quarta-feira, 24 de março de 2010

A politização do cotidiano nas sociedades contemporâneas: um aporte conceitual

Em um contexto cada vez mais globalizado e conectado, até que ponto a ação política emana exclusiva ou predominantemente por meio das instituições democráticas existentes nos Estados-Nação ou organismos internacionais? Será que os governos, sindicatos, partidos políticos, organizações não governamentais, entre outras instituições da modernidade, ditam os rumos da política no mundo atual ou tendem a se conformar como reflexo do passado? Mesmo que essas instituições políticas continuem a ter um papel importante, quais as possibilidades daquele cidadão comum e ordinário agir politicamente em seu cotidiano?

Por meio dessas questões, o objetivo deste artigo é construir um contexto que evidencie o florescimento de ações políticas desenvolvidas no cotidiano a partir de reflexões recentes que efetuei em minha dissertação de mestrado (‘Ambientalização e politização do consumo e da vida cotidiana: uma etnografia das práticas de compra de alimentos orgânicos’ em Nova Friburgo/RJ, CPDA/UFRRJ, 2010). Ao explicitar referências teóricas que analisam uma transição dos padrões de ação política nas sociedades contemporâneas, pretendo abordar a emergência do cotidiano como esfera politizada, com ênfase no campo do consumo, área em que atuo como pesquisador em ciências sociais.

Assim, faço uso de sínteses das perspectivas de autores como Albert Hirschman, Michel de Certeau, Anthony Giddens, Jeffrey Alexander, Néstor Garcia Canclini, Ülrich Beck, Fátima Portilho, entre outros. Neste sentido, durante o artigo, destaco algumas referências para os leitores aprofundarem mais livremente os assuntos de seu interesse, bem como fico aberto ao diálogo ‘virtual-real’, tendo em vista que se trata de um ‘insight’ que não pretende finalizar esta profícua discussão.


Ações políticas desenvolvidas no cotidiano

Uma análise que justifica uma abordagem da politização do cotidiano foi desenvolvida por Anthony Giddens no livro ‘Para além da esquerda e da direita: o futuro da política radical’ (Editora UNESP, 1996). Este autor mostra o movimento expansivo da ‘política’, que se associou à ‘economia’ no século XIX, gerando a economia política, tratada por Marx, o que de certa forma explica a força do movimento operário como forma de contestação sistêmica até a Segunda Guerra Mundial. Em meados do século XX, o campo político já permeara a esfera pública da sociedade em geral, o que explica a eclosão dos ‘novos movimentos sociais’ durante as décadas de 1960 e 1970, com destaque para o feminismo, o movimento negro, a contracultura, o ambientalismo, o pacifismo. A partir da década de 1980, este movimento fluido da ‘política’ atinge a vida cotidiana, tida como esfera privada, imutável e ‘apolítica’.

Por outro lado, a intensificação do processo de globalização nas sociedades contemporâneas, analisada por esse autor em ‘As consequências da modernidade’ (Editora UNESP, 1991), faz com que as ações e as escolhas mais triviais e cotidianas passem a ser cada vez mais percebidas como capazes de influenciar os rumos globais ao mesmo tempo em que se tornam globalmente influenciadas. Entre práticas de consumo politizadas, por exemplo, destacam-se os boicotes e ‘buycotts’ – um neologismo inglês que se contrapõe ao boicote, remetendo à compra preferencial de produtos que refletem preocupações éticas, políticas e ambientais. Da mesma forma, podem ser relacionadas diversas formas de racionalização no uso doméstico de bens e serviços, como água, energia, automóvel, separação de resíduos, entre outros, tão apregoadas pelo discurso de consumo consciente cada vez mais presente no cotidiano da sociedade brasileira, mesmo que essas práticas não sejam completamente incorporadas pelo público.

Entretanto, a ‘novidade’ dessas práticas não está no uso político do consumo, que ocorre desde o século XIX – tendo, inclusive, constituído um importante repertório do movimento operário em seus primórdios – mas na especificidade que estas táticas assumem nas sociedades contemporâneas: (1) são mais individuais que coletivas, (2) se voltam para defender e escolher um modo de vida, além da possibilidade de serem (3) encaradas como uma reinvenção da política, de seus temas e atores e do próprio campo político, na medida em que parecem ser mais direcionadas às empresas do que aos Estados.

