permite que se atente para essas expressões corporais.
·         Argumentos de que o gravador gera certa aversão por parte do entrevistado X uma pessoa que escreve tudo que o entrevistado fala (com desvantagem de perder outros detalhes da interação e interromper a fluidez da conversação). Tecnologias de gravação digital: dispositivos se tornam imperceptíveis logo após o início da entrevista.
·         Apesar de todas as possibilidades de preparativos, a situação de entrevista é de imprevisibilidade.
·         Ferrarotti: relação verdadeiramente humana, dramática, sem resultados assegurados.
·         Valles: chave do êxito repousa nas formas de interação verbal que estão em táticas do entrevistador, que são conhecimentos que formam parte do seu trabalho e habilidade, e que improvisa durante a realização da entrevista, segundo o curso da interação verbal.
·         Alonso: essa interação se estabelece a partir da intervenção do pesquisador, por meio de intervenções e comentários, atos de fala, classificados como declarações, interrogações e reiterações.
·         Combessie: a repetição, entrevistador, de uma palavra ou passagem que acaba de ouvir do entrevistado, que põe em evidência a atenção do entrevistador pelo relato do entrevistado.
·         Valles: silêncio como tática do entrevistador, assim como a animação e reelaboração, a reafirmação e a repetição, a recapitulação, a aclaração e a troca do tema.
·         Pós-entrevista: prolongamento da conversação logo que esta tenha se encerrado formalmente >> coleta de informações que o entrevistado não explicitou durante a entrevista formal.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
PIOVANI, Juan Ignacio. “La entrevista em profundidad” in MARRADI, Alberto; ARCHENTI, Nélida & PIOVANI, Juan Ignacio. Metodología de las ciências sociales. Buenos Aires: Emecé Editores, 2007.



terça-feira, 22 de março de 2011

“Juventude rural” como campo analítico*

Este trabalho constitui um mapeamento inicial sobre a construção da categoria “juventude rural” como campo analítico. A intenção é entender os “jovens rurais” como objeto de pesquisa a ser investigado no âmbito de meu projeto de doutorado no âmbito do CPDA/UFRRJ, que tem como título provisório Os usos da Internet entre os jovens rurais: um estudo etnográfico sobre cultura material, consumo e estilos de vida em Quissamã.
A partir dos conteúdos discutidos ao longo da disciplina, agrego perspectivas analíticas recentes sobre os “jovens rurais” a fim de mostrar possibilidades e limites de se trabalhar com a categoria “juventude rural”. Neste sentido, a relação da categoria “juventude” com as interseccionalidades (de classe, de gênero ou étnicas) são apenas tangenciadas neste trabalho, recorte este que pode ser justificado em função de meu interesse específico em pensar os “jovens rurais” como objeto de pesquisa ou a “juventude rural” como um campo analítico a ser pesquisado. Logo as representações sociais e relações de hierarquia poderão ser percebidas aqui, mesmo que de forma tímida, a partir da categoria “juventude”, mais especificamente da “juventude rural”[1].
Assim, inicialmente, aciono Bourdieu (2003) e Lenoir (1996) para marcar a distinção entre “problema social” e “problema sociológico”, enfatizando as possibilidades de superação de obstáculos inerentes às análises usualmente empreendidas sobre a “juventude” como “problema social”. Na seqüência, utilizo os caminhos de pesquisa adotados por Castro (2006) como fio condutor para apresentar diferentes perspectivas analíticas que podem ser associadas aos “jovens rurais” como objeto de pesquisa. Nas considerações finais, esboço caminhos a serem desenvolvidos durante o trabalho de campo etnográfico que empreenderei.

