sábado, 22 de maio de 2010

A teoria das compras como rituais de sacrifício: uma análise da etnografia do consumo como amor e devoção transcendentais desenvolvida por Daniel Miller em uma rua do norte de Londres*

Introdução

Este trabalho consiste em uma análise da etnografia realizada pelo antropólogo inglês Daniel Miller, que foi apresentada no seu livro Teoria das compras (2002). Esta escolha deve-se, primeiramente, a contribuição deste livro para o desenvolvimento teórico e metodológico de meu projeto de mestrado no CPDA / UFRRJ, além de contar com a aceitação do professor para analisá-la a partir das referências apresentadas no curso.

Entre 1994 e 1995, Daniel Miller realizou uma etnografia do ato de compra em uma rua na área norte de Londres, que lhe serviu de base para constituir uma teoria das compras como rituais de sacrifício. A análise desta obra se mostrou um exercício desafiador e interessante, em especial pela forma com que o autor utilizar a etnografia para embasar uma teoria das compras.

Neste trabalho, começo por destacar aspectos gerais e metodológicos aos quais segue uma apresentação dos principais aspectos da etnografia. A partir daí, exponho a visão de Miller sobre o sacrifício e os três estágios de sua teoria das compras. Depois, destaco os argumentos dele para justificar a analogia do ato de comprar com o ritual de sacrifício. Finalmente, apresento considerações finais na forma de tópicos referentes às conclusões do autor.

Como este trabalho trata da síntese da obra de apenas um autor, por razões de estilo textual, não repetirei as referências ao autor da forma tradicional por se tratar apenas desta referência em todo o trabalho. Esta opção tem como objetivo conferir maior clareza ao texto, possibilitando uma melhor interpretação por parte do leitor. Cabe observar que, no texto, minhas opiniões estão inseridas na primeira pessoa e as citações do autor contam com sua referência completa, assim como outras citações.

1. Aspectos gerais e metodológicos

Teoria das Compras (2002) é um livro sobre o ato de comprar e suas relações com a natureza do ritual de sacrifício e com o amor e a devoção no seio das famílias. A pretensão de Daniel Miller é estabelecer as fundações cosmológicas do ato de comprar como a atividade que uma pessoa executa quase todos os dias a fim de obter mercadorias para outras pessoas, pelas quais se sente responsável.

Dentre as abordagens apresentadas pela disciplina, duas foram relevantes para empreender esta análise. A primeira refere-se às questões da dádiva, das trocas, das obrigações, das alianças e dos conflitos - uma das linhas da segunda parte do curso. Nesta linha, destaco o texto Gift-gift (Mauss, s.d), apesar de Hubert e Mauss (1964) ser a referência teórica que o autor usa para embasar o ritual do sacrifício. A segunda é o controle de impressões (Berreman, 1975) como metodologia de campo, mesmo que Erwing Goffman seja a referência mais evidente no livro.

Não posso deixar de mencionar que os dois primeiros capítulos de Telling about society (Becker, 2007) também consistiram em uma importante referência para esta análise, pois, através da observação das práticas de compra, Miller constrói um discurso que entendo como uma forma particular de ver a sociedade em que vivemos atualmente. Outra referência importante é feita à Claude Levi-Strauss quando o autor procura justificar a forma com que procedeu a análise do discurso dos seus informantes.

Outros autores apresentados na disciplina foram citados - como, por exemplo, Malinowski, Evans Pritchard, Bourdieu, Durkheim, Douglas, Turner e Sahlins – e mesmo alvos de críticas, contribuíram para que Miller construísse a teoria das compras como rituais de sacrifício. Desta forma, devo destacar que a disciplina propiciou recursos teóricos e metodológicos indispensáveis para empreender a análise desta obra.

A etnografia de compras é um estudo da cultura material no qual o ato de comprar é um meio de descobrir, pela observação das práticas sociais, algo sobre os relacionamentos das pessoas. Miller aprofunda a compreensão sobre o que acontece no momento da compra para estabelecer uma teoria sobre o abastecimento rotineiro em uma rua do norte de Londres da forma como este foi realizado, sobretudo por donas-de-casa.

As compras são interpretadas como rituais de devoção com um componente de gênero, que justifica uma abordagem voltada para a compradora a fim de constituir a cosmologia fundamental das compras pelo fato das mulheres estarem ideologicamente inscritas na norma. Desta forma, todos os exemplos da etnografia no livro são de compradoras, o que se justificou pela tendência de um forte distanciamento dos homens em relação à identificação com o ato e com o conceito de comprar. Miller destaca que, mesmo nos casos de intenso envolvimento masculino, os homens enxergavam na atitude de comprar um ato feminista, como uma “discriminação positiva”, pois esperavam obter mais reconhecimento social do que uma mulher que faz compras em conformidade com o que tradicionalmente se espera dela.

A ausência de comunidade associada à diversidade e natureza extremamente privada dos domicílios londrinos justificaram a impossibilidade de realizar uma etnografia tradicional. Com isso, o etnógrafo procurou compreender a natureza do ato de comprar através de uma observação participante, que envolveu conversas, presença em lares e acompanhamento das donas-de-casa nas compras. A metodologia também incluiu entrevistas formais e uma presença menos formal nas casas, geralmente acompanhada de um chá. O requisito para a inclusão de um domicílio na etnografia foi a concordância dos donos em serem entrevistados sobre suas compras. Miller examinou 76 lares, dos quais 52 se localizavam na Jay Road , a rua pesquisada no norte de Londres.

A compra em supermercados era a pedra fundamental do abastecimento rotineiro para a maioria das responsáveis pelas compras do lar. Neste sentido, entre os supermercados estavam grandes lojas isoladas em rodovias, grandes cadeias de lojas e lojas menores na rua principal e estabelecimentos especializados em compras ocasionais, como lojas de eletrodomésticos e móveis, além do calçadão de pequenas lojas na Jay Road. Muitos exemplos do livro são de compras de “secos e molhados”, apesar da etnografia também ter observado compras de roupas, móveis e produtos para o lar .

A opção do autor por uma tradição antropológica de generalização sobre as pessoas pesquisadas justifica-se pelo fato da maioria dos atos de compras ter obedecido a uma normatividade observável. Com isso, o autor defende a possibilidade de que um grupo de domicílios heterogêneo possa ser representado por uma série de práticas culturais homogêneas. Miller reflete a tendência dos antropólogos realizarem análises que expandem o contexto em que uma prática particular pode ser considerada quando mostra que as compras em supermercados se relacionam com o fornecimento de refeições para si e para a família .