Neste ponto, destaco a inestimável contribuição do livro de Fátima Portilho, ‘Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania’ (Editora Cortez, 2005), que aborda o processo de politização dessas práticas associado a um outro processo emergente, de ambientalização do consumo e da vida cotidiana, percebido mais intensamente a partir do início dos anos 1990 com o aumento da percepção do impacto ambiental dos elevados padrões de consumo das sociedades e classes afluentes. Tal processo provocou um deslocamento – da produção para o consumo – na percepção, no discurso e na definição dos problemas ambientais contemporâneos, caracterizando uma perda de espaço da preocupação com os ‘problemas ambientais relacionados à produção’.

A atual sensibilidade ecológica pode contribuir para incrementar as práticas e os debates no campo ambiental, permitindo e estimulando uma invasão da política na esfera privada. Portilho compreende esse movimento como uma possibilidade de fortalecer a participação na esfera pública nas sociedades contemporâneas, gerando uma ética da responsabilidade reflexiva capaz de romper com as rotinas ‘silenciosas’ ao difundir novos valores e comportamentos nas redes sociais de uma esfera micropública onde as demandas e as ações são discutidas e negociadas. Dessa forma, podem ser construídas as experiências coletivas em torno dos dilemas e conflitos relacionados às políticas ambientais. O desafio passa a ser, então, a comunicação de mensagens entre essas microesferas privadas e uma esfera pública mais ampla.


A transição no padrão de ação política nas sociedades contemporâneas

O sociólogo Jeffrey Alexander, por exemplo, enxerga um novo contexto no qual o mercado deixa de ser visto apenas como capitalista e explorador, pois envolve, também, uma relação social interativa em que a narrativa heróica reaparece por meio de movimentos sociais econômicos com ampla variedade de motivações para construir novos direitos e formas de ação. Deste modo, permite entender uma possível transição no padrão de ação política nas sociedades contemporâneas, caracterizada, de um lado, por uma relativa deflação das ações radicais-coletivistas, hegemônicas no período anti-modernização dos anos 1960/1970 e, de outro, pela emergência de ações romântico-individualistas, que parecem predominar atualmente.

A perspectiva ‘neomoderna’ de Alexander possibilita interpretar a esfera do consumo como um campo propício para o surgimento de ações políticas de tipo romântico-individualistas. Nesse sentido, cabe resgatar, e relativizar, a teoria do ciclo privado-público-privado do comportamento coletivo, desenvolvida pelo economista Albert Hirschman no livro ‘De consumidor a cidadão: atividades privadas e participação na vida pública’ (Editora Brasiliense, 1983), que aponta o rompimento com o padrão espasmódico das manifestações públicas coletivas como principal desafio da ação política nas sociedades ocidentais contemporâneas. Esse autor enfatiza a existência de oscilações nas sociedades ocidentais contemporâneas entre períodos de intensa preocupação com questões públicas e outros caracterizados pelo maior envolvimento com o bem-estar individual. A dicotomia público/privado pode ser assim entendida como uma competição permanente pelo tempo e atenção dos indivíduos, sendo que tais oscilações seriam consequências da mudança de ênfase da vida pública para a vida privada.

Dessa forma, as oscilações entre períodos de intensa preocupação com questões públicas e outros de quase total concentração no desenvolvimento e bem-estar individuais podem ser entendidas a partir de opções de afastamento (saída) ou manifestação (voz) de grandes massas de indivíduos que avaliam seus envolvimentos em uma das duas esferas. Hirschman constrói uma fenomenologia de engajamentos e decepções que considera tanto a dedicação aos atos de consumo privado quanto o envolvimento em questões públicas como práticas que geram satisfação e decepção. Nesta perspectiva, chama atenção o papel que este autor atribui às instituições políticas no sentido de impedir a manifestação da intensidade total dos sentimentos dos cidadãos.

A instituição democrática do voto, por exemplo, que é parte necessária, integrante e central do processo democrático, também pode gerar decepção e despolitização. Se o voto garante ‘a todos’ uma parcela mínima no processo de decisão pública, também estabelece um teto máximo que não permite que os cidadãos registrem as diferentes intensidades de percepção das suas convicções e opiniões políticas. Hirschman enfatiza a ambiguidade dessa instituição que, se por um lado, é elemento essencial de uma estrutura institucional de defesa contra um estado excessivamente repressivo, por outro, serve como proteção contra uma coletividade excessivamente expressiva.