1. A categoria juventude: uma distinção entre problema sociológico e problema social

Nesta sessão, utilizo duas perspectivas para entender alguns dos obstáculos a serem superados para empreender uma análise da “juventude” enquanto problema sociológico de pesquisa. Começo, assim, com a contribuição de Bourdieu (2003), que assinala uma arbitariedade nas divisões entre idades ao considerar a fronteira entre “juventude” e “velhice” como objeto de disputas em todas as sociedades.
A divisão lógica entre os “jovens” e os “velhos” remete a uma discussão sobre “poder”, mais especificamente sobre a divisão dos poderes, na medida em que as classificações por idade impõem limites, produzindo uma ordem onde cada um deve se manter em seu lugar. Cada campo possui leis específicas de envelhecimento, o que confere certa complexidade às relações entre a idade social e a idade biológica. Os cortes em classes ou gerações variam e são manipulados já que “juventude” e “velhice” não constituem categorias dadas, mas construídas socialmente na luta entre os “jovens” e os “velhos”. Assim, a relação entre os “jovens” e os “velhos” se torna vazia, pois somos “sempre o jovem ou o velho de alguém” (Bourdieu, 2003, p. 152).
O recorte das gerações demanda um conhecimento sobre as leis específicas do funcionamento dos campos que se constituem mediante os objetos de luta e as divisões operadas por estas lutas no/do campo. Como a idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável, Bourdieu (2003) alerta que referenciar os “jovens” como uma unidade social ou um grupo constituído, dotado de interesses comuns, bem como relacionar esses interesses a uma idade definida biologicamente, constituem manipulações evidentes. Torna-se necessário, então, analisar as diferentes “juventudes”, mais do que definir “juventude” como uma categoria que conforma um campo homogêneo.
Cabe destacar a ênfase do autor no sistema escolar como um exercício explicativo de sua perspectiva. As “escolas do poder” colocam os “jovens” em recintos separados do mundo, como espaços monásticos onde eles levam uma vida à parte, fazem uma espécie de retiro na medida em que são retirados do mundo e ficam inteiramente ocupados em se preparar para as mais “altas funções”. Esta “retirada simbólica” torna-se importante pela manipulação das aspirações, que constitui um dos efeitos fundamentais da socialização efetuada pela ambiente escolar.
Portanto, além de ser um lugar onde se aprende coisas, saberes e técnicas, a escola configura uma instituição que concede títulos e direitos, conferindo aspirações. Bourdieu (2003) chama atenção para os efeitos do que denomina “inflação escolar”, destacando que se os títulos valem sempre o que valem seus detentores. Com isso, um título que se torna mais freqüente torna-se desvalorizado, perdendo mais valor quando se tornar acessível a pessoas sem “valor social”.
Este breve síntese da análise do autor sobre o sistema escolar remete à constatação de que as aspirações das sucessivas gerações, de pais e filhos, são constituídas em relação a estados diferentes da estrutura da distribuição de bens e de oportunidades de acesso aos diferentes bens. Assim, o que era um privilégio extraordinário para os pais pode se tornar estatisticamente banal para seus filhos. Neste sentido, muitos conflitos de geração são conflitos entre sistemas de aspirações constituídos em épocas diferentes: quando o “sentido dos limites” se perde, aparecem conflitos acerca dos limites de idade e dos limites entre as idades, que têm como objeto de disputa a transmissão do poder e dos privilégios entre as gerações.
No entanto, se nem todos os “velhos” são “anti-jovens”, como pode parecer em uma análise apressada e/ou simplista, Bourdieu (1983) mostra que a “velhice” constitui uma forma de declínio social ou de perda de poder. Com isso, a relação dos “velhos” com os “jovens” pode ser entendida como uma característica de classes[2] em declínio. Assim, os “velhos” podem muito bem ser “anti-jovens”, mas também “anti-artistas”, “anti-intelectuais”, “anti-contestação”, ou seja, eles são contra tudo aquilo que muda e se move porque deixaram o futuro para trás, enquanto os “jovens” podem ser vistos como aqueles que têm futuro e que definem o futuro.
Torna-se interessante, neste ponto, trazer a contribuição de Lenoir (1996), que chama atenção para o fato do sociólogo (mas também os antropólogos e cientistas sociais de modo geral) estar frequentemente diante de representações preestabelecidas dos seus objetos de pesquisa, que induzem à apreensão, definição e concepção destes objetos. Isso traz uma dificuldade à análise sociológica na medida em que essas pré-noções são fortalecidas pelo seu fundamento e função social, pois são produzidas pela experiência banal, harmonizando as ações das pessoas com o mundo que as cerca. As representações, então, são formadas pela e para a prática, configurando uma espécie de ajustamento prático.
O autor entende que as representações de “problemas sociais”[3] configuram um obstáculo difícil de ser superado pelo sociólogo, pois são instituídas como instrumentos que participam da formação da visão corrente do mundo social, tais como os organismos e as regulamentações, bem como as categorias de percepção e pensamento correspondentes a cada um desses instrumentos. Assim, o mesmo “problema social” pode ser constituído por vários motivos, como no caso da “velhice”[4] e da “juventude”, que aparentemente são categorias “naturais” e “evidentes”.
Lenoir (1996) chama atenção para os princípios de classificação do mundo social, como, por exemplo, as particularidades biológicas, como sexo e idade, que servem como critérios de classificação dos indivíduos no espaço social. Se, de um lado, a elaboração destes critérios associa-se ao aparecimento de instituições e agentes especializados, cuja força-motriz e fundamento de atividade encontram-se nessas classificações; de outro, os princípios de classificação têm origem em um trabalho social de produção das “populações” por diferentes instituições — como o sistema escolar, o sistema médico, os sistemas de proteção social, o mercado de trabalho, entre outros.