Neste sentido, o ato de comprar não pode ser compreendido como um ato individualista ou individualizante, que se relaciona à subjetividade do comprador, pelo fato de raramente ter sido dirigido pela pessoa que comprava. Desta forma, a compra de mercadorias relaciona-se com duas formas de alteridade, sendo que a primeira delas expressa uma relação entre o comprador e outro indivíduo particular como criança ou parceiro, podendo estar presente no domicílio, ser desejado ou imaginado. A segunda é uma relação com um objetivo mais geral que transcende qualquer utilidade imediata e é mais bem compreendida como cosmológica à medida que assume forma não de sujeito ou de objeto, mas dos valores aos quais as pessoas desejariam se dedicar (Miller, 2002, p.27).

Cabe destacar que a relação do ato de compra com o ritual de sacrifício somente surgiu para o autor após a realização da etnografia, a partir da leitura de Bataille, que funcionou como um mero catalisador, pois as bases originais da interpretação de Miller foram os estudos modernos sobre sacrifício, em especial, o de Hubert e Mauss (1964).

2. Principais aspectos da etnografia do ato de compra

Neste tópico, apresento a variedade de relações que podem ser desenvolvidas por meio das compras observadas e analiso as três características da etnografia das compras: o presentinho, o poupar e o discurso das compras. O autor procura deixar evidente que não é a lógica econômica que determina a escolha dos bens, mas sim a lógica afetiva, ou quem gosta do quê, o que pode ser verificado pela reafirmação dos relacionamentos afetivos através da seleção dos produtos comprados e pela estratégia de satisfação dos gostos familiares.

2.1. As relações entre o ato de comprar e o amor

O amor remete a sentimentos de obrigação e responsabilidade enquanto uma “ideologia normativa que se manifesta em larga medida como prática de relacionamentos de longo prazo e não apenas uma visão romântica de um momento idealizado do namoro” (Miller, 2002, p.32-3). As compras constituíam relações importantes para as donas-de-casa, que se sentiam responsáveis ao selecionarem mercadorias que pudessem ser educativas, edificantes e moralmente superiores, demonstrando que as compras consistiam em um dos meios fundamentais para construir seus relacionamentos de amor e carinho na vida prática.

O “comprar é antes de mais nada um ato de amor” (Miller, 2002, p.32) e reflete um modo maior de manifestar e reproduzir o amor como um valor cosmológico e transcendental na medida em que decisões diárias são consideradas como questões morais sobre as ações. Desta forma, as relações da compradora refletem suas crenças mais gerais sobre como as relações sociais devem parecer e como devem ser levadas, mesmo que suas compras se dirijam para outras pessoas, pois tanto a cosmologia quanto a transcendência sugerem valores duradouros, contrários às contingências cotidianas. Neste sentido, o amor representa um tipo particular de identificação e ligação relacionado com um retorno às práticas devocionais, cosmológicas e religiosas.

As práticas observadas no ato de comprar contrariam o pensamento feminista, pois não correspondem a um ressentimento da dona-de-casa, mas a um desejo dela ser apreciada pela família por cumprir sua obrigação com carinho. O maior problema das donas-de-casa refere-se à falta de valorização, em especial no que se refere ao seu papel moral, educativo e provedor, pois se empenham ao máximo no preparo de refeições e para propiciar bem-estar aos demais membros da família à custa de, na maioria das vezes, negarem para si mesmas o prazer que se esforçam em proporcionar aos outros.

Neste sentido, ao mesmo tempo em que a etnografia confirmou a relativa assimetria entre os gêneros quanto ao trabalho do lar e a exploração do trabalho feminino afirmados pela crítica feminista, por outro lado, mostrou o papel central do amor e do cuidado com os outros como uma ideologia que é o pano de fundo para as atividades domésticas cotidianas, sendo o fazer compras uma delas. Logo, apesar de nem toda prática de compras se relacionar com o amor , este é normativo e dominante como contexto e motivação da maior parte das práticas de compra observadas. A seguir, apresento algumas variedades de atos de amor observados na etnografia das compras.

O tipo de compras mais comum foi o que envolvia mães e filhos, que evidencia a relação explícita entre o poder e o amor e suas contradições. As mães se dividem entre um sentimento de orgulho e o desejo de mostrar a criança aos outros, para que a apreciem, que co-existe com uma ansiedade crescente de que os bebês percam a paciência e comecem a chorar e espernear, causando embaraço à mãe. Trata-se da relação menos ambígua para o autor, pois não haveria ansiedade, frustração ou embaraço que solape a crença de que um relacionamento entre mãe e filho, mesmo nas batalhas e compromissos, deva ser denominado como amor.

O “fazer compras juntos” – um casal, por exemplo - revela maior co-participação dos homens e envolve negociação, pseudo-conflitos e contradições. Neste tipo, as opções individuais de compra aparecem como reforço de convencionalidade pela tendência de adquirir uma proporção maior de mercadorias de marcas conhecidas e convencionais. Para Miller (2002, p.40), “o amor não deve ser isolado como algo oposto a preocupações sociais mais amplas”, como revela a ansiedade dos pais em relação ao modo como o filho será recebido se não atender às expectativas dos amigos. Neste sentido, o amor pode incorporar consciência de classe e emulação, entre outros fatores, especialmente quando convertidos em necessidades e ansiedades intradomiciliares.

Uma variedade interessante pode ser observada na comparação entre casais com relacionamento já estabelecido e aqueles que ainda são incipientes. Para os primeiros, as compras podem demonstrar o entrelaçamento do amor por compartilharem o mesmo gosto, mesmo que toda atenção esteja fixada no efeito sobre a imagem do casal exposto a críticas externas, pois a ênfase nos gostos em comum é expressão da existência de um casal compatível e apaixonado. No caso dos incipientes, as compras podem refletir um corte como parte de uma série de atividades que tornam o casal capaz de decidir se pode ou deve ser visto como um “casalzinho apaixonado”. A presença do etnógrafo tornou-se uma ocasião para que um aprendesse sobre o gosto do outro e construísse uma relação em termos de compatibilidade. Fica muito evidente a platéia e os sujeitos e a necessidade do controle de impressões (Berreman, 1975), pois as opções de compra eram exploradas como oportunidades de elaborar um acordo quanto a fazer do modo dele, do modo dela ou de um modo que futuramente poderia ser chamado de “deles”. Esta comparação mostra que o ato de comprar não se resume a encontrar gostos em comum.

A insistente pobreza é um caso problemático como obstáculo à manifestação de sentimentos de amor, que se manifesta mais como ansiedade relacionada às compras do que com as compras propriamente ditas. O problema aumenta quando, além da falta de dinheiro, não existe a perspectiva de um relacionamento amoroso.

