Latour, Bruno. To modernise or ecologise? That is the question (Disponível em http://www.bruno-latour.fr/articles/article/073.html - Acessado em 11/12/2010)
Neste artigo, com base na situação política francesa e na marginalidade contínua dos vários partidos verdes, Bruno Latour desenvolve uma interessante perspectiva para analisar as políticas ecológicas , apontando uma tendência de reconfiguração dos mesmos. Para tal empreendimento, utiliza três vertentes diferentes:
(1) o modelo da justificação para entender as disputas políticas, elaborado por Luc Boltanski e Laurent Thévenot;
(2) um estudo de caso sobre a criação por lei do que poderia ser chamado de "parlamentos locais de água" (Latour & Le Bourhis, 1995);
(3) um projeto, mais filosófico, de desenvolver uma alternativa à noção de modernidade e explorar as raízes políticas da noção de natureza.
O ponto principal é mostrar que uma política ecológica não pode ser inserida em uma análise da modernidade, mas como uma alternativa para a modernização. Neste sentido, a ecologia deve ser vista como uma nova forma de lidar com todos os objetos, humanos e não humanos, da vida coletiva. Com isso, o autor tenta dar conta da seguinte questão: o movimento ecológico é, de fato, uma nova forma de política (ecológica) ou um ramo particular das modernas políticas?
Latour começa seu empreendimento analítico assinalando que se, por um lado, as políticas ecológicas encontram-se cada vez mais integrada na vida cotidiana mesmo que não sejam capazes de se tornar a plataforma política de um grupo específico; por outro lado, estas políticas tornam-se exageradas (ou infladas) a tal ponto que se arrogam em assumir a responsabilidade pelas agendas de todos os partidos políticos, mesmo que, para tal, penalize homens e mulheres que não pertencem ao “mundo da política”, quando acenam para uma unidade global que não tem o domínio político como horizonte. Desta forma, o autor mostra que, nos termos da modernidade, a política ecológica parece ser menos aceita e menos importante do que aparenta ser, bem como mais marginal do que gostaria de ser.
Bruno Latour avança na seguinte hipótese: de que o aumento de poder das políticas ecológicas pode ser dificultado por uma auto-definição que as posicionam tanto como política quanto como ecologia. Esta auto-definição faz com que toda uma sabedoria prática adquirida em anos de ação militante seja incapaz de ser expressada em um princípio de classificação e ordenação, que o autor entende como “politicamente eficaz”. Sem esse princípio de ordenação, as políticas ecológicas apresentam pouca influência sobre o eleitorados, além de não gerenciar — mesmo com argumentos que aparentam ser tão eficazes — o desenvolvimento duradouro e consistente de sua viabilidade política.
O trabalho de Boltanski & Thévenot (1991) ofereceria, assim, o “teste ácido ideal” para verificar se as políticas ecológicas podem sobreviver como uma forma original de política ou se pode ser dissolvida em regimes de justificação que já tenham sido postos em prática. O autor entende que este modelo permite testar se as políticas ecológicas oferecem um novo princípio de justificação ou se podem ser reduzidas para os outros seis princípios (doméstico, mercado, industrial, cívico, transcendental e reputação) que foram sedimentados ao longo do tempo.
À primeira vista, parece que não pode haver um sétimo regime, “ecológico", na medida em que qualquer um dos regimes empíricos empresta seu princípio de justificação quando são enfrentados pelas políticas ecológicas. Latour enfatizou os regimes de justificação doméstico, cívico, industrial e comercial em sua análise e — com base em várias reduções, utilizando o modelo de Boltanski & Thévenot (1991) — entende que não seria possível falar de um "regime ecológico", pois suas questões podem ser resolvidas pelas justificações existentes nos regimes doméstico, industrial, cívico e comercial. No entanto, estes regimes encontram-se baseados no princípio da humanidade comum. Neste sentido, Latour provoca uma reflexão ao colocar a seguinte questão: será que devemos abandonar o princípio da humanidade comum?
Os regimes de justificação desenvolvidos por Boltanski & Thévenot (1991) apresentam como ponto comum que "a humanidade é a medida de todas as coisas". Latour assinala que a “resposta padrão” para o problema de abandonar este princípio comum passa pela constatação de que a ecologia não compreende apenas os seres humanos, mas a natureza, uma unidade maior que incluiria os seres humanos, entre outros componentes associados a outros ecossistemas.
Esta “resposta padrão” apresenta uma incoerência política. Utilizando de ironia, o autor destaca que é difícil se imaginar uma apresentação ao eleitorado com um programa que prevê a possibilidade de fazê-lo desaparecer em favor de um "congresso de animais" que nem sequer votam ou pagam impostos! Latour entende que, confrontado com essa alternativa, a reação do “cidadão comum” seria compreensível: "preferiria viver uma vida mais curta em uma democracia do que sacrificar minha vida hoje — e dos meus descendentes — para proteger uma natureza muda”. Daí a dificuldade de descobrir o " sétimo regime", bem como, diante de tais dilemas, pode-se entender porque os partidos têm dificuldades de explicar a si mesmos, para seus membros e aos seus eleitores o significado de sua luta ecológica.