Desta forma, a idade não é um dado natural e, enquanto instrumento de medição não pode dar corpo àquilo que mede. Trata-se, assim, de uma noção social estabelecida por comparação com os diversos membros de um determinado grupo. A noção de idade, designada em número de anos, configura, assim, um produto de determinada prática social, ou seja, uma medida abstrata cujo grau de precisão pode ser explicado pelas necessidades da prática administrativa.
As categorias que a idade permite distinguir não chegam a formar grupos sociais. Halbwalchs (1972 apud Lenoir, 1996) observa que tais grupos não podem ter consistência já que os indivíduos não se limitam a passar por essas fases, impossibilitando uma definição de tais grupos em termos de idade. Assim, “juventude”, “idade adulta” e “velhice” são categorias definidas de forma bastante diferente, pois a definição social das idades se modifica segundo a composição da população, dependendo da composição numérica das gerações. Logo, não seria possível tratar a idade dos indivíduos como característica independente do contexto no qual ela toma sentido. Da mesma forma que Bourdieu (2003), o autor entende que a fixação de uma idade é produto de uma luta que envolve diferentes gerações.
Lenoir (1996) entende que a idade de um indivíduo resulta de fatores como (1) o metabolismo demográfico, decorrente das variações de taxas de fecundidade e mortalidade, que contribuem para definir o estado da concorrência entre as gerações para a ocupação das posições de poder; (2) a relação de força entre pais e filhos na família e no seio da linhagem; e (3) a capacidade dos “jovens” para colocarem “a opinião pública a seu favor”, demonstrando que detêm qualidades socialmente exigidas para passar de uma para outra faixa etária.
            Neste sentido, o autor assinala que o que está em jogo, por exemplo, nas faixas etárias é a definição dos poderes associados aos diferentes momentos do ciclo de vida, sendo que a amplitude e o fundamento do poder variam segundo a natureza das implicações da luta entre gerações. Para o sociólogo, portanto, o objeto de pesquisa consiste, de fato, em uma análise dos agentes que travam essas lutas, das armas utilizadas e das estratégias praticadas, considerando tanto as relações de força entre as gerações e entre as classes sociais, quanto às representações dominantes das práticas legítimas associadas à definição de uma faixa etária.
Se a determinação da idade constitui um pretexto da luta entre as gerações, Lenoir (1996) suscita a seguinte questão: uma sociologia da velhice (mas também da juventude) não aniquila antecipadamente o seu objeto de estudo quando considera como resolvido o que deveria ser explicado?
Desta forma, o objeto de pesquisa de uma sociologia da velhice (ou da juventude) passa pela descrição dos processos pelos quais os indivíduos são socialmente designados como “jovens” ou “velhos”. No entanto, deve-se considerar que a idade cronológica possui uma realidade social, constituindo uma espécie de padrão abstrato, ou seja, um referente que permite fazer comparações, uma norma oficial que é levada em consideração pelos agentes. Torna-se importante, portanto, firmar que “velhice” e “juventude” não são características substanciais definidas pela idade, mas categorias que resultam do estado variável das relações de força entre as classes e, em cada classe, das relações entre as gerações, ou seja, da distribuição do poder e privilégios entre classes e gerações.
Lenoir (1996) entende a “realidade social” como resultado de lutas que se manifestam sob diferentes formas, tais como o estado de direitos, os equipamentos coletivos, as categorias de pensamento, os movimentos sociais, entre outros. O estudo da emergência de um “problema social”, com isso, deve revelar uma “construção social da realidade”, pois condensa todos os aspectos desse processo.
Neste sentido, quando se trata de um “problema social”, como parece ser o caso do tratamento usualmente dado à categoria “juventude rural” que abordo na sessão seguinte, o objeto de pesquisa do sociólogo consiste em analisar o processo pelo qual se constrói e se institucionaliza o que é constituído como tal. O obstáculo encontra-se nas condições em que se processa seu estudo, ou seja, o próprio campo (agentes da gestão da velhice/juventude) do qual ele participa. A superação desse obstáculo envolve revelar as implicações das definições e classificações elaboradas pelos agentes interessados pelo tratamento e gestão da velhice/juventude.
Com isso, Lenoir (1996) entende que um problema social não é apenas resultado do mau funcionamento da sociedade, mas de um “trabalho social” que compreende duas etapas essenciais: o reconhecimento, que torna visível uma situação particular, tornando-a digna de atenção e pressupondo a ação de grupos socialmente interessados em produzir uma nova categoria de percepção do mundo para agirem nele; e a legitimação, uma operação que promove a inserção do “problema social” no campo das preocupações do momento. O autor ainda acrescenta uma terceira etapa que envolve um trabalho específico de enunciação e formulação públicas, ou seja, uma operação de mobilização.
            O sociólogo deve contar, portanto, com representações coletivas enquanto realidades parcialmente autônomas que atuam sobre a realidade por meio de ações de explicação, formulação e informação. Trata-se, então, de empreender uma dupla abordagem, rompendo com as definições socialmente admitidas do fenômeno que estuda: de um lado, deve observar as diferenças entre os grupos sociais em relação ao seu objeto; de outro, precisa recolocar essas diferenças em conjuntos mais gerais que podem ser designados por “contexto”.
Desta forma, as categorias que servem de base para a construção da realidade social se apresentam diante do sociólogo como o resultado de lutas que podem assumir diversas formas. Neste sentido, uma dessas formas torna-se interessante para a análise desenvolvida neste trabalho. Trata-se da categoria “juventude rural”, para a qual me volto na sessão seguinte.