O grupo de Terceira Idade fornece muitos casos em função de serem os mais empobrecidos da amostra, apresentando os tipos mais obcecados, com grande criatividade para transformar as compras em atos de amor a seus descendentes ou ancestrais. Outro grupo é o de mulheres solteiras com aspirações profissionais desenvolvidas na esteira do feminismo e com dificuldades de encontrar homens que considerem iguais. O único caso encontrado deste tipo se aproximava mais da dona-de-casa que dos adolescentes claramente individualistas, que se mostravam dirigidos pelo outro, como um espelho, com o qual desejam adquirir uma impressão melhor de quem são. Os adolescentes falam de amor com mais facilidade, mas não se enquadram na versão de amor definida por Miller e se aproxima mais da visão convencional das compras como voltadas para o desenvolvimento de uma identidade individual.

Da mesma forma que não se deve supor que o materialismo está relacionado com as pessoas que possuem muitos bens, também não se deve supor que uma pessoa solteira seja mais individualista. Miller destaca que o solteiro torna-se mais obcecado por relacionamentos do que os que podem tê-los como certos. Além disso, o interesse por determinados produtos tende a surgir mais a partir do desenvolvimento de relacionamentos significativos do que de sua ausência. Desta forma, a incapacidade de se relacionar com pessoas costuma implicar também em uma incapacidade de se relacionar com as mercadorias.

A etnografia proporcionou evidências que direcionam a atenção das compras como expressão de subjetividade individual e identidade para uma manifestação de parentesco e outros tipos de relacionamento, cujos ideais são assegurados pelo amor. Miller rejeita toda e qualquer linguagem de obrigação que sugira que os relacionamentos se mantenham unicamente em razão de um comportamento imposto. Para ele, definir qualquer relacionamento sem que seja pelo amor pode ser tomado como um aviltamento deste relacionamento.

2.2. O presentinho

A teoria das compras de Miller baseou-se na existência da expectativa que a maioria das compradoras subordinaria seus desejos pessoais a uma preocupação com os outros, o que pode ser implicitamente legitimado como amor. Esta regra pode ser confirmada pela sua exceção, o “dar-se um presente”, que passa a definir a regra. Como um elemento das compras dirigido a um indivíduo, comumente visto como uma extravagância que transcende os limites das necessidades, do poupar ou da moderação do abastecimento rotineiro, o presentinho é uma exceção em relação ao restante das compras, compreendido como benefício do lar, direcionado à necessidade e moderação. Esta prática revela-se um elemento de recompensa para a compradora, apesar de também ser usada para individualizar qualquer membro da família como receptor de uma compra especial.

Uma forma comum de presentinho como recompensa aparece direcionada para as crianças que se comportam durante as compras, exceto entre as mães mais pobres. A maioria das crianças demonstra habilidade em transformá-lo em um ritual: o presentinho torna-se um item obrigatório em todas idas às compras seguintes. A prática de comer uma ou duas uvas também é um presentinho extraído do supermercado, apesar de poucas pessoas serem vistas comendo outra mercadoria sem pagar. O “comer fora”, para muitas famílias, é considerado um presente sem relação com as compras, especialmente para a dona-de-casa, que fica liberada do trabalho de cozinhar.

O homem é visto como provedor de condescendências especiais, o que valoriza o trabalho da dona-de-casa enquanto provedora. A divisão do trabalho de compras denunciada pela crítica feminista pode ser observada: os desejos da mulher se incluem no trabalho de abastecer a casa enquanto os do homem podem e devem se manifestar e ser tolerados na atividade de compras. Entretanto, o inverso também apareceu na etnografia: a mulher mais auto-indulgente e o marido como mantenedor da ordem fiscal.

Também pode ser observada a idéia de um presente proporcionado em caso de depressão como um comportamento reconhecido, mais individual, apesar de encontrado entre casais ou em uma ação coletiva de compras, entre amigas, por exemplo. Trata-se de uma ação que funciona como resposta direta, em especial por reafirmar o si-mesmo.

O presentinho é uma recompensa pelo trabalho tanto quanto um ato hedonista de auto-indulgência materialista. Miller enxerga o presente como um ato de indulgência excepcional e especial que define o restante das compras como algo que não o é. Além disso, usa o termo “moldura”, e se refere explicitamente a Goffman, para afirmar que o presente estigmatiza todos os gastos com “não-presentes” como abastecimento rotineiro, além de individualizar quem o recebe. A recompensa por realizar compras é considerada um presente por ser um trabalho feito pelas donas-de-casa, que transcende a lógica das trocas, mesmo no caso de quem compra para uma casa de pessoa solteira.

Desta forma, o presente separa o indivíduo e o domicílio ao separar a extravagância e a economia, o ethos normativo do comprar. Quem compra em favor do lar é determinado pela economia, o presente determina o indivíduo. A economia torna-se o oposto do presente e permite a conceitualização da entidade mais ampla do lar como receptor adequado das compras, que transcende os indivíduos e os relacionamentos duais que os constituem.

2.3. Poupar

O poupar é uma estratégia de economia ou parcimônia adotada ao longo das compras, de forma que no interior da atividade de dispêndio se manifesta uma atitude de parcimônia. É a atividade mais importante do ato de comprar, além de levar as compras para casa. O senso de economia foi percebido nos atos de compras por uma variedade de meios, pois o que deveria ser a experiência clássica de economizar, a prática de buscar preços mais baixos com base na compra comparativa sistemática, somente foi encontrada entre as pessoas mais velhas .

Poucas pessoas, independente do nível de renda, conheciam os preços dos produtos mais básicos, o que não impedia a ênfase dos consumidores na economia pela existência de novos meios de buscar as ofertas, facilitados pelas diferentes formas de apresentação dos produtos nos supermercados, que devem ser compreendidos no contexto das estratégias do varejo . Neste sentido, a maior parte dos compradores não compra rótulos econômicos, mas considera fatores como quantidade, qualidade e tamanho da embalagem para efetuar uma escolha em termos de gasto de dinheiro. A ampliação das possibilidades de poupar também pode ocorrer em outras possibilidades de compra, como os pontos de venda que anunciam preços baixos com base em menores despesas derivadas de diferentes estratégias .

Desta forma, a economia é compreendida como um fim em si mesmo e não como meio para um fim. Como experiência, a economia não equivale a gastar menos dinheiro, pois existem diversas maneiras de se economizar comprando . Quanto mais permutações de produtos o comércio oferecer, maiores serão aquelas com que os compradores legitimarão suas práticas como econômicas. A etnografia mostrou que os compradores não precisavam de conhecimento fora da experiência do comprar, nem mesmo de recordar informações sobre preços, pois, para entender que poupam, precisavam apenas fazer uma escolha na hora de selecionar e justificá-la, para si, como uma economia.