Entretanto, Latour destaca que este caminho, trilhado/sintetizado até aqui, pode estar errado. Parece, de fato, que a originalidade das políticas ecológicas é muito mais sutil do que foi visto até este ponto. Com isso, o autor lança mão de uma análise a partir de uma distância que separa a prática da auto-representação. Para tal, propõe a criação de duas listas contrastantes:
1. O que a ecologia acredita que deve fazer sem conseguir fazer
As políticas ecológicas se credenciam a falar sobre a natureza, mas falam sobre imbróglios intermináveis, que envolvem sempre algum grau de participação humana:
• Alegam proteger a natureza dos seres humanos, mas em todos os casos empíricos percebe-se maior envolvimento humano com intervenções mais freqüentes.
• Alegam proteger a natureza por si só, mas esta “missão” é realizada por homens e mulheres com o fim de gerar bem-estar, prazer ou consciência a um pequeno número de seres humanos selecionados cuidadosamente e de forma justificada.
• Alegam pensar cientificamente, mas cada vez que tentam incluir tudo em uma “causa maior”, são arrastadas para controvérsias científicas em que os especialistas são incapazes de chegar a um acordo.
• Alegam ter seus modelos científicos de hierarquias regulados por sistemas de controle cibernético, mas são sempre surpreendidas por acontecimentos inesperados.
• Alegam falar sobre tudo, mas só conseguem formar opinião e modificar as relações de poder, vinculando-se a determinados lugares, biótopos, situações e eventos.
• Alegam ser cada vez mais poderosa uma “política da vida do futuro”, mas encontram-se reduzida à menor fatia dos eleitores.
Ao invés do desespero frente a esta grave avaliação, Latour entende que todas as vantagens das políticas ecológicas se estivessem livres de suas próprias ilusões também podem ser aproveitadas. Para tal, o autor passa a considerar que as práticas das políticas ecológicas valem mais do que seus ideais utópicos de um regime “super-natural” gerido por cientistas para o benefício exclusivo de uma “Terra-Mãe”, que poderia a qualquer momento se tornar “uma mãe cruel e antinatural”.
Desta forma, Latour passa a considerar os "defeitos" destas práticas como vantagens positivas, iluminando um novo significado.
2. O que as políticas ecológicas (felizmente) fizeram muito bem:
• não são, nem nunca tentaram falar sobre a natureza, sendo portadoras de formas complexas de associações entre os seres. A natureza não está em questão, pois as políticas ecológicas dissolvem as fronteiras, redistribuem os agentes e, assim, remete à pré-moderna antropologia muito mais do que pensa.
• não pretendem, nem nunca pretenderam proteger a natureza. Pelo contrário, querem assumir o controle, de uma forma ainda mais completa e ampla, de uma diversidade maior de entidades e destinos.
• nunca pretenderam servir à natureza para seu próprio bem, pois são totalmente incapazes de definir o bem comum de uma natureza desumanizada. Neste sentido, mais do que proteger a natureza, para seu próprio bem ou das gerações futuras, suspendem nossas certezas com relação ao bem soberano dos seres humanos e não humanos, de meios e fins.
• não sabem o que é um sistema “eco-político” e não repousam sobre as idéias de uma ciência complexa, cujo modelo e métodos, se existissem, escapariam totalmente do alcance do “pensamento comum”. Latour entende que esta é a sua grande virtude das políticas ecológicas: não sabem o que fazem e não formam um sistema; não sabem o que são e não estão conectadas! As controvérsias científicas em que se envolvem são precisamente o que as distinguem de todos os outros movimentos político-científicos do passado, sendo as únicas que podem se beneficiar de outras políticas da ciência.
• não são, nem nunca procuraram integrar todas as suas ações de forma meticulosa e particular em uma unidade completa e hierarquizada. A ignorância em relação à totalidade é “sua salvação”, pois isso impede a configuração de uma hierarquia única. Assim, “o menor pode se tornar maior”.
Latour entende que as políticas ecológicas felizmente permaneceram à margem até agora porque ainda não compreenderam a sua política ou a sua ecologia. Estas políticas acreditam que falam sobre a natureza como um sistema, uma totalidade hierarquizada, um mundo sem os seres humanos, uma ciência certa, sendo que o autor assinala justamente estas declarações bem-ordenadas como elemento que marginaliza.
Ao comparar as duas listas que construiu, Latour se concentra na aplicação prática das políticas ecológicas, levando a um um movimento analítico completamente diferente do que se tinha ao iniciar seu artigo. As políticas ecológicas não fazem menção à natureza, elas não conhecem “o sistema”, enterram-se em controvérsias, mergulham em imbróglios sócio-técnicos, assumem o controle de mais entidades com cada vez mais diferentes destinos, e sabem com menos certeza o que todos têm em comum.
Com isso, a questão aberta pelo " sétimo regime” é saber “o que é um ser humano sem elefantes, as plantas, os leões, os cereais, os oceanos, o ozônio ou o plâncton?”. Latour assinala que o regime ecológico não diz que devemos mudar a nossa lealdade, do reino humano para a natureza. Este regime simplesmente diz que não sabe o que faz com que a humanidade comum dos seres humanos, mas que “sem os elefantes do Amboseli, sem as águas meandros da Drôme, sem os ursos dos Pireneus (...) ou sem o lençol freático da Beauce eles não seriam humanos”.