A “juventude rural” como campo analítico: aportes e desafios

A “juventude rural” pode ser entendida como uma categoria chave para a reprodução social do campo, em especial da produção familiar na medida em que contribuiria para o “esvaziamento” do meio rural, o inchaço de cidades de pequeno e médio porte, representando uma sinalização em direção ao “fim” do mundo rural. Castro (2006) entende que esta percepção associa a categoria “jovem” a um “problema social”, sendo recorrente nas análises das ciências sociais brasileiras, e, assim, naturalizam o uso de termos como “jovem”, “juventude rural” e “jovem rural” de uma forma auto-evidente.
Ao acompanhar as redes sociais que se configuram em um assentamento rural, a autora percebe que a construção da categoria “juventude rural” aponta para identidades que são permeadas pela circulação dos jovens em diferentes espaços, percebidos como “urbanos” e “rurais”, bem como por relações de autoridade e hierarquia na família e nas esferas coletivas de organização do assentamento. A “juventude” surge, assim, como uma categoria marcada por disputas de classificação que têm nas relações de autoridade paterna uma característica recorrente.
Partindo da auto-percepção e formação de identidades daqueles que são definidos como “jovens” no contexto pesquisado, Castro (2006) busca romper com a substantivação e adjetivação que permeiam definições genéricas e associam esta categoria a problemas e expectativas. O desafio em pauta é “desubstancializar” categorias como “jovem rural”, “jovem da roça” e “jovem do campo”, bem como a construção da categoria “juventude rural”, procurando uma compreensão em seus múltiplos significados.
            A autora assinala três movimentos/momentos constituintes de um processo de transformação da categoria “juventude”, partindo de (1) uma definição que considera relevantes os elementos físicos/psicológicos (faixa etária, mudanças físico-biológicas e/ou comportamentais); passando por (2) uma definição substancializada da categoria; e destacando (3) a crítica a esses recortes e busca de outros vieses. Neste sentido, o campo analítico constituído pela categoria “juventude” aparece frequentemente associada tanto a determinados problemas sociológicos, quanto a agentes privilegiados de transformação social. Na seqüência procuro abordar brevemente cada uma dessas abordagens.
O tratamento da “juventude” como uma categoria auto-evidente ou auto-explicativa, tendo a idade ou o comportamento como definições metodológicas, é retomado nos anos 1990. Weisheimer (2004 apud Castro, 2006) entende que o recorte desta categoria a partir de uma faixa etária específica se pauta pela definição de “juventude” como período de transição entre a adolescência e o mundo adulto. Castro (2006) ressalta que a idade como classificadora é transitória, remetendo à Bourdieu (2003), ao relacionar as idades biológica e social de forma indissociável, pois entende que a idade é socialmente construída e varia em cada sociedade, nos diferentes momentos históricos e a partir de distinções de idade, gênero e classe.
Outra abordagem parte da idade como construção social com base em conceitos de geração (Mannheim, 1982 apud Castro, 2006): duas gerações convivem em dado contexto histórico, sendo que a “juventude” é vista como um momento no ciclo de vida de todo indivíduo, em oposição à condição “adulta”. Novamente, Castro (2006) recorre à Bourdieu (2003), para apontar que a noção de geração é construída relacionalmente — por oposição, mais que por aproximação — para questionar o uso de termos como “jovem”, “juventude” e “velho” como dados a priori.
            Diferentemente, uma substantivação dos termos “jovem” e “juventude” pode levar a generalizações arriscadas, como a procedida por Margulis (1996, p. 9 apud Castro, 2006, p. 8), que qualifica juventude como uma vanguarda transformadora dos códigos de cultura, capaz de incorporar as mudanças de costumes e significados, que foram objetos de luta na geração anterior, realçando “sua sensibilidade, percepção, visão de mundo, atitudes, estética, concepção de tempo, valores, velocidades e ritmos indicam uma comodidade de ser-no-mundo”. Castro (2006) alerta para o fato de que esse olhar heróico da juventude como agente de transformações sociais, tendo o jovem como um ator privilegiado, desconsidera o tratamento da construção nativa dessa categoria ou dos múltiplos significados que ela carrega, reforçando a característica transformadora inerente ao jovem.
Uma visão que inverte esse olhar associa o jovem à delinqüência, retratando determinados indivíduos que teriam em comum a idade e uma forma de comportamento. Já definições como “jovens em situações de risco” configuram a base de programas sociais que pretendem reintroduzir na sociedade esses “excluídos”. Castro (2006) entende que estas duas perspectivas apontam os “jovens” como dotados de características que definem determinados indivíduos a priori.
Na análise das percepções sobre “juventude rural”, a autora observa similitudes com as abordagens sobre “juventude” ou “juventude urbana”. Neste caso, a “juventude” deveria ser impedida de completar seu destino: a migração do campo para a cidade e o conseqüente fim do mundo rural, em especial do trabalho familiar. Desta maneira, a “juventude” pode ser o agente de uma transformação social que resgate o campo, o que se reflete na existência de programas sociais que visam “manter o jovem no campo” e “empoderá-los” de capacidade de liderança.
Assim, a categoria “juventude” aparece associada a determinados substantivos e adjetivos, como “vanguarda”, “transformadora”, “questionadora” (Margulis, 1996 apud Castro, 2006), em uma adjetivação que subentende papéis sociais privilegiados para estes atores. No entanto, “jovem” também é adjetivado como “em formação”, “inexperiente”, “sensível”, bem como associado à delinqüência, violência, “comportamento desviante”, ou seja, visto como um agente que precisa ser formado e direcionado para assumir seu “papel social” e que pode se desviar, precisando, assim, ser controlado (Bernstein, 1977 apud Castro, 2006).