O poupar é predominante no ato de comprar e a etnografia revela que as estratégias das compradoras para economizar dinheiro envolvem, entre tantas outras: pechinchar ou regatear; evitar supermercados maiores, por pensarem que podem gastar mais; pegar a cesta ao invés do carrinho, para comprar menos; e até mandar o marido com uma lista às compras, já que, por ser desinteressado, não ficará tentado pelos vários itens que a seduziriam.

Possivelmente, todos os compradores vejam toda ida às compras e a aquisição de artigos como um ato de economia, mas isso não pode ser separado do contexto. Os compradores pesam outros fatores, como status e preocupações com o seu próprio comportamento. Neste sentido, o orgulho de economizar não se limita à mensuração instrumental da poupança, remetendo também à sobriedade nos gastos, com conotações de restrição, moderação e respeitabilidade.

As estratégias de economizar relacionam-se com a identidade mais ampla do indivíduo e do domicílio em termos de classe, reputação e outros atributos. Não existe correlação entre o poupar dinheiro e um senso de economia, pois o comprar relaciona-se com a economia como capacidade de encontrar coisas a preço mais barato, mas também de comprar o que realmente se precisa ou se pode ter. Desta forma, economizar é um modo de gastar que resulta em uma ambivalência do materialismo, pois nem sempre leva a um gasto financeiro menor.

O abastecimento apresenta cada vez mais oportunidades para as compras serem experimentadas como economia. As exceções existem, como, por exemplo, o dar-se um presente e as férias. Entretanto, contemporaneamente, o cerne do abastecimento do lar é uma experiência na qual o que começa como ato de gastar se transforma em uma experiência de economizar, que Miller vê como o ritual central das compras.

2.4. Mary: uma exceção à norma

Um caso negativo foi destacado no livro, sua aspiração maior era fazer todas as compras como presentes para si. Por ser de baixa renda, o autor escolheu Mary para mostrar como o hedonismo não pertence ao nicho social esperado da alta renda. Mary é um exemplo valioso por trabalhar para fazer com que o ato das compras se adapte ao máximo à sua identidade e seus interesses. Ela tentava fazer o máximo de compras de abastecimento no menor espaço físico possível como forma de disponibilizar o máximo de tempo e dinheiro para se divertir. Devido ao seu pragmatismo, comprava com o máximo de hedonismo e materialismo.

2.5. O discurso das compras

O discurso das compras refere-se ao que as pessoas dizem sobre esta atividade. Neste ponto, o autor questiona a ênfase no respeito às opiniões dos informantes na observação etnográfica e diz que não pretende atacar autores “mais abstratos” , cujo nível de abstração teórica está bem mais próximo do discurso das compradoras, sendo até mais respeitosos com as perspectivas dos informantes.

Miller adota uma postura teórica de recusa a reconhecer seus informantes e a ser atraído por eles, em uma referência explícita à Leví-Strauss, ao passar de uma perspectiva de observação das compras para perspectivas alternativas de registro das abordagens e explicações das compras dos informantes, ou seja, do discurso das compras. Neste sentido, o discurso em sentido literal, ou seja, o que as pessoas dizem sobre determinado tema, sem qualquer resposta estimulada, é escolhido em detrimento do discurso como ideologia, ou seja, o que não se diz, mas está implícito nas atividades e pode ser negado em um contexto de entrevista.

Nas conversas, as pessoas não explicavam suas compras de um modo mais geral, mostrando-se mais preocupadas com detalhes tecnológicos e aspectos morais do abastecimento. Desta forma, a maior parte de trechos de conversas apresentados no livro foram extraídos de discussões pormenorizadas sobre certos atos de compras, como a razão pela qual um produto foi adquirido ou habilidades envolvidas no ato. Entretanto, a maioria das evidências veio da experiência do acompanhamento das compras e da observação cuidadosa do modo como as compradoras realmente compram, mas não da representação que as consumidoras têm desta atividade.

Apesar de não ter estudado uma cultura, mas uma “não-comunidade”, em decorrência da variedade de culturas e origens na região pesquisada, Miller aponta a existência de um único discurso sobre as compras como um exemplo da falibilidade do pressuposto de que a cultura atua como um habitus conservador que limita novas conceitualizações. Por outro lado, o autor constatou a uniformidade nas reações em relação ao tema, pois não havia quaisquer variações de classe, de educação, histórico, regional ou de origem. Normalmente, o comprar era visto como um ato de gastar, de preferência gastar dinheiro em grande quantidade, quase sem se importar com as conseqüências.

Esta idéia de comprar como prazer está intimamente associada ao comprar como lazer, que Campbell (1986) explica pela oposição do comprar sob a obrigação da necessidade, como trabalho, com a liberdade de folhear catálogos e escolher, como expressão de um agir relativamente livre. Para Campbell (1986), o comprar como prazer é associado às férias, algo para se fazer quando se está livre de outras responsabilidades ou da necessidade de certos produtos. Na etnografia do abastecimento este prazer não existia, pois o “lazer” estava ausente e não podia ser realizado já que as compras se realizavam em um clima de disputa pelo tempo demandado.

A uniformidade das reações serviu como justificativa para que Miller procurasse uma conclusão com o mesmo nível de generalização encontrado em análises antropológicas convencionais, aplicadas a comunidades homogêneas em pequena dimensão. Neste sentido, o questionamento que o autor faz do mito da ganância materialista e hedonista pode significar também uma ameaça a um atributo fundamental na autocaracterização da identidade moderna.

A disparidade dos discursos pode revelar o quanto que o grau de abstração, afastado da prática e da experiência, é assimilado por pessoas de formações diferentes, constituindo uma resposta normativa e imediata ao se perguntar sobre o comprar. A discrepância entre o discurso e a prática permanece: o que é explicitado nos discursos é contrário às ideologias implícitas nas práticas. A dissonância entre o tema e o discurso faz com que o alinhamento do amor, do presente e da economia seja rompido por uma representação das compras que é mantida, apesar de não se referir a qualquer um deles. Miller só consegue reuni-los, de forma coerente e nítida, ao utilizar a teoria extraída do estudo do fenômeno do rito sacrificial.

3. Uma teoria das compras como rituais de sacrifício

Miller justifica a relação do sacrifício com o ato de comprar por representarem o momento da transformação do trabalho produtivo em um processo de consumo, em que os rituais garantem a utilização das mercadorias para reafirmar metas transcendentais. Além disso, identifica uma estrutura análoga entre os principais estágios do sacrifício e do ato de comprar enquanto ritos devocionais.