Consumo e cidadania como questões de comunicação

Ao compreender o consumo e a cidadania como questões de comunicação em uma perspectiva latino-americana, Canclini (‘Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturais da globalização’, Editora UFRJ, 2005) reconhece que um sentido social é pensado, elegido e reelaborado por meio das práticas de consumo, permitindo, com isso, analisar a apropriação de bens e signos como uma forma ativa de participação. Assim, ao consumir sustentamos, alimentamos e constituímos um novo modo de cidadania. Com isso, este autor aponta a necessidade de aceitar que o espaço público contemporâneo apresenta uma espécie de transbordamento das interações políticas clássicas.

Todas as abordagens que relacionei aqui valorizam a esfera privada do cotidiano como espaço de luta pela emancipação, bem como de protesto e manifestação. Se o conceito clássico de política significava deixar a esfera privada para dedicar-se à pública, os aportes apresentados no artigo possibilitam analisar a politização do consumo como uma espécie de invasão do político na esfera privada. Mais do que a perda do espaço político ou a redução do cidadão a simples consumidor, esse processo parece apontar para formas inovadoras de ação política na esfera privada, como muito bem apontados por Fátima Portilho.

Por fim, cabe destacar que o consumo pode ser entendido como uma prática que envolve revanche ou vingança na esfera do cotidiano. Nesse sentido, Michel de Certeau foi um desbravador, um pioneiro, na medida em que, entre o fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, procurou entender tanto as estratégias sofisticadas adotadas por ‘forças militares dominantes’ do campo da produção, que ‘miram’ seus adversários, os consumidores, utilizando manobras ou táticas empregadas nesse ‘campo subordinado’ do consumo como forma de resistência. Sua análise se volta, sobretudo, para a influência da televisão sobre a sua audiência, que pode muito bem ser aplicada para os consumidores de uma forma geral. Em tempos de eleições midiáticas, cabe uma releitura do seu clássico livro A invenção do cotidiano (Editora Vozes, 1997).

De Certeau diagnosticou a existência de uma produção específica dos consumidores, ou seja, o consumo pode ser visto como uma ‘produção escondida’, astuciosa, dispersa, silenciosa e quase invisível, pela qual os usuários fazem uma bricolagem com e na economia cultural dominante por meio de metamorfoses da lei, segundo seus interesses e regras. Este processo compreende procedimentos, efeitos, bases e possibilidades, e parece envolver os modos de proceder da criatividade humana, ou seja, as “maneiras de fazer”, as práticas de reapropriação do espaço organizado pelas técnicas de produção sociocultural por meio de uma multiplicidade de táticas articuladas sobre os detalhes do cotidiano.

Com isso, as táticas de consumo podem configurar engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, caracterizando uma politização destas práticas. Neste sentido, os consumidores aparecem como produtores desconhecidos de trajetórias que desenham astúcias de interesses e desejos. Assim, eles não podem ser determinados ou captados pelos sistemas que desenvolvem os produtos consumidos por eles.

Esse contexto de ‘resistência’ deriva da bricolagem, da inventividade artesanal e da discursividade, dimensões que combinam os elementos recebidos, utilizando-os em uma trajetória que evoca um movimento e a projeção de uma redução sobre um plano, ou seja, uma transcrição em atos. Nesse sentido, o autor elabora uma política das astúcias como sendo a representação política de alianças microscópicas, multiformes e inumeráveis, entre a manipulação e o gozo, presentes na realidade fugidia e massiva de uma atividade social que joga com a sua ordem. Assim, o ordinário surge como um novo (anti) herói. Até quando será desprezado pela institucionalidade? Isso não importa para quem se vê como ‘fracos’. Mas esse fraco se renova e amplia o campo político.