A autora entende que estes adjetivos se aproximam, pois partem da visão do “jovem” como um ator social com certas características e atributos, cujo ponto de partida é uma categoria genérica, ou como Bourdieu (1989 apud Castro, 2006) e Lenoir (1996) chamam atenção: uma categoria “pré-construída”, partindo de formulações que pressupõem um consenso sobre a existência de um “jovem” e de uma “juventude” em uma perspectiva que homogeneíza a categoria na busca de construção de um objeto, de um conceito que possa ser paradigma. Por isso, a pouca precisão — que pode ser percebida pela alternância entre termos como “jovem”, “juvenil”, “juventude”, “adolescente” — aponta para uma percepção sobre “juventude” como um momento de transição para o mundo adulto, que é incapaz de produzir uma “cultura” própria, limitando-a enquanto campo analítico.
Neste sentido, Castro (2006) reforça a necessidade de buscar novos caminhos para dessubstancializar essa categoria, que não se constitui somente porque certo campo do conhecimento define que todos são “jovens” ou mesmo por uma apropriação do senso comum reproduzido no cotidiano que sugere quem é “jovem” e quem não é. Desta forma, esta é uma marca deste campo temático se mostra passível de problematização em uma análise sociológica.
No assentamento rural pesquisado pela autora, por exemplo, os usos do termo “jovem” apontam para um sentido genérico e naturalizado, ou mesmo associado a problemas e expectativas. Daí, o esforço de Castro (2006) consiste em observar de quem se está falando quando esses termos eram usados, bem como quais são os significados e as interações que conferem um conteúdo a essa categoria.
Desta forma, pensar “jovem” em uma determinada realidade implica propor como caminho investigativo uma análise das disputas sobre representações sociais da categoria “jovem” em um dado universo, o que, no caso da “juventude rural”, também envolve uma disputa “dentro” e “fora” dos significados do “rural”. As diferentes construções do que é “ser jovem” para esses indivíduos variam nos espaços por onde transitam e de acordo com as posições sociais que ocupam. No assentamento rural pesquisado pela autora, “ser jovem” carrega a marca da pouca confiabilidade na hierarquia das relações familiares, mesmo quando assume posição de destaque nos discursos sobre a continuidade do assentamento.
Com isso, no debate sobre a categoria “juventude rural”, em sintonia com Lenoir (1996), Castro (2006) coloca o desafio de aproximação das duas formulações, colocando a "aventura antropológica" como condição para aprofundar a compreensão dos processos de construção da categoria. Se diversas matrizes apontam esta categoria como socialmente construída, permeada por diferentes interesses, realidades e, assim, multifacetada, ao mesmo tempo, a reflexão sobre as propostas e projetos de políticas públicas e as diversas formas de auto-expressão e auto-organização reforçam e sustentam que essa categoria se constrói e se reconstrói enquanto ator social.
Neste ponto, passo a destacar alguns aportes recentes que pensam as categorias “juventude” e/ou “juventude rural” nas ciências sociais brasileiras. A seqüência abaixo considerou duas obras recentes: Retratos da juventude brasileira (Abramo & Branco, 2005) e Juventude rural em perspectiva (Carneiro & Castro, 2007). Devo destacar que não tive a pretensão de me aprofundar na análise de cada um dos artigos que compõem esses livros, mas tão somente pontuar as possibilidades analíticas inerentes ao campo da “juventude rural”.
Neste sentido, começo por Abramo (2005), que considera uma dupla dimensão na análise da categoria “juventude”. A primeira é “condição juvenil”, ou seja, o modo pelo qual uma determinada sociedade constitui e atribui significado a este momento do ciclo de vida, constituindo uma dimensão histórico-geracional. Outra dimensão é a “situação juvenil”, que reflete a forma que tal condição é vivida a partir das diferenças sociais.
Neste sentido, a pesquisa realizada pelo Instituto Cidadania, de caráter quantitativo, serviu de base para a elaboração do livro Retratos da juventude brasileira (Abramo & Branco, 2005). Por mais limitado que seja se falar de uma “juventude brasileira”, as análises que compõem a obra enfatizam diferentes possibilidades de olhar a categoria “juventude”, partindo de dados obtidos por métodos quantitativos.
Com isso procura a compreensão da condição juvenil no Brasil passa por aspectos como os processos de institucionalização e socialização inerentes à relação entre juventude e escola (Sposito); o trabalho no imaginário da juventude (Guimarães); o lazer e o tempo livre dos jovens brasileiros (Brenner et al); as percepções destes jovens acerca de questões envolvendo a sexualidade e a saúde reprodutiva (Calazans); a religiosidade (Novaes); a questão do negro (Santos et al); o uso de drogas (Carlini-Marlatt); e a cultura política e a participação democrática (Krischke). O campo analítico da categoria “juventude”, portanto, perpassa diferentes campos de análise da sociologia, abrindo vastas perspectivas de pesquisa.
Este livro traz um capítulo específico sobre “juventude rural”. Com ênfase nos projetos e valores em jogo, Carneiro (2005) destaca (1) o pouco investimento de pesquisa em torno dos “jovens rurais”, quando comparado à produção que busca compreender a população “jovem” dos grandes centros; (2) o caráter fluido, impreciso, variável e heterogêneo da categoria “juventude rural”, ainda extremamente relacionada com o trabalho, o que invisibiliza a participação dos “jovens” nas demais esferas da vida social (Durston, 1994 apud Carneiro, 2005); e (3) as imprecisões relativas ao entendimento do “rural”, acentuadas pela intensificação da comunicação entre os universos sociais do campo e da cidade.