A origem das analogias entre o comprar e o sacrifício encontra-se no texto de Hubert e Mauss (1964), que descreve os rituais da Índia antiga, além de se basear em fontes bíblicas. Nele, o estruturalismo é um aspecto que Miller enfatiza para afirmar que o ato de sacrifício precisa ser analisado em seus vários momentos e só pode ser entendido ao recolocar os estágios que o compõem sob uma perspectiva do sacrifício como um todo. Outro aspecto importante para a analogia é a variedade dos objetivos do sacrifício, mesmo que todos se caracterizem por um processo de criação de relacionamento com o divino. Neste sentido, o autor também cita a abordagem de Detienne e Vernant (1989) sobre a violência, com interesse específico pela refeição comunitária que se segue ao sacrifício e na distribuição das partes do animal sacrificado.

Desta forma, a essência do ato de sacrifício encontra-se na direção a um agente divino como ato de devoção, que transforma atos de consumo e dispêndio em uma afirmação do transcendente. Com a analogia, o ato de comprar se transforma em um meio primordial de constituição transcendental, pois “o sacrifício é sempre um ato de consumo, uma forma de dispêndio pela qual alguma coisa ou alguém é consumido” (Miller, 2002, p.95).

Em muitas sociedades, as relações entre sacrifício e consumo integram a acepção geral do dispêndio ou gasto como uma economia da devoção. O sacrifício se define no momento em que o objeto sacrificado é consumido e a produção se transforma em consumo, que se apropria dela para os propósitos da santificação e recebimento de poderes pelos objetos transcendentais de devoção em nome dos indivíduos e da sociedade. Este relacionamento prático e rotineiro, experimentado entre um povo e um ser transcendental, é constantemente revivido e reafirmado pelo sacrifício.

A contribuição do filósofo George Bataille serviu de catalisador para o argumento de Miller, em especial pelas premissas compartilhadas, sendo mais importante a que propõe a equivalência entre o sacrifício e o consumo. Bataille (1988 apud Miller, 2002) argumenta que na sociedade capitalista estamos reduzidos à utilidade e problemática das mercadorias como coisas, em um mundo reduzido ao pragmatismo e interesse, onde o utilitário é um inimigo constante. Para ele, seria necessário destruir sem lucro o que poderia ter sido usado com lucro, a fim de restaurar uma ordem íntima. Seu exemplo fundamental é retirado do sacrifício entre os antigos astecas.

Miller (2002, p. 101) discorda de Bataille ao considerar que dadas as condições de modernidade, fantasiamos constantemente sobre os extremos da liberdade e da repressão, dos quais a concepção de excesso de Bataille seria um exemplo. Mas, tanto nas sociedades capitalistas quanto nas não-capitalistas, a maioria das pessoas consegue enxergar sua humanidade essencial nos mecanismos pelos quais se repudiam essas concepções e a elas resiste por meio da interpretação da lei ética. E mais, eu afirmo que há evidências abundantes para sustentar meu argumento, o que não acontece com Bataille.

Neste sentido, Miller relaciona as categorias identificadas na etnografia da atividade de compra com os elementos dos rituais de sacrifício e constitui uma narrativa em três partes a fim de criar uma teoria derivada da justaposição entre o comprar e o sacrifício. As representações de excesso e dissipação presentes no ato de compra e no sacrifício são negadas pela sua transformação em situações de transcendência através da oposição entre o que é ofertado à divindade e o que é utilizado para consumo humano, nos rituais de sacrifício; e, de forma análoga, no consumo, pela transformação do gasto e da dissipação em uma atividade de economia e parcimônia.

Primeiro estágio: visão do excesso

O sacrifício como um ato de consumo evoca o dispêndio do que foi criado ou coletado como uma transformação que confirma a interposição do sagrado na transcendência dos processos produtivos em consumo. O sacrifício representa a destruição violenta de um recurso, que poderia ser útil de outra forma, em um ato de dispêndio. Embora o ritual evoque um discurso de transgressão, “sua finalidade é negar essa possibilidade e garantir que o sacrifício volte a ser um relacionamento ordenado com o divino” (Miller, 2002, p.107). A transgressão representada pelo consumo profano de mercadorias e pela destruição violenta das vítimas como espetáculo, é evitada com a realização do sacrifício, pois o rito subjuga e suprime a transgressão potencial.

A análise do sacrifício de Hubert e Mauss (1964) mostra que nos primeiros estágios a ênfase encontra-se na passagem do profano para o sagrado e na tecnologia de adequação da vítima e do oficiante do sacrifício. O primeiro estágio consiste na simples retirada de materiais e ações do mundo profano a fim de prepará-los para a entrada no reino do sagrado. Entretanto, como o sacrifício deve ser considerado como um todo, seu começo violento ou transgressor passa a um rito dedicado ao restabelecimento da ordem e das estruturas convencionais do mundo. Neste sentido, o sacrifício é uma prática que nega o próprio discurso .

O componente de gênero aparece em muitas sociedades que produzem uma cisão simbólica radical entre a produção e o dispêndio ao estabelecerem que a produção é puramente do gênero masculino enquanto o consumo é uma atividade puramente feminina, cujo trabalho é desvalorizado a não ser quando se refere ao dispêndio. Mesmo com o advento do feminismo, este elemento transgressor ampliou-se com a idéia de que o comprador puramente irresponsável é feminino, mesmo que o gênero feminino seja responsável pelos lares existentes ou potenciais.

Desta forma, a expectativa é que o comprador esteja engajado na auto-indulgência do hedonismo individualizado porque a idéia abstrata do comprar é de inutilidade, de comprar itens que são desnecessários e representam o desperdício. Nota-se a visão de puro excesso no discurso puramente destrutivo do ato de comprar como “uma visão maravilhosa do puro desperdício” (Miller, 2002, p.109). Por esta lógica, o consumo é trivial e os centros de compras simbolizam o vazio absoluto, com o poder de dissipar a seriedade do trabalho em uma objetificação do nada, capaz de extinguir a raça humana em uma orgia de dispêndio.

Um paralelo que interessa ao desenvolvimento de meu projeto de mestrado encontra-se na crítica de Miller ao movimento ecológico pela imagem de violência evocada em um discurso do sacrifício que transforma o consumismo na imagem primordial da destruição do mundo e o consumo na representação de um violento saque dos recursos naturais da Terra por meio de uma destruição desprovida de sentido. Neste discurso, os consumidores deixam de ser vítimas iludidas do capitalismo e passam a irresponsáveis que pilham e exaurem o planeta para satisfazer seus desejos insaciáveis e, desta forma, tornam-se coniventes com o capitalismo, considerado como um meio para alcançar seus fins.

Segundo estágio: do profano ao sagrado

A maioria dos sacrifícios é profana e pode se tornar uma forma prosaica de dispêndio que assegura o relacionamento com o divino ao tornar o dispêndio produtivo e eficaz. Nos locais onde são realizados com regularidade os atos de sacrifício são práticas comuns. Desta forma, a comparação do ato de comprar, principal forma de dispêndio e consumo das sociedades contemporâneas, com o sacrifício, uma das principais formas de dispêndio e consumo de muitas outras sociedades, encontra sentido na preocupação dominante do sacrifício tradicional em conseguir alcançar propósitos específicos, frequentemente práticos e pragmáticos.

A essência do ritual é a separação do objeto do sacrifício em dois elementos: um é renunciado em favor do transcendental; o outro retorna ao mundo profano. Isso separa o segundo estágio, como constituição do divino por meio de um relacionamento, do terceiro estágio, baseado no retorno do sacrifício a suas implicações para o mundo profano e para a ordem social. Este estágio garante que a acepção abstrata do dispêndio seja uma desistência real ou simbólica de recursos em favor da divindade.

Miller refere-se ao início do ato de comprar como uma visão do excesso, que é tomada, erroneamente, como uma acepção global pelos autores “mais abstratos”, sendo outra justificativa pela qual a rua do norte de Londres é tratada como uma categoria homogeneizada e regulamentada, apesar de não ser uma comunidade nem ter um ambiente cultural homogêneo. A justificativa centra-se na alegação de que o discurso sobre o ato de comprar sofre muito pouca influência das diferenças em comparação com a uniformidade das expressões sobre a natureza abstrata do ato de comprar.

No ato real de comprar, o dispêndio permanece dentro de limites definidos; por isso, para Miller, o presente torna-se crucial para determinar a aura que subsistirá durante o restante da atividade. O dispêndio excessivo possui um efeito de controle, pois transforma o ato de comprar em algo bastante diferente, permitindo a formação de um segundo estágio análogo ao do sacrifício, que funciona como uma negação da visão do excesso. Para ser análogo ao sacrifício, o ato de comprar deve passar por uma cisão entre a preocupação com as conseqüências profanas ou sociais e a constituição de uma meta transcendental equivalente ao receptor divino do sacrifício. A essência do ato de comprar deve ser separada dos elementos mundanos e das conseqüências do comprar.

A etnografia mostra que a maioria das sessões de compra se inicia com atos de dispêndio intencional, mas a prática real do comprar dirige-se à possibilidade de economizar. Ao completar o ato de comprar, a experiência se transforma na negação do dispêndio, totalmente absorvido pela visão do dinheiro economizado. A economia transforma o dinheiro não gasto em dinheiro poupado e o valor da mercadoria se transforma no que foi poupado. Miller entende que a economia é uma forma de adiamento que inclui a precaução de poupar dinheiro para poder gastá-lo mais tarde e considera um mal-entendido que a economia seja interpretada como um meio, pois se trata de um fim em si, uma maneira pela qual o outro é objetificado como presença .

O autor vê a economia como uma estética determinada por um princípio centrípeto, que tenta manter os recursos dentro do domicílio, ou seja, como uma atitude no mundo, que se desloca para atrair as coisas para dentro e impedi-las de escapar. Desta forma, o dinheiro poupado poderá ser usado em presentes ‘externos’ que servem para ampliar a fama e a continuidade do domicílio. Os dispêndios mais legítimos são os realizados em favor das gerações descendentes, para os aniversários e educação dos filhos ou para os netos (Miller, 2002, p.118).

A economia cria o sentido geral de uma meta mais importante que a gratificação imediata, seja uma força transcendental, seja um propósito futuro que justifica o adiamento atual. Miller aponta o erro de Bataille ao desconsiderar que a poupança poderia ser tão profana que seria mais eficaz no repúdio do mero utilitarismo do que a destruição. Desta forma, o segundo estágio envolve uma separação entre a preocupação com as finalidades sociais e profanas e estabelece uma preocupação superior, direcionada a uma consciência centrada no divino.

Terceiro estágio: retorno ao profano

Este estágio é marcado pelo distanciamento do relacionamento com o divino e por um retorno às relações com a sociedade profana e conseqüências sociais do sacrifício. Miller enxerga as pesquisas de Detienne e Vernant (1989) sobre a refeição sacrificial em uma linha antropológica que vai de Durkheim a Bourdieu, na qual a transferência de ordem taxonômica reproduz com maior eficiência a sociedade como uma formação santificada.

No estágio final do consumo, o poder transcendental confirma e reifica as relações sociais do grupo. Uma das conseqüências do sacrifício é a santificação da ordem social, que aproxima a perspectiva de Miller da principal conclusão da crítica feminista do consumo, que condena as práticas de consumo como uma força conservadora que reifica certas assimetrias da vida social.

O fato dos itens mais importantes serem comprados em prol da família retira o sentido de individualidade dos reais compradores, pois o conceito de família representa um conjunto muito mais amplo de valores e metas do que os indivíduos enquanto membros da família. Este domicílio imaginário é substituído pelos membros da família, que conservam um sentido do relacionamento idealizado e do indivíduo desempenhando um papel idealizado, além de todos os traços particulares de caráter específico da pessoa e do relacionamento. O “alimentar a família” representa um relacionamento análogo ao de “alimentar a comunidade” no sacrifício antigo.

Neste estágio final, o que não foi entregue ao transcendental, permanece sob a forma de poupança e retorna como compras santificadas distribuídas aos receptores como se fossem as sobras do ato sacrificial. Em qualquer sociedade, ocorrem dois efeitos dos sacrifícios: a transferência de eficácia do domínio transcendental para o profano e o restabelecimento da ordem social pela distribuição e consumo.

A economia como elemento transcendental de devoção generalizada se transforma na expressão do amor devocional direcionado pela mulher como instrumento contínuo de amor a quem ela devolveu as sobras do sacrifício sob a forma de compras. O amor passa a ser a transformação dialética da generalidade da devoção em particularidade.

A dona-de-casa expressa seu amor e devoção ao trazer à tona desejos específicos e passageiros de cada objeto individualizado do seu amor. A objetificação do amor como feminino destaca a habilidade feminina de transferir o sentido transcendental para a prática diária, onde é reconhecido como devoção. Desta forma, Miller nega a acepção da mulher puramente gastadora e transgressora, que renega qualquer senso de responsabilidade.

A etnografia evidencia a norma geral: quanto mais o macho for objetificado como puramente utilitário e funcional, mais a fêmea abarcará o que é irredutível ao cálculo. Desta forma, os homens podem comprar sem nenhum cuidado, pois a concretização do cuidado ao comprar é uma prerrogativa feminina. Como conclusão, a cosmologia do ato de comprar é uma forma de preservação conservadora das ordens de desigualdade, pois, mesmo com todas as pressões da secularização e do Iluminismo, o desejo de integrar o indivíduo em atos de devoção permanece no âmago da identidade feminina moderna.

4. Sujeitos e objetos de devoção: a cultura material do amor entre a economia e o lar

Ao partir de relacionamentos dialéticos entre sujeitos e objetos para aprofundar as ligações entre o ato de comprar e o sacrifício, Miller propõe uma teoria sobre o ato de comprar no norte de Londres com ênfase no abastecimento rotineiro como componente preponderante das formas de comprar.

O autor critica o alinhamento da discussão sociológica recente com o jornalismo e o discurso das compras por usar o ato de comprar como símbolo conveniente para condenar uma “espécie de superficialidade pós-moderna dedicada a um materialismo sem propósito” (Miller, 2002, p.126). A analogia com o sacrifício considera o ato comprar como uma prática com estrutura ritual que envolve valores e relacionamentos, além de manifestar elementos cosmológicos.

A centralidade do sacrifício na tradição judaico-cristã permite identificar a transmissão de um senso de devoção como parte da noção religiosa do sacrifício e do amor, bem como da legitimação desta devoção no seio da família contemporânea. O Iluminismo e a secularização crescente removeram as imagens religiosas de devoção, que foram substituídas pelo movimento romântico e novos objetos de devoção, como o Estado-nação e o amor romântico.

O interesse de Miller é pelo amor como dever devocional no seio da vida familiar a partir do estabelecimento das formas patriarcais modernas, que gerou uma transferência do hábito devocional de seu cenário religioso para um secular. A partir de evidências históricas , o autor demonstra que, com a crescente secularização do século XX, as figuras do marido e do pai substituem a devoção religiosa no culto do doméstico.

Apesar de enfatizarem o amor nas sociedades contemporâneas, as proposições de Beck e Beck-Gernshein (1995) e Giddens (1992) não coincidem com a etnografia, pois apresentam um mundo marcado pela experimentação e diversidade com uma variedade de combinações e arranjos possíveis, como o amor confluente que Giddens tenta modelar com base no livre intercâmbio na vida privada dos ideais que a democracia representa na esfera pública. Miller descarta que o pressuposto de um movimento em direção à auto-expressão nos relacionamentos, com maior propensão ao diálogo e negociação, tenha sido observado na etnografia do ato de comprar. Além da maioria das compras era rotineira, mais ligada a um meio vicário do que expressivo, a possibilidade da dona-de-casa mudar e monitorar a natureza do parentesco e da amizade através do ato de comprar substitui, mais que estimula, um diálogo explícito sobre os relacionamentos.

Naquela rua existe uma atualidade conservadora, com ênfase na diferença entre os gêneros, relacionada com o desejo dominante de ter relacionamentos importantes, daqueles que façam a vida valer a pena de ser vivida ou suportada. Para o autor, a possibilidade de um amor confluente se restringe a grupos específicos em que a auto-consciência sobre os relacionamentos configura-se importante, como entre os acadêmicos, por exemplo. Na etnografia, o amor aparece como um relacionamento que incorpora suas negações e existe em uma complexa estrutura de obrigação, incerteza, ambivalência e ansiedade.

Um paradoxo do feminismo fica explícito entre as mulheres que mais afirmavam a centralidade de suas carreiras e autodesenvolvimento, porque, quando se tornaram mães foram as mais obcecadas pela rejeição destes mesmos ideais, pois ficaram inteiramente devotadas às necessidades e caprichos das crianças. Uma reversão na ideologia dos cuidados com as crianças, caracterizada pelo desenvolvimento de uma preocupação excessiva da mãe, foi acompanhada pela eclosão do feminismo e pela remoção do “chefe” da casa como objeto de devoção. Deste modo, ocorreu a substituição da figura patriarcal do marido pela criança.

Ao diferenciar este desenvolvimento histórico e uma cosmologia que procura objetificação em qualquer relacionamento, o amor surge como uma característica mais básica que o gênero. A relação entre o sacrifício e o ato de comprar torna-se, então, não apenas uma analogia, mas a continuidade do amor pela descontinuidade nos objetos de devoção amorosa. Neste sentido, os objetos são meios para se criar relacionamentos de amor entre os sujeitos, não um tipo de “beco sem saída materialista” (Miller, 2002, p.142) que desvia a devoção do sujeito adequado.

A teoria das compras de Miller considera que as pessoas encaram a maioria dos objetos como símbolos extremamente alienáveis do mercado ou do Estado, sendo que as diversas formas de apropriação destes objetos pelo consumo – como a compra, o período de propriedade, o uso e acréscimo de determinadas associações - os transformam em propriedades inalienáveis. Esta é uma transformação que se baseia na divisão do dispêndio em dois elementos: um deles passa ao indivíduo por meio das mercadorias, que com o tempo se tornam símbolos pessoais; o outro acontece quando o consumo se torna parte da objetivação de unidades sociais mais amplas, dentro das quais o eu é absorvido, como, por exemplo, no relacionamento entre a economia e a esfera doméstica.

A economia tornou-se o meio primordial de conservar um conceito de casa como processo ao invés de uma unidade fixa. A etnografia mostrou que a administração da moradia tornou-se o meio de preservar e estabilizar um objetivo de vida, independente dos indivíduos que constituem o lar. Desta maneira, a economia que o consumidor faz é a peça central da atual ideologia econômica global, com efeitos prejudiciais aos produtores do mundo em desenvolvimento, sendo que Miller destaca a ironia da maior legitimação para a continuidade do sofrimento dos produtores ser a moralidade dos consumidores.

A ausência de relação com os níveis de renda sugere que a economia seja entendida como a extensão das preocupações maiores com a casa e a objetificação do valor. A economia ocupa um papel central no ritual atual que transforma o ato de comprar de fantasia de gastar na fantasia de poupar dinheiro. Miller conclui que a economia acabou suplantando a própria casa como processo pelo qual a atividade econômica cria um modelo moral para a construção do valor. Na prática observada, a maior parte do consumo não deriva do desejo de ter mais coisas ou de uma escolha mais ampla, mas de uma expansão gradual da noção do que as pessoas comuns esperam como padrão de vida, juntamente com o crescimento de suas rendas.

Por isso, Miller critica a idéia de que existem receptores passivos de qualquer coisa que o capitalismo produza. As evidências indicam que a maioria das tentativas de vender coisas falha, pois o desejo é discriminatório e não pode ser previsto pelo comércio. Apesar de o capitalismo ser importante na construção do desejo, não é o determinante exclusivo do local ou dos valores e relacionamentos tratados como mercadorias.