Publicado em http://www.nosdacomunicacao.com/panorama_interna.asp?panorama=244&tipo=G

quinta-feira, 4 de março de 2010

Um convite muito esperado, minha defesa... (registro de blog)

AMBIENTALIZAÇÃO E POLITIZAÇÃO DO CONSUMO E DA VIDA COTIDIANA: UMA ETNOGRAFIA DAS PRÁTICAS DE COMPRA DE ALIMENTOS ORGÂNICOS EM NOVA FRIBURGO/RJ

BANCA:

Profa. Dra. Fátima Portilho (CPDA/UFRRJ) - orientadora
Prof. Dr. John Wilkinson (CPDA/UFRRJ)
Profa. Dra. Lívia Barbosa (CAEPM/ESPM)

DATA: 08 de março de 2010
HORÁRIO: 9h 30min
LOCAL: Sala de defesas do CPDA/UFRRJ
ENDEREÇO: Av. Presidente Vargas, 417, 6º andar – Centro – Rio de Janeiro – RJ

RESUMO

As práticas que podem caracterizar uma possível ambientalização e politização do consumo surgem com a percepção do impacto dos padrões e níveis de consumo no meio ambiente global. Com isso, a partir da década de 1990, determinadas práticas de consumo passaram a ser reconhecidas como sendo social e ambientalmente responsáveis. A pesquisa teve como objetivo geral refletir sobre os processos de ambientalização e politização do consumo e da vida cotidiana no âmbito da sociedade brasileira contemporânea, enfatizando o multifacetado campo da alimentação. Desta forma, as práticas de compra de alimentos orgânicos, especialmente daqueles indivíduos que não estão organizados coletivamente em movimentos sociais configuraram o objeto de pesquisa. A principal justificativa para seu desenvolvimento era a lacuna existente nas ciências sociais brasileiras no que se refere aos estudos sobre as perspectivas dos consumidores enquanto atores sociais e os diferentes usos que fazem de suas práticas de consumo, em especial seu uso político. Os problemas centrais incluíam questões como: as práticas de compra de alimentos orgânicos são percebidas e experimentadas pelos consumidores como uma forma de ação política? De que maneiras os consumidores lidam com os discursos e cobranças de responsabilidades pela crise ambiental? Ao procurar respondê-las, através de uma etnografia das práticas de compra de alimentos orgânicos na cidade de Nova Friburgo/RJ e da realização de entrevistas em profundidade com consumidores, a pesquisa identificou um aumento da autonomia política individual no encontro das esferas pública e privada que se dá no campo do consumo. A compra de alimentos orgânicos é percebida e utilizada como um repertório de ação política “romântico-individualista” na esfera pública. Estas práticas se mostram capazes de alimentar pontes com a cidadania, abrindo possibilidades para a emergência de novos períodos de engajamento coletivo em um contexto de reflexividade social e sociedade de risco global.

Palavras-chave: Ambientalização e Politização do Consumo, Práticas de Compra, Alimentação Orgânica

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I – OS ALIMENTOS ORGÂNICOS NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS

1.1. Mercado
1.2. Movimento social de agricultura alternativa
1.3. Certificação
1.4. Imaginário dos consumidores de orgânicos
1.5. Tendências alimentares e consumo de alimentos orgânicos
1.5.1. Medicalização
1.5.2. Saudabilidade
1.5.3. Valorização de origem
1.5.4. Gastronomização

CAPÍTULO II - AS PRÁTICAS DE COMPRA DE ALIMENTOS ORGÂNICOS

2.1. Consumo: “caixa preta”dos estudos sobre cadeias agro-alimentares
2.2. Consumo e teoria das práticas
2.3. Esfera individual e multiplicidade de práticas
2.3.1. Comunicação, marcação social e hostilidade cultural
2.3.2. Resistência, revanche e vingança: uma produção escondida
2.3.3. Amor e devoção: compras como rituais de sacrifício
2.4. O trabalho de campo: observação participante
2.5. Etnografia das práticas de compra: descrição densa
2.5.1. Feiras
2.5.2. Venda direta
2.5.3. Supermercados

CAPÍTULO III - AMBIENTALIZAÇÃO E POLITIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE CONSUMO

3.1. Neo-modernismo
3.2. Ciclos do comportamento coletivo
3.3. Consumo e cidadania
3.4. Reflexividade social e crise ambiental
3.5. Um novo ingrediente: políticas na mesa da cozinha?
3.5.1. Especificidade política
3.5.2. Campo retórico
3.5.3. Limites da politização entre consumidores de orgânicos
3.6. Nexos das práticas de compra de alimentos orgânicos
3.6.1.Auto-atribuição de responsabilidades socioambientais
3.6.2. Ação política

CONCLUSÕES

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANEXOS

Anexo A - Localização geográfica e divisão distrital de Nova Friburgo/RJ
Anexo B – Consumidores de alimentos orgânicos observados nos locais de aquisição
Anexo C – Roteiro de entrevista
Anexo D – Fotos do trabalho de campo