Carneiro (2005) levanta questões importantes, tais como: (1) as semelhanças entre os “jovens” do “campo” e da “cidade” que, mesmo com o reconhecimento da heterogeneidade das maneiras de viver e dos valores da “juventude” em diferentes contextos, são afetados por uma mesma ordem de problemas de uma sociedade globalizada e “subdesenvolvida” como a brasileira; (2) a ambigüidade de valores inerentes aos “jovens rurais”, entre manter uma identidade afetiva ao modo de vida local e familiar, de um lado, e uma auto-imagem refletida na cultura “urbana”, “moderna”, que aparece como referência para suas elaborações de projeto para o futuro; (3) a necessidade de ampliar os espaços de inclusão social — especialmente em relação ao mercado de trabalho e as opções de educação e lazer — como condição para a permanência da “juventude rural” em seus universos de origem; (4) a possibilidade de encarar a combinação da atividade agrícola e não-agrícola como saída para aumento do rendimento familiar e individual, bem como espaços valorizados de inserção econômica e social da mulher; sendo que (5) a dimensão de gênero deve ser levada em conta pela relação com questões como a herança, a hierarquia entre gêneros no interior da família e as condições de reprodução social da agricultura familiar.
No que se refere à situação juvenil, Abramovay et ali (1998 apud Martins, 2008) entende a migração e a continuidade da profissão de agricultor e do meio rural como parte do debate atual sobre os jovens rurais. Ao partir de uma etnografia dos jovens de um assentamento rural na Baixada Fluminense, Castro (2005) relaciona o dilema “ficar e sair”, bem como a questão da herança e da sucessão, à compreensão de “jovem rural” como uma categoria social pressionada pelas mudanças e crises da realidade “deste” campo. Este dilema envolve determinantes objetivos e subjetivos, como, por exemplo, o significado que os “jovens rurais” atribuem ao meio rural.
Com isso, a noção de “ruralidade” em um contexto de intensificação das trocas entre “campo” e “cidade” pode contribuir para pensar o "rural" e o "urbano" do ponto de vista dos agentes sociais que realizam esta interação. Neste sentido, Carneiro (1998, p. 59) procura romper com a dualidade entre estas categorias ao apontar a inutilidade da distinção urbano/rural como questão sociológica, pois “cada espaço contém em si contradições e conflitos resultantes da relação entre sistemas de valores e interesses distintos, quer sejam eles tidos como de origem ‘urbana’ ou ‘rural’”.
Desta forma, uma ruralidade pode ser pensada como um estilo de vida, pois compreende um “processo dinâmico de constante reestruturação dos elementos da cultura local com base na incorporação de novos valores, hábitos e técnicas” (Carneiro, 1998, p. 61). Trata-se de um movimento duplo, envolvendo “a reapropriação de elementos da cultura local a partir de uma releitura possibilitada pela emergência de novos códigos” e “a apropriação pela cultura urbana de bens culturais e naturais do mundo rural”.
Para Wanderley & Lourenço (1994, p. 25 apud Carneiro, 1998, p. 61), “não se trata mais de englobar um microcosmo, relativamente autônomo, em um macrocosmo socioeconômico, mas de ultrapassar as fronteiras entre o 'local' e o 'global', pela experiência de uma cidadania concreta vivida". Ao pesquisar os “jovens” de municípios rurais em Pernambuco, Wanderley (2007) sugere que a especificidade da “juventude rural” encontra-se na dinâmica de trocas entre os espaços rurais e urbanos. Com isso, ao invés de distintos e superpostos, ou diluídos, passam a ser compreendidos como espaços de vida da “juventude rural”.
Enfim, Wanderley (2007) define os jovens rurais como aqueles que vivem o momento do ciclo de vida caracterizado pela transição entre infância e a idade adulta no mesmo contexto histórico de outros jovens, mas com a especificidade de terem o meio rural como espaço de vida, uma marca de sua situação juvenil. Além disso, Martins (2008, p. 20) aponta que estes jovens vivenciam uma “mobilidade, espacial e simbólica, entre universos rurais e urbanos, expressa tanto na dinâmica cotidiana, como nas identidades e formulações de projetos de vida”.
Por fim, cabe também apontar alguns dos recortes analíticos presentes no livro Juventude rural em perspectiva (Carneiro & Castro, 2007) que remetem a proposta de pesquisa que desenvolverei. Considerando uma perspectiva pós-moderna para analisar os motivos dos “jovens” sobre sua decisão de sair do campo, ressaltando as representações negativas destes “jovens” sobre a atividade agrícola, bem como a sucessão geracional dos estabelecimentos agrícolas, Brumer (2007) sugere dois eixos de pesquisa: (1) entender os motivos da permanência dos jovens no meio rural, conhecendo efetivamente a instalação dos “jovens”, suas condições de vida e trabalho, bem como suas representações com base na realidade em que vivem; e (2) examinar os aspectos que favorecem a instalação dos “jovens” como agricultores e os motivos de fracasso na sucessão geracional dos estabelecimentos familiares.
Ao tentar reconhecer os “jovens” em relação às novas mentalidades no cenário rural, Carneiro (2007) considera o “rural” como espaço de vida e pluriatividade. Assim, a permanência dos “jovens” cada vez mais parece se relacionar com suas demandas por um contexto que concretize “o melhor dos dois mundos”, “urbano” e “rural”. Esta síntese constitui uma nova ruralidade, relacionada com o desejo destes jovens “de vencer o isolamento, integrando, efetivamente, o meio rural à sociedade brasileira” (Wanderley, 2007, p. 33).
Tangenciando o projeto de pesquisa que irei desenvolver, parece que a inclusão digital e virtual propiciada pelo uso do computador e da Internet está cada vez mais presente nas demandas dos jovens rurais, configurando uma possibilidade de “abrir as janelas do mundo rural para um universo desconhecido e ilimitado” (Carneiro, 2007, p. 63).
Neste sentido, Stropasolas (2007, p. 284) analisa a inserção social do jovem em um marco reflexivo e assinala que a “inclusão digital e o acesso à informação e à comunicação interpessoal, cada vez mais demandados por estes jovens (...) muda a maneira de estar no mundo porque muda o tamanho do mundo”. Assim, os usos da Internet podem abrir uma possibilidade de alargamento do mundo cultural no imaginário destes jovens e de suas demandas, o que poderá vir a ser percebido ao longo da pesquisa a ser desenvolvida.

Considerações finais:

            A partir do mapeamento inicial empreendido neste trabalho, pude perceber que a categoria “juventude rural” pode oferecer ricas perspectivas analíticas. Para tal, três pontos configuram procedimentos fundamentais:
·        O mapeamento das “juventudes” em um contexto de pesquisa envolve perceber os conflitos de geração que surgem quando o sentido dos limites entre “jovens” e “velhos” se perde, instaurando disputas pela transmissão do poder e dos privilégios entre as gerações. Trata-se de empreender uma dupla abordagem, compreendendo, de um lado, observar as diferenças entre os grupos sociais em relação ao seu objeto; e, de outro, recolocar essas diferenças em conjuntos gerais que podem ser designados por “contexto”.
·        A “juventude rural” configura um campo analítico a partir de uma análise dos “jovens rurais” como agentes que travam as lutas geracionais, bem como as armas que utilizam e as estratégias que praticam nestas lutas. Isso envolve perceber as relações de força entre as gerações e classes sociais, bem como as representações dominantes das práticas que definem os “velhos” e os “novos” no contexto pesquisado. Assim, a “velhice” e a “juventude” são categorias que resultam do estado variável das relações de força entre as classes e, em cada classe, e das relações entre as gerações, ou seja, da distribuição do poder e privilégios entre classes e gerações.
·        O desafio de se trabalhar com os “jovens rurais” como objeto de pesquisa é “desubstancializar” categorias como “jovem rural”, “jovem da roça” e “jovem do campo”, procurando uma compreensão em seus múltiplos significados. Isso envolve observar de quem se está falando quando esses termos são usados no contexto pesquisado, bem como quais os significados e as interações que conferem conteúdo a essa categoria. O caminho investigativo compreende, portanto, uma análise das disputas sobre representações sociais da categoria “jovem” em um universo, o que, no caso do campo analítico da “juventude rural”, também envolve uma disputa “dentro” e “fora” dos significados que o “rural” pode assumir.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

ABRAMO, Helena e BRANCO Pedro P. (org). Retratos da juventude brasileira. Análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.

BOUDIEU, Pierre. A juventude é apenas uma palava. In: BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Fim de século Edições: Lisboa, 2003.

LENOIR, Remi. Objeto sociológico e problema social. In: MERLLIÉ, Dominique; CHAMPAGNE, Patrick; LENOIR, Remi & PINTO, Louis. Iniciação à prática sociológica. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e Agricultura, outubro 1998, pp. 53-75. Disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/onze/zeze11.htm. Acesso em: 06/08/2009.

______. Juventude e novas mentalidades no cenário rural. In: CARNEIRO, Maria José & CASTRO, Elisa Guaraná de. (Orgs.). Juventude Rural em Perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.

CASTRO, Elisa Guaraná de. Entre Ficar e Sair: uma etnografia da construção social da categoria jovem rural. Rio de Janeiro: Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005.

______. Juventude rural: “apenas uma palavra” ou “mais do que uma palavra”. XXIX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu/MG, 2006.

MARTINS, Maíra. Juventude e Reforma Agrária: o caso do Assentamento Rural Paz da Terra, RJ. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, Dissertação de Mestrado, 2008.

THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. Vol 1. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

STROPASOLAS, Valmir L. Um marco reflexivo para a inserção social da juventude rural. In: CARNEIRO, Maria José e CASTRO, Elisa Guaraná de. (Orgs.). Juventude Rural em Perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.

WANDERLEY, M. N. B. Jovens rurais de pequenos municípios de Pernambuco: que sonhos para futuro? In: CARNEIRO, Maria José e CASTRO, Elisa Guaraná de. (Orgs.). Juventude Rural em Perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.




[1] Entendo que as dimensões interseccionais apresentadas ao longo da disciplina podem contribuir para pensar o trabalho de campo que será empreendido. No entanto, neste exercício, procuro apenas entender o campo analítico formado pela categoria “juventude rural”, o que se torna fundamental, a meu ver, neste estágio inicial da pesquisa. Neste sentido, entendo que a perspectiva das interseccionalidades será de grande valia para remodelar meu projeto de entrada no doutorado do CPDA/UFRRJ, com vistas ao “Seminário de Tese”, disciplina a ser cursada no primeiro semestre de 2011.
[2] O termo aqui remete à noção de classe de Thompson (1963), ou seja, uma relação histórica que precisa ser encarnada em pessoas e contextos reais. Assim, a noção de classe é dada pelos homens (e mulheres também) a partir de suas experiências comuns, na medida em que sentem e articulam a identidade dos seus interesses entre si e contra outros homens (e mulheres) cujos interesses divergem e, geralmente, se opõem.
[3] Lenoir (1996) entende que uma das particularidades dos problemas sociais é que se encarnam nas “populações” que apresentam “problemas” a serem solucionados. O autor destaca que a constituição de “problemas sociais” varia conforme as épocas e regiões, podendo desaparecer quando subsistem os fenômenos designados por eles (como é o caso da pobreza e do racismo).

[4] Cabe destacar que Lenoir (1996) se volta para uma análise da “velhice”, sendo que tento aqui efetuar paralelismos possíveis com a categoria “juventude”, tendo em vista o que Bourdieu (2003) chama atenção acerca das lutas entre “velhos” e “novos”.

* trabalho produzido como parte da avaliação da disciplina "Tópicos Especiais em Movimentos Sociais – Representação social e Relações de Hierarquia (Gênero, geração, classe – caminhos analíticos", ministrada por Elisa Guaraná de Castro e Luena Pereira no primeiro semestre de 2010 no CPDA/UFRRJ