A crítica do autor também se dirige para os estudos de Douglas e Isherwood (1979), Baudrillard (1981), Sahlins (1976) e Bourdieu (1984), por tornarem o entendimento sobre o consumo muito mecânico, apesar das importantes contribuições relacionadas com a posição da classe, da inclusão, exclusão e diferença social, especialmente através de abordagens semióticas. Além de utilizarem apenas romancistas como fontes, Miller destaca que estes autores focalizam o relacionamento entre um indivíduo e um contexto mais amplo, como “sociedade” ou um espaço social, que determinam as possibilidades de um significado e um potencial de expressão individual.

O ato comprar não se refere à posses ou mesmo à identidade, mas a “obter mercadorias ou imaginar a posse e o uso de mercadorias” (Miller, 2002, p.154). O autor compreende a natureza transitória do ato de comprar como um modo de objetificação hegeliano, um processo dialético de criação, que não se reduz ao sujeito ou ao objeto. Por isso, o abastecimento diz respeito a um relacionamento existente, “uma constância subjacente complementada por um humor, um compromisso, um sorriso, uma punição, um gesto, um consolo, todas as minúcias que formam as nuanças em constante mutação de um relacionamento social” (Miller, 2002, p.154).

O comprador se move com o contexto em mutação, onde uma escolha compensa a mais recente e fornece a oportunidade de se passar para a seguinte. A cultura material do ato de comprar funciona com estruturas temporais complexas de mudança, estabilidade e desenvolvimentos diários de qualquer relacionamento específico. Neste sentido, “é possível explicar uma faixa considerável de formas e gêneros de mercadorias dentro do capitalismo moderno em termos da complexidade dos relacionamentos entre as pessoas de uma moradia” (Miller, 2002, p.155).

As mercadorias se transformam em objetificação da tradição, estabilidade e história da família. Longe de representar a mudança e a modernidade, certas marcas permaneceram constantes e previsíveis durante o século XX, mesmo com os maiores deslocamentos nas estruturas sociais e na ideologia cultural. Além disso, a composição da cesta de produtos é elaborada para criar harmonia e evitar a dissonância, com devidas exceções.

Para Miller (2002, p.160), “quaisquer objetos que representem pessoas ou relacionamentos se transformam no veículo para a expressão de valores mais elevados”. Em nossa sociedade, a mercadoria alienável se transforma no modo de tornar real a nossa imaginação do inalienável, por meio da subjetificação. A alienação em relação às instituições impulsiona o desejo de criar por meio do próprio consumo.

Desta forma, o consumo não é a continuação da produção e distribuição, mas o ponto de negação em que a particularidade das mercadorias cria relações fluidas em oposição à imensidão dos mercados e dos Estados. A complexidade dos relacionamentos expressos pelo consumo mostra que não somos apenas criaturas e categorias do capitalismo ou do Estado, pois o ato de comprar é uma
práxis ativa que constitui os relacionamentos, interfere neles e remete novamente a eles.

5. Considerações finais

Após apresentar o desenvolvimento da teoria das compras como rituais de sacrifício, baseada em uma etnografia, esta parte consiste de tópicos enquanto considerações finais sobre as conclusões que Miller destaca. Neste sentido, começo por reproduzir uma passagem que bem poderia representar uma síntese do livro:

O ato de comprar pode ser muitas coisas dentro de contextos diversos. Neste ensaio, a etnografia de uma rua da zona norte de Londres forneceu a base para se resistir à tendência de usar o ato de comprar como mero motivo para se generalizar sobre o Zeitgeist ou para simbolizar distinções sociais. A asserção foi que o ato de comprar pode ser também uma prática ritual. Sua fundamentação é uma lógica sacrificial cujo propósito é constituir sujeitos que desejam. O sacrifício era baseado em um rito similar que transformava o consumo em devoção. O ato de comprar se inicia com um rito similar, que anula o mero dispêndio para obedecer aos propósitos mais elevados da economia. Termina como um trabalho de constituição tanto do imediatismo como das dinâmicas das relações específicas de amor (Miller, 2002, p.169).

A seguir, destaco as conclusões que Miller apresenta:

• O ato de comprar é estruturalmente homólogo ao ritual do sacrifício, pela dependência da intermediação dos objetos e por possuírem três estágios: o primeiro é um discurso do excesso, com uma visão de consumo transgressivo e destrutivo; o segundo é um estágio que nega o anterior e operacionaliza o habitus da devoção, seja pelo envio da fumaça até a divindade ou pela transformação do dispêndio em poupança; e o terceiro é o estágio do retorno aos relacionamentos profanos do amor e da ordem social.

• O ato de comprar se assemelha ao ritual do sacrifício como uma atividade que constrói o divino enquanto um sujeito que deseja. Se o que a compradora mais deseja é que os outros queiram e apreciem o que ela leva para o lar, o ato de comprar transforma-se, da mesma forma que em um ritual, na busca residual de um relacionamento transcendental. Neste sentido, o ato de comprar é um ato de amor, que está mais associado às mulheres e representa um contexto que também pode incorporar práticas coercitivas.

• O amor permanece central para a preservação da exploração e da desigualdade na família, legitimando-as, como já demonstrado pela crítica feminista.

• As mercadorias, quando foram alienadas pelas forças de produção e distribuição, emergiram com flexibilidade e abundância para reificar os relacionamentos; estes se tornaram transitórios e ambivalentes e passaram a saturar as mercadorias com projetos humanos de criação de valor por meio do consumo.

• Na escolha das mercadorias, não é o seu leque que importa, mas a habilidade de quem consome em lidar com as ambivalências e ansiedades dos relacionamentos.

• A etnografia de Daniel Miller apresentou a articulação entre o ato de comprar e o capitalismo como sendo mediada por relações sociais flexíveis, que desenvolveram as mercadorias como um meio de constituição expressiva. Com isso, ampliou o sentido de valor em direção aos consumidores, enquanto sujeitos do capitalismo, que não expressam meramente um espírito capitalista, pois se trata de um sistema que possui uma lógica própria e independente de expansão.

Bibliografia utilizada na análise do livro:

BECKER, Howard. Telling about society. Chicago: University of Chicago Press, 2007.
BERREMAN, Gerald. Por detrás de muitas máscaras. In ZALUAR, Alba. Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
MAUSS, Marcel. Gift-gift. In Ensaios de antropologia. São Paulo: Perspectiva (s.d).
MILLER, Daniel. Teoria das Compras. São Paulo: Nobel, 2002.

* Trabalho originalmente apresentado como requisito da disciplina Teoria Antropológica, ministrada pelo Prof.John Comerford no segundo semestre de 2008 no CPDA/UFRRJ.