Esse não-saber se deve à incerteza quanto à relação entre meios e fins. Latour faz menção a definição de Kant da moralidade humana, estendendo-a para os não-humanos, generalizando a todos os seres da criação a aspiração ao reino dos fins. Com isso, encontra uma definição exata das conexões práticas estabelecida pelos ecologistas com aqueles que estão a defender: os rios, os animais, os biotipos, as florestas, os parques e os insetos. Estes não-humanos fazem de tudo para dizer que não devemos utilizar, controlar, servir, dominar, ordenar, distribuir ou estudá-los, mas, como os seres humanos, nunca considerá-los como simples meio, mas sempre como fim.
Latour assinala que esta suspensão de segurança sobre meios e fins define uma escala de regime ecológico (ou “regime verde”) que não pode ser reduzido aos outros regimes de filosofia política, conforme o modelo de Boltanski & Thévenot (1991). Na escala de valores desta "cidade verde", o valor se constrói pela solidariedade entre meios e fins. Neste sentido, tudo não está necessariamente inter-relacionado, pois não se sabe o que é interligado e entrelaçado, bem como ninguém sabe do que o ambiente é capaz.
Uma vantagem de definir a escala de “regime verde” é a remoção de um obstáculo, representado por uma pretenciosa ecologia fundamentalista, ou "ecologia profunda", que ocuparia um estado de inutilidade no " sétimo regime”. Isso se dá na medida em que o “regime verde” pressupõe uma incerteza arraigada quanto à natureza de acessórios, à sua solidez e distribuição, considerando apenas mediadores, que devem ser tratados cada qual de acordo com suas próprias leis.
Assim, para definir este "sétimo regime”, Latour destaca que é necessário invocar a prática dos movimentos ecológicos, colocando-a em oposição às justificativas teóricas de seus seguidores. O autor entende que a razão para esta lacuna é evidente na medida em que, para justificar o “regime ecológico”, torna-se necessário ser capaz de falar sobre ciência e a política, suspendendo suas certezas (1) no que diz respeito aos sujeitos e (2) aos objetos. Todos os outros regimes de justificação pertencem ao mundo da filosofia política, são antropocêntricos. Por isso, o “regime ecológico” ainda espera pelo surgimento “de seu Rousseau, sua Bossuet, ou dos seus Hobbes”.
Neste novo regime, Latour entende que tudo é complicado e qualquer decisão exige cautela e prudência, nunca se pode ir em linha reta ou rápido. É impossível continuar sem prudência e sem modéstia. Para estimular as políticas ecológicas, deve se adicionar a incerteza para que os atores comecem a ter dúvidas suficientes. Trata-se de uma experimentação coletiva sobre as possíveis associações entre coisas e pessoas sem que qualquer destas entidades seja utilizada como um simples meio.
As políticas ecológicas, portanto, não são definidas considerando a natureza, mas pela trajetória diferente de todos os objetos. Elas fazem referência à obrigação de estarmos preparados para tomar conta dos outros participantes, bem como para o aparecimento de imprevistos desde que todos aspirem a tomar parte no "reino dos fins", combinando as relações locais e globais. Para acompanhar esses “quase-objetos”, Latour destaca a necessidade de inventar novos procedimentos capazes de “gerir essas chegadas e partidas, esses fins e esses meios”, entendidos como processos que são completamente diferentes daqueles utilizados no passado para gerir as coisas.
Resumindo, o argumento de Latour passa por assumir que as políticas ecológicas não tem nada a ver com considerar a natureza, seus próprios interesses ou objetivos, mas tem a ver com uma forma de considerar tudo. “Ecologizar” (ou ambientalizar...) uma questão, um objeto ou um dado, não significa colocá-los no contexto, dar-lhe um ecossistema. Isso seria defini-la em oposição à outra atividade, ou seja, o que é conhecido como “modernização”; porntato, significa criar os procedimentos que tornam possível acompanhar uma rede de quase-objetos cujas relações de subordinação permanecem incertos e que, portanto, exigem uma nova forma de atividade política adaptada para segui-los.
Latour entende que a ecologia não envolve simplesmente uma questão de ser "prudente" para evitar cometer erros. Torna-se necessário criar outros procedimentos de investigação político-científica e experimentação. No contraste entre a “modernização” e “ecologização”, o autor chama atenção para o fato de que é muito mais uma questão de tudo o que deve ser considerado de maneira diferente, sendo que esse "tudo" não pode ser subsumido sob a expressão da natureza. Esta diferença não se reduz a importação de conhecimentos naturalistas em discussões humanas. A partir do “regime verde” , a interação das denúncias dos outros regimes e os compromissos inevitáveis a serem acordados com eles, talvez se possa arrastar as políticas ecológicas de seu atual estado de estagnação, fazendo-as ocupar a posição que “as esquerdas”, em um estado de implosão, deixaram aberto por (há) muito tempo